Era uma criança linda, linda como os amores. Os movimentos impensados da infancia davam-lhe a cada instante uma nova expressão de candura, faziam amal-a, beijal-a. Ella não sabia que estava sósinha no mundo; a pomba não tinha a aza maternal sob que se occultasse, quando viesse o abutre pairando para arrebatal-a. Ria, descuidada.
A graça com que saltava! Parecia um pequeno gato quando brinca.
Faltava-lhe pae e mãe que lhe soubessem interpretar todos os requebros, a meiguice das palavras apenas balbuciadas, adivinhar seus medos, aspirar-lhe os risos, unir-se ás suas alegrias, beber-lhe as lagrimas sem motivo.
Era uma florsinha nascida á beira da estrada, exposta aos ventos da noite, ao rigor das calmas, ao tropel dos que passam, banhada de perfumes que ninguem vem respirar, derramados ao capricho das virações. Pobre filha! Como estas plantas que se estiolam e seccam, mal rebenta o gomo que as hade substituir, a mãe morrera ao trazel-a á luz; com ella se foram para a cova todos os carinhos que nos embalam e fazem esquecer as dôres por onde se nos dá a conhecer a vida.
Sem mãe!
Ninguem sabe o que é vêr descer a noite negra, e as crianças que brincavam comnosco cairem de cansadas em um regaço que accalenta, ouvir as cantigas que as adormecem e lhes afastam o medo; e não saber por que não temos aquillo tambem, não haver quem nos chame, nos fale e nos conte maravilhas, e nos esconda no calor benigno de um seio que bate por nós. A orphandade! E depois quando os primeiros alvores da mocidade começam a doirar-nos a existencia, a acordar a um tempo todos os sentimentos bons e santos, não ter quem nos descubra e faça presentir as sarças que nos podem prender, as torrentes que nos podem levar, os abysmos em que se póde cair. Uma mãe! Ella nos ensina a amar e nos faz bons com o seu amor.
E se o amor inconsiderado da gloria nos arrasta, se a vertigem de alcançal-a dá coragem para affrontar o impossivel, sacrificar a vida por um fumo que o tempo dissipa, feliz de quem tem uma lagrima na vida que nos ensine o que ella vale, para não dal-a por tão pouco.
Mas a pobre criança na sua ignorancia ditosa não sabia d’isto; brincava sósinha, aprendia a ser mãe. Que affagos perdidos com a boneca que embalava ao seio, que beijava, vestia e despia, fallando com uma ternura que ella adivinhava, porque nunca no mundo ninguem lh’a havia dado, ensinado.
Aos sete annos perdeu seu pae; era pescador. Elle e a sua barca desappareceram em uma noite de temporal. Costumada a vêl-o poucas vezes, a criança não deu pela falta; esqueceu-se de que tinha pae, como se acostumára á falta dos desvellos de sua mãe. O pescador, quando ía para a costa deixava-a sempre em casa de uma visinha, com quem distribuia os diminutos ganhos que apurava. Esta visinha era como todas as pessoas que resam muito com a mira no céo, e de tal fórma se tornam refractarias a todo o sentimento, sem affeição a ninguem, incapazes de uma generosidade; então para as crianças, que não comprehendem, são mais aterradoras que um mestre de meninos. Quando a visinha soube da morte do pescador, carpiu, deplorou, sem saber como subtrahir-se ao encargo da abandonada criança. Se até ali o nimio descuido e desmazello eram providenciaes, porque ao menos não vinham atrophiar os impulsos expansivos da infancia, d’ali em diante a visinha arrogou-se a auctoridade absoluta, expressa n’esta maxima popular—quem dá o pão dá o ensino. Mas a criança tinha um dom que a defendia de todas as atrocidades brutaes da prepotencia irresponsavel, era linda, linda!
Quantas vezes não passou pela cabeça da desalmada visinha amparal-a até á edade em que pudesse auferir um lucro criminoso d’aquella formosura angelica. Belleza funesta que vem accumular a desgraça á indigencia, dar uma côr mais sinistra á miseria. Tinha sete annos apenas! custava tanto esperar. Lembrou-se então a visinha—uma idéa luminosa que a livrou de escrupulos de consciencia e lhe asserenou o animo alvoroçado por uma caridade que a sorte lhe impuzera—a criança tinha ainda um avô do lado materno, feitor de uma rica propriedade. Era a algumas legoas de distancia; em um domingo, depois da missa da madrugada, poz-se a caminho com a pequena e foi entregal-a ao avô.
Nada mais commovente do que a infancia e a velhice quando se amam e se comprehendem; tem ambas uma frescura juvenil, o frescor dos orvalhos doirados da alvorada e da geada nocturna, a luz e sombra formando um brando crepusculo em que se scisma sonhando alegrias por vir e illusões que não tornam.
Não se descreve a loucura de jubilo que o velho sentiu ao vêr a criança, carne da sua carne, uma parte da sua alma, que reflorescia viçosa no engraçado renovo. Ria, chorava no seu transporte, doudo, doudo de contente ao beijal-a. Fitava-a, esquecia-se a vêr-se n’aquelle retrato, a menina dos seus olhos, como lhe chamava quando os soluços lhe não embargavam a voz.
—Eu não podia morrer, sair d’este mundo, sem te vêr, minha filha! Tu bem sabias isto; foram os anjos que t’o disseram, por isso quizeste vir. Trazes-me o dia mais alegre da minha vida. Quando tua mãe nasceu foi n’um dia como este, e eu não me alegrei tanto; não me lembrava que uma filha é o melhor encanto da velhice! Estava longe da minha aldêa, muito longe, andava na guerra havia quasi um anno, e ainda não era bem um que estava casado. Quando voltei, já tua avó e tua mãe tinham morrido. Não te importam estas cousas! Tu queres brincar? Vae correr, anda á tua vontade. Como ella é tão bonita! Eu choro sem saber porquê! Tinha pedido tantas vezes ao pae que a trouxesse cá um dia. Eu não devo deixal-a ir; ella é minha agora.
Quando o velho soube que a criancinha estava completamente orphã no mundo, deu graças ao céo por lhe havêr poupado a vida de tantos riscos que atravessára. Julgava-se o roble secular que protege o arbusto flexivel, quando as rajadas retouçam na floresta. Queria penetrar os designios da providencia, que o destinára no declinar dos annos para a guarda d’este thesouro de candura.
O velho, á noite, sentava-a sobre os joelhos, fallava como a uma pessoa desenvolvida, contava-lhe historias do passado, até que adormecia, e se esquecia vellando ao pé d’ella, horas inteiras. O que lhe não contaria o velho na sua simplicidade de justo? Mutilado como estava das longas batalhas em que entrára, perguntava-lhe a criança a historia de cada cicatriz. Ella nunca vira estas disformidades nas outras pessoas e tinha medo; o velho distraía-se de continuo pintando-lhe os recontros, as contraminas, as cargas; ás vezes não fallava para ella, fallava comsigo, vehemente, exaltado, por fim ria-se de si, e acabava por beijal-a muito. Isto repetido quasi sempre ao fim da tarde, quando o sol dardejava na aresta da montanha, e vinha de longe a toada dolorida e plangente da sineta de uma freguezia proxima.
A apparencia do velho infundia consolação; a falta de dentes dera-lhe uma disposição aos beiços desbotados de modo que parecia ter sempre um riso de mofa, inoffensivo, divertido, communicativo. Sobretudo, o que era mais sympathico na sua fealdade eram uns olhos, de pequenos, tão alegres e vivos, que pulavam, como no vigor da edade e das paixões, em umas orbitas encovadas, maceradas pela senectude. As cicatrizes das ballas e espadagadas, misturando-se com as rugas da velhice, em vez de o tornarem repulsivo, davam-lhe um aspecto attrahente, em que o bom humor que o animava deixava reflectir um fundo de bondade, que tem quasi sempre as pessoas que soffreram bastante.
E quanto não tinha elle soffrido? Noivo, casado de um anno, viu-se forçado a abandonar seu lar, deixar a roupa de camponeo pela farda apertada, a choça pela caserna, o nome por um numero, o leito fresco, cheiroso com roupas de linho, pela tarimba, e sobretudo a vida sanctificada da familia que acabava de formar em roda de si, pela guerra em que se ia confundir.
Fôra no tempo da guerra peninsular. Uma estrella funesta o acompanhou sempre, amparando-lhe a vida para soffrimentos inauditos. Nunca entrou em acção d’onde não voltasse ferido; todos galardoados sempre, d’elle ninguem se lembrava! A jovialidade dava-lhe forças para resistir á oppressão da injustiça. De uma vez levaram-lhe os dedos quasi todos, porque em uma carga de cavallaria teve de fazer das mãos capacete. Retalhado, calcado aos pés do esquadrão, ainda ali a sorte acintosa o guardou para novas provações. O pobre soldado não sabia queixar-se; por fim como não pudesse dar ao gatilho, passaram-no para a artilheria.
Ahi subiu de ponto a sua infelicidade. Em uma investida a peça que descarregava esteve quasi