Como eu, elle tambem vivia ignorado, ocioso, distraído, fumando sempre, debruçado de uma janella que deitava sobre o mar. Passava horas esquecidas assim, a contemplar as ondas no seu eterno refluxo, imagem dos pensamentos reconditos, das aspirações impossiveis, que tempestuavam na solidão de sua alma. Muitas vezes me disse elle, quando a indiscrição da amisade o ia interromper do quietismo contemplativo que o absorvia, e lhe perguntava que idéas mysteriosas o afastavam para tão longe da realidade e da vida:
—Se fosse possivel exprimir, stenographar na palavra tudo o que se revolve na mente, o homem mais sabio pareceria um tolo; se fossem coerciveis todos os sentimentos, que passam e succedem no coração, o homem mais santo e simples apparecer-nos-hia com a hediondez da infamia.
E continuava, embebido n’um scismar indefinivel, extranho a tudo o que se passava em volta d’elle, como na reconcentração de um grande desgosto. Outras vezes mostrava uma alegria irrepressivel, impaciente, louca, sem motivo; mas cada riso era o preludio de imprecações e ironias pungentes, que vibrava dos labios acerados: o enunciado breve e incisivo d’uma grande verdade, mas triste, horrenda, incrivel, e infelizmente verdadeira, que a sua lucidez de doente descobria. Não sei qual o torturára primeiro, se a duvida ou o sarcasmo. Elle submettia á analyse fria os sentimentos mais puros e intimos, volatilisava-os pelos processos de uma dialectica irretorquivel, e por fim o ultimo canon da sua logica era uma gargalhada irritante que fazia gelar de medo. Elle mesmo se doía de sua crueldade, era o primeiro a accusar-se e a procurar corrigir-se. As linhas de sua physionomia davam-lhe ao semblante uma fórma angulosa, de energia; o olhar incerto não repousava, como quem observa nas sombras de um abysmo insondavel, nunca o fitava, temendo talvez que lhe surprehendessem na expressão fugitiva que o animava o ridiculo, que sabia admiravelmente descobrir.
Deixei de procural-o longo tempo; repugnava-me aquelle caracter incomprehensivel; para monomaniaco era insupportavel, para excentricidade despresivel. As contradições tornavam-no absurdo. Custava-me vel-o na consumpção d’essa apathia, criança e foragido do mundo, sem ter a commoção dos grandes sentimentos que nos prendem á vida, e que são o conforto nas horas vagarosas do desalento. De uma vez encontrei-o a ler com uma voracidade, como a de Isaías ao revolver as paginas dos arcanos imperscrutaveis. Procurei vêr se a sua imaginação viva o tornava illuminado, se era a consciencia da segunda vista, da percepção immediata que o tornava ocioso e inerte:
—O que lês? Que livro é esse que um dia te prendeu a attenção inconciliavel?
—Uma terrivel obra prima, uma perigosissima e espantosa maravilha de arte! É um romance de Diderot, que contém em si o germen de uma revolução moral, o Neveu de Rameau. Nunca o leste? É impossivel observar mais profundamente o coração do homem, isolar-lhe os sentimentos e reproduzil-os em uma creação mais brilhante. Somos todos como elle. Rameau é a grande contradicção da nossa natureza, com a differença que obra segundo essa força, não se contrafaz pelas conveniencias da sociedade, obedece-lhe fatalmente, e é por isso que horrorisa; as maximas do cynismo mais revoltante e abjecto, as doutrinas mais subversivas de toda a ordem, vêm-lhe no dialogo animado, seguidas de sentimentos purissimos, intenções boas e justas, de um modo abrupto, que espanta. Os seus paradoxos são os da humanidade, com a differença que a educação os abafa no intimo de nossa consciencia, e elle, o parasita, o musico, o bandido, o desgraçado Rameau, tem a infelicidade de pensar alto; deixa vêr, através da sua ingenuidade, todas as paixões despertadas por desenfreados instinctos, que existem egualmente em nós, mas que os refreamos e os detestamos, como se fossem a degradação nos outros. Este livro é a synthese da philosophia do seculo XVIII; ella avançou principios de uma verdade inconcussa, de rasão profunda, a rasão universal, de todos os tempos, mas que foram combatidos e ainda hoje não são completamente admissiveis, por esta maldita necessidade de transigirmos com as conveniencias.
Esquecera-se n’aquelle dia do habitual silencio; fallava com uma verbosidade febril; observações penetrantissimas, rasgos de uma intuição pasmosa lampejavam brilhantes, no decurso da conversação. Expressando-se sempre com difficuldade, então, jorravam-lhe as palavras faceis e promptas, com uma nitidez que acompanhava as mais delicadas analyses.
