(POEMA EM PROSA)
I
Era noite; o som do sino corrido ecoára pela Judiaria; emmudeceu como se as passadas lentas de um convidado de pedra troassem no meio das risadas de um festim. A alegria e o ruido do trabalho suspenderam-se; os mesteiraes e homens de officio fecharam as portas; os christãos, odiando a raça maldita, separaram-se, deixando-a ao medo da noite. Então na pequena casa do judeu accende-se a luz do lar; cansado de receber insultos durante o dia, de vêr em roda de si a vileza e a traição, a lei e o fanatismo a ameaçal-o, esquece por um instante os planos da sua industria, os recursos com que produz o ouro e os capitaes com que hade comprar a sua segurança, e entra no fóco mais intimo da familia. Entra prostrado; banha-lhe o suor as faces, traz o desgosto pintado na fronte encanecida, vem afadigado das longas migrações, amedrontado pelos terrores das grandes crises do estado; ao asylar-se no remanso da casa, entra como o errante do deserto em um oásis desconhecido; o semblante tranquillo da esposa lembra-lhe o typo de Esther, da Sulamite, de Débora, da Sibylla palestiniana, e abraça-a com a sofreguidão com que umas fauces resequidas se dessedentam em uma nascente viva. Vêm depois os filhos, debruçam-se-lhe dos hombros, prendem-se-lhe ás pernas, enlaçam-se em volta do corpo, e n’essa hora o judeu sente-se outra vez forte para todas as luctas, para todos os opprobrios, para todos os vexames, com alma para affrontar a miseria e o queimadero. Falla das tradições de Israel, da sua migração através dos seculos, da terra promettida, e do Messias, não o idolo papal que se impõe pela fogueira, mas a boa nova da egualdade e da liberdade humana.
II.
Na Judiaria, habitava um velho negociante de joias e pedrarias; quando algum potentado casava, mandava sempre ali escolher o presente de noiva, a compra de corpo, o dom da manhã. Elle tinha as pérolas das mais lindas do fundo do mar; as rochas mais encantadas do Oriente tinham entregues ao joalheiro os brilhantes facetados da agua mais limpida; topazios, esmeraldas, adereces, diademas, nunca o thesouro da Senhoria de Veneza reuniu riquezas de tanto gosto e primor. Viera de Hespanha, no tempo da grande expulsão dos judeus por Fernando e Isabel; o facho de Torquemada allumiou-lhe o caminho de Portugal, terra da tolerancia e da paz. O clima, o ár, a doçura do céo, lembram-lhe o Oriente; elle ama como filho a boa terra luzitana. Voltava do trabalho á hora do sino corrido; deixava o thesouro que faria a inveja de bastantes thronos, mas vinha vêr outro thesouro, o mais querido, e extremecido—uma filha de quinze annos. Chamava-lhe o bago das vinhas de Engadhi; chamava-lhe a Rosa das campinas de Sáron, irmã gemea da filha de Jephté, pura como Débora, deslumbrante como a Sulamite.
III.
O pae entrara para casa; veiu a filha abraçal-o quasi á porta. Se o bom do velho não recearia que lhe descobrissem essa flôr escondida! Esperava-o a tranquillidade do lar; os risos e folguedos das outras crianças faziam-lhe esquecer os apupos e maldições da gentalha. Jogral de um povo rude, o lar tornava-o um patriarcha, um levita, sacrosanto como Moysés descendo o Monte do Senhor. Sentou-se de cansado. Tinha perto de si o Guemára; ao lado vem assentar-se a filha, Ebla, assim chamada do nome da Lua, como conta o velho Livro de Enoch. Ebla fallou-lhe:
—Nunca mais tornaremos a vêr Sião, e os tumulos dos prophetas? nem escutaremos o susurro dos nossos rios?
O pae, emquanto as outras crianças brincavam, poisou o dedo sobre o verso do Guemára, volveu-lhe um sorriso doloroso.
—Virgem do côro das donzellas de Sião, os nossos filhos continuam a nossa existencia na terra; assim como o castigo vem dos paes sobre a cabeça dos filhos, o Senhor tambem recompensa nos filhos os bens que os paes tiverem merecido. Ha quantos seculos andamos longe de Sião bemdita; eu sinto que os meus não pisarão o solo da terra promettida; mas vejo-te ao meu lado, como a flôr que brota de uma ruina; eu não poderei entrar na Cidade dos prophetas, serei como Moysés no alto do Abarim; mas o Senhor deu-me uma esperança, fez-te nascer em meu lar, filha. Assim o fanatismo e a atrocidade me não arranquem a vida. Uma noite, eras tu ainda pequenina, em Toledo; a noite ia escura e carregada, chovia, cruzavam-se os raios. Soôu na Judiaria uma voz sinistra: Ás onze horas do sino da Cathedral, a hora em que deviamos abraçar a religião de Christo, seriamos lançados nas fogueiras das praças ou abandonar para sempre a formosissima terra de Hespanha. Os meus thesouros lá ficaram, e dei-me por feliz em trazer-te commigo. Portugal anda entregue ás descobertas e aventuras do mar; os odios de raça ainda cá não tinham sido exaltados pela classe dos tonsurados. Trouxe-te ao collo, e tu me deste animação e alento na fugida.
—Ó meu pae, accudiu Ebla, passou hoje pela nossa porta uma cigana, cantando romances e siguidilhas de Hespanha, e pedi-lhe para ella cantar…
—E que ouviste? interrompeu o judeu aterrado.
—Ella contou-me que el-rei D. Manoel vae em breve casar com a filha de Fernando e Isabel a Catholica, e que ella só acceita a mão de esposo com a condição de desterrar para sempre os judeus para fóra de Portugal. E acompanhava a noticia com a cantiga castelhana:
Ea! Judios
á enfardelar!…
los Reyes mandan
passar la mar.
O velho judeu ficou assombrado; fechou o Guemára, e repousou a cabeça sobre o livro. De repente sentiu-se eccoar pela Mouraria o som secco e repetido de uma matraca, e de espaço a espaço, a voz do pregoeiro das justiças, bradar:
«Ordem d’el-rei para os judeus de Lisboa se apresentarem na alvorada com uma dança judenga, guisos, touras e guinolas, para irem receber o séquito da nova rainha. Soffrerá pena de morte o que levar armas comsigo. O rabbi da Judiaria irá na frente das dansas.»
Debaixo das janellas do velho judeu soaram estas palavras. O canto da cigana revelado pela filha lembrou-lhe um presagio funesto.
—Patriarcha no lar e truão nas ruas! cumpra-se o destino a troco da paz.—E levantou-se com o aspecto venerando de sacerdote magno, e foi sacudir a sua vestimenta de guisos, procurar a palheta, emquanto esperava o toque da alvorada.
IV.
Lisboa tumultuava em festa immensa; arcos e flôres, salvas de artilheria, estandartes, musicas, annunciavam o dia da chegada da infanta D. Isabel, mulher do monarcha Venturoso. Já se sentia o estrépito do cortejo real; pelas portas da cidade vem entrando as dansas dos mesteiraes. Primeiro, vinha a Folia, com gaitas e pandeiros á velha portugueza, dansando em volta de um tambor; trazem guizos nos pés, cantam letrilhas de folgar e sainetes galantes; os guizos dos artelhos no reteninte som confundem as coplas. Com gentil ademan no ár volteiam lenços acenando. Vinha depois a Carraquisca, a dansa dos barqueiros e mareantes dos galeões do Tejo; trazem andando um balanço que imita um bambula dos pretos, aprendido lá nas conquistas. Vae passando a Cativa, uma outra dansa de agrilhoados mouros, bailando aos modos da Salé, vão confessando preito á nova rainha. Já vem perto a Gitana, toda feita de ranchos de raparigas vestidas de variegados pannos, cintos de ouro e vermelho; voam-lhes as roupagens com o vento cruzando facas entre si, ao doce baylo da Mourisca, que os sentidos fez perder com a trisca dos volteios. Eis que chega tambem a Dansa judenga! Os apupos do povo alevantaram-se furiosos chamando-lhes traidores; as vaias e as pedradas eram pelo ár sem conto; a plebe desenfreada atira-se de roldão sobre a judenga ao entrar da cidade, e abafam as queixas dos opprimidos com risadas. Vinha na frente o velho Rabbi, dirigindo a guinola e toura, quando um malvado lhe arrepella as barbas brancas. Os olhos do veneravel velho chamejaram de indignação e vergonha; levantou a palheta de bobo que bamboava nos ares, e descarregou-a na cabeça do atrevido, com a mesma altivez de animo do velho Consul da cadeira curul. O villão cahiu por terra e lá ficou calcado aos pés da multidão que se atropellava e ruía furibunda sobre a desgraçada dansa judenga. O velho Rabbi fugiu a todo o custo; a multidão precipita-se apoz elle; gritando, chamando-lhe réfece assassino. A noite vinha descendo, e protegido pelas sombras do crepusculo se ia livrando dos golpes que lhe atiravam. O velho ia quasi exhausto, a turba que o perseguia ia rareando apoz elle; já poucos o seguiam; mais um esforço, e ficaria salvo; as pernas parecem falhar-lhe, falta-lhe o ar; sente vontade de atirar-se ao chão e deixar-se retalhar. Mas um raio de luz e de vigor lhe atravessou o espirito; lembrara-se de Ebla, de sua filha!
Ia o velho Rabbi a entrar já na Judiaria, estava quasi á porta de casa quando um dos poucos populares que ainda vinha atraz d’elle lhe deitou a mão. Inesperadamente veiu-lhe um soccorro imprevisto; um donzel do séquito do principe Dom Affonso, e que andava ainda triste com a morte do seu joven amigo, sentiu um impulso do bem e defendeu o velho judeu. Desembainhou a espada e os populares retiraram-se. O Rabbi bateu á porta; abriram. Á luz de um candil viu o moço cavalleiro a cara mais linda de nazarena, os olhos mais languidos que não teria a Sulamite; o sorriso mais puro, a graça, a meiguice, a expressão de Quirub. Que contraste! na rua o genio do mal a seguil-o, em casa o anjo da candura a allumial-o, a inspirar-lhe serenidade.
O velho Rabbi vinha ensanguentado e roto; ao receber o abraço de Ebla tirou-lhe do pescoço um colar de perolas, e veio dal-o ao desconhecido. O moço cavalleiro beijou-o, e tornou-o a entregar.
—Quem és, que te mostras tão generoso e cavalleiro? perguntou o Rabbi.
—Dom Tello; e adeos!
O moço cavalleiro perdeu-se na sombra da noite; ai d’elle se a essa hora entrasse em casa do judeu; a lei era implacavel; condemnava-o á pena do fogo.
O velho Rabbi sentou-se offegante, com a cabeça encostada aos hombros da filha. Quiz começar a fallar-lhe mas as lagrimas e os soluços irrompiam frequentes. Alfim, pode ligar as palavras e contar-lhe o succedido.
—Oh meu pae; parece que os nossos desastres não acabaram aqui. Hoje passou rente á gelosia uma cigana, e parou a cantar, e dizia que el-rei D. Manuel casando com a infanta de Castella, a primeira promessa do seu dote era tirar aos judeus os filhos de menos de quatorze annos, e baptisal-os á força, e matar os mais velhos e pol-os fóra de Portugal…
—Filha, é o céo que manda esse aviso; tu foste a minha providencia.
E desceu a um subterraneo da casa, e lá se entreteve sósinho dispondo as suas riquezas para a hora da expulsão.
Ebla ficára por instantes só; revolvia na mente o dito da cigana; nas cantigas a cigana dissera-lhe mais cousas: Que um cavalleiro moço e formoso a adorava; que por ella seria capaz de abandonar a religião em que nascera e seguil-a até aos confins do universo. E que se um dia visse um moço trigueiro, de bigode preto e olhos vivos, faiscantes, era D. Tello, aquelle que a adorava. Ebla atou na mente esta lembrança; lembrou-se que Tello, o moço cavalleiro acabava n’esse instante de salvar o pae. Nasceu-lhe na alma um amor repentino; veiu-lhe uma vontade de vêl-o, de lhe fallar; notou a generosidade de não acceitar mas beijar o collar de pérolas. Solícita e a medo assomou á gelosia; a luz do candil reflectiu-se fóra, através das grades da adufa. Sentiu uns passos na rua, depois uma voz mansa e suave que proferiu no silencio da noite:
—Ebla!
Estes sons entraram na alma da donzella; e obedecendo á fascinação d’aquella voz, lançou a cabeça de fóra. Viu na sombra um vulto, que a irradiação lhe illuminou como a imagem vaga descripta no cantar da cigana. Aquella voz, como vibrada por um verdadeiro amor, disse-lhe com o imperio de uma vontade irresistivel:
—Vem.
Ebla desceu em cabello, e sentiu-se envolver em um abraço apaixonado, vehemente, expressivo. Era a primeira vez que sentia o amor. Deixou-se levar sem saber porque, nem para onde.
N’aquella noite, com as festas do casamento de el-rei D. Manuel, as portas da Judiaria ficaram abertas. Ebla e D. Tello afundavam-se na escuridão da noite, quando entra na Judiaria um tropel immenso de homens de armas e de cavallo; ia na frente o alcaide da justiça. Ao som de uma matraca restabelecera-se o silencio, e pela escuridão sombria e soturna da Judiaria soava uma voz sinistra, como de sentença:
«Pregão d’el-rei D. Manoel, para os judeus, ao toque da alvorada, embarcarem para fóra de Lisboa, sob pena de morte.»
A palavra morte accendia na multidão um enthusiasmo frenetico que apupava, ameaçava e esbravejava cantando entre risos alvares:
Ea! Judios
á enfardelar!…
los Reyes mandan
passar la mar.
Áquelle grito sinistro, toda a judiaria se levantou em pezo; do fundo do seu subterraneo saiu o velho Rabbi, solicito, temeroso, mas constante. Ouviu proferir a sentença ominosa. Chamou por sua filha, e foi accordar as outras crianças que dormiam; a mulher voltou apressada do pé dos thesouros. Tornaram a chamar por Ebla; o grande ruido das ruas e da multidão nada deixava perceber. Chamou por Ebla com uma afflicção de morte; viram a porta aberta; multidão de gente que tripudiava, lançando fogo ás casas. O velho pae parecia um leão ferido.
—A maldição d’esta raça caiu inteira sobre mim. Perdi tudo ao levarem-me essa filha. A minha condemnação, a minha morte para salval-a. Se ha no mundo alguma força superior, que seja o destino das cousas, Jahvé ou Jesus, acaso ou as potencias do inferno, conjuro tudo sacrifico-lhe a minha vida, a minha sorte pelo apparecimento d’Ebla. De que vale todo esse ouro e pedrarias se perdi Ebla; levaram a minha joia de mais valia, e com ella todas as esperanças e alegrias da minha vida…
Era incomportavel a dôr do velho; ia continuando, frenetico, doido; queria fazer-se christão para procurar a filha, quando eccoou de novo a voz do alcaide da alta justiça:
«Soou agora o toque da alvorada; o incendio lavra já na Judiaria!—Ao embarque, ao embarque nos galeões do Tejo, ou a morte á escolha.»
O velho Rabbi saiu com sua mulher e dois filhos pequenos, levados em tropel confuso e lamentos para o Tejo, aonde se enchiam os galeões de Hollanda, e resoava o ecco lugubre:
los Reyes mandan
passar la mar.