A este tempo, assomou a uma janella fronteira ao seu quarto uma visinha, que vivia honestamente na desgraça, irmã d’aquella flor de Magdala, calcada aos pés pelos que não comprehenderam o impulso dos sentimentos que a transviaram. A pobre trabalhava e distraía-se a vêr os que passavam; cantava e ria esquecida do seu opprobrio. Estava vestida com uma côr triste, que lhe realçava a expressão dolorosa. Elle viu-a; cumprimentou-a com um sorriso leve, que traduzia um epigramma, que fôra comprehendido. Depois voltou-se para dentro:
—Ha uma affinidade intima entre a mulher e as côres; a escolha, a preferencia, a seducção por uma, é a linguagem de um sentimento recondito, que resôa dentro em si, e que ella não sabe exprimir, é o symbolo na sua fórma mais poetica e simples. A mulher é sempre uma criança, chora e ri ao mesmo tempo; como sente mais do que pensa, quer mais do que pode. A grande contradicção, que faz com que realise as nossas aspirações vagas e ideaes! Como uma criancinha que tem sêde, e, não sabendo ainda pedir agua, aponta para ella e exulta, assim a mulher não podendo revelar o sentimento indefinido que a eleva, que a faz soffrer e amar, serve-se da linguagem symbolica das côres, para completar a expressão que lhe transluz no rosto. Raphael, na sua inspiração divina, entreviu este mysterio quando ao determinar o ideal da Virgem na arte moderna, tomou a côr do azul ethereo para colorir-lhe o manto. O ideal da mulher no mundo antigo, menos espiritual, mas egualmente bello, mostrava-a como uma flor, a creação mais aprimorada da natureza, a planta mimosissima e languida; é assim Sacuntala, na poesia da India; a fraqueza, que póde tanto como a constancia heroica, quasi impossivel, de sua irmã Griselidis na Edade média; ella confidencia com as aves, os arbustos choram na despedida, as flôres amam-n’a como uma irmã gémea, um carpello tenuissimo animado á luz do sol brilhante, perfumado com todas as essencias de uma atmosphera limpida e serena. É por isso que do Oriente veiu aquelle modo de fallar de amores pelo salem, um ramilhete allegorico das paixões que perpassam na alma. Ha rostos de mulher archangelicos, sublimes, realçados pelas côres; a côr é a expressão da luz, como a luz uma expressão do espirito. Quantas mulheres perdidas, com um ár de innocencia que illude! a preferencia pelas côres, que as fazem realçar tanto, é por certo o desejo mais intimo de sua alma, que os labios não se atrevem a proferir. Como para cada zona ha uma analogia com as côres luxuriantes da vegetação, pelas côres das roupagens se pode conhecer a mulher; a oriental voluptuosa, enlevada n’um tropel de pensamentos de alegria, sentindo o coração a trasbordar-lhe desejos, que desconhece, orna-se com as côres que mais fallam aos sentidos, as mais vivas, as que mais seduzem. Não é isto assim?
—É; porque o genio póde dizer tudo impunemente. Dá vida ás creações que inventa, soffre com ellas, que são a alma da sua alma.
—Se assim fosse, não andaria no mundo travado este antagonismo do senso commum, positivo e costumeiro, inflexivel nos seus juizos praticos, com aquelles que procuram realisar na vida os sentimentos superiores e eternos com que animaram a argila fragil, que procura constantemente elevar-se acima da materia a que está presa. É a lenda do cego de Smyrna, corrido, perseguido de terra em terra; não lhe comprehendem a vocação. Afferem-lhes as acções pelos factos vulgares, de todos dias, e a disparidade faz com que se lhes chame um desgraçado, um extravagante, um doido.
—Revoltas-te contra o senso commum?
—Revolto-me contra toda a generalidade, que procura absorver o individuo, assimilal-o, confundil-o. Quero que a individualidade se constitua e imprima o seu caracter, de modo que o tempo e o espaço attestem a passagem do grande homem.
—Revoltas-te contra a natureza?
—O que é a natureza diante da obra d’arte?—e elevando-se em um hegelianismo de sectario, elle proprio respondeu: Um verbo insignificativo, que apresenta todas as formas de que o bello pode revestir-se, o archetypo material que só se espiritualisa no typo, que é um facto da consciencia humana. Quando na imitação do archetypo a verdade é tão exacta, que o typo se confunde com elle, o sentimento que então disperta é incompleto, porque não deixou perceber que á determinação do facto presidiu uma consciencia. O bello é uma creação toda subjectiva; é despertada pela natureza, mas não existe lá; escolhemos as imagens em que melhor a podemos manifestar nas suas multiplices e variadas realisações, as caracteristicas que a traduzem fóra de nós. O bello é absoluto. Não existe o feio, que é apenas uma hypothese negativa em que se funda a synthese das realisações artisticas; o bello! o ponto onde convergem todas as evoluções da forma, incluidas na polaridade do bonito e do feio, e gravitando em volta d’esse principio unico, eterno, é o ideal que as faz tender para elle. O bonito e o feio são as duas relações que nos levam á comprehensão da idéa do bello. O bonito desperta-nos esse sentimento espontaneo por inspiração intuitiva; o feio leva ao mesmo resultado pela reflexão. O Sapo, de Victor Hugo, asqueroso, repellente, depois de idealisado, é profundamente bello. Quando se espiritualisa a imagem, e é esta a missão da arte, o espirito ha de amar a sua creação. O estatuario delira com o amor da Galathea. Não posso deixar de obedecer a esta fatalidade do meu caracter; deixo-me arrastar pela contradicção. O bello tem algum tanto de convencional; assim admiramos uma illuminura da Edade média, os arabescos de uma janella gothica. O que parece convenção não é mais do que a reflexão, que nos faz descobrir n’aquillo que contemplamos um progresso do espirito, e nos mostra a tendencia da natureza a ser espiritualisada. Pelo sentimento do bello se obtem o desenvolvimento e elevação que podem prestar-nos na vida a religião e o direito; o verdadeiro e o justo não são mais do que as manifestações do bello no mundo moral. Ha só uma religião, é a da arte! O pantheismo é a suprema creação poetica, a identificação dos sentimentos do bello e do verdadeiro. Mesmo o direito primitivo teve um caracter pantheista, a natureza é animada, é testemunha na accusação, é pura como no ordalio, firma o contrato, submette-se tambem á penalidade, tem personalidade; os animaes compareciam tambem em juizo. A arte sobre tudo! ella suppre a sciencia e a observação, pela intuição viva; a realidade é contingente, variavel; o ideal, a creação pura do homem, é intangivel, eterno, emquanto a obra de Deus se converte em pó. Sacrifiquemos-lhe tudo na vida.
—Mesmo o amor?
—O amor? Rio-me da tua credulidade. Ainda fazes uma religião d’esse sentimento egoista, que procuras elevar acima da animalidade. Querem afferir as affinidades electivas pelo que vêem nas paixões descriptas pelos poetas. O amor como o imaginas, só existe nas obras d’arte; fóra de lá é uma falsificação, uma loucura, um impossivel. Eu explico o egoismo olympico de Goethe recusando o beijo de Frederica, a dedicação symbolisada no que a mulher tem de mais apaixonado e expressivo. Pede ao amor a paixão, como pedes á natureza a paizagem; depois de te possuires de todos esses sentimentos, eleva-te acima da passividade pela reflexão fria, calculada, e terás a consciencia das fórmas com que has de fazer sentir os outros, dominal-os, possuir os segredos de suas emoções, e és grande! Não fallo mais n’isto; só fica bem na bocca de Dyotima.
E começou a assoviar uma ária caprichosa, passeiando vagarosamente; depois voltou-se para mim:
—Ha ainda que descobrir na musica; falta-lhe realisar o principio da ironia, como ha em todas as fórmas particulares da arte. A poesia tem a satyra; a pintura a caricatura e o grotesco; só a musica precisa attingir a antithese do pathetico. O pathetico e a ironia são os dois polos de toda a evolução esthetica. Todas as creações na arte sáem d’estas duas paixões oppostas. Uma é o natural, a outra é o não natural como natural; uma sustenta o sublime, a outra o ridiculo. Ao pathetico eleva-se todo o que soffre; só o riso é a força das grandes individualidades. Ri-te de tudo; o riso denota sempre uma superioridade.
Não o comprehendia; o seu riso pungente de ironia desarmava-me. O genio é uma nevrose, uma disformidade; o que nos outros me parecia egoismo, n’elle não sabia como chamar-lhe. Para elle a gratidão era a justificação do servilismo; o sentimento religioso uma tradição da ignorancia primitiva; o amor de mãe uma impertinencia, que só se dá entre os animaes da classe dos mamiferos, pela conversão do habito em instincto. Explicava tudo assim. Parecia uma alma devastada por longas abstracções, que andava errante no mundo, á busca de uma formula impossivel. A analyse continua dava-lhe uma certa malvadez, tornava-o intratavel.
O caracter faz-se. Quaes seriam as circumstancias que o transformaram até áquelle ponto? Indagava-o como um problema interessante. Fui por deducções pequeninas. Muitas vezes me fallava elle da harmonia plastica das fórmas. Contou-me uma historia original: uma menina engraçada, cuja belleza realçava com uns dentes alvissimos de jaspe; a vaidade de mostral-os tornara-a jovial. Infelizmente tropeçou em uma escada e quebrou um dente. Perdera o seu melhor encanto. D’ahi em diante, procurando encobrir esse defeito, tornou-se taciturna, melancholica, apprehensiva, até que se foi definhando e morreu de desgosto. Contava-me isto como uma grande verdade, como doutrina que professava. Admirava o costume de Sparta, que mandava despenhar de uma rocha as crianças disformes. Pobre rapaz! Como uma circumstancia pequenissima lhe influiu no caracter e na existencia. Elle era aleijado de um pé, como Byron, e era este o seu desgosto intimo, que o trazia solitario e o tornava aggressivo, porque se via amarrado a um ridiculo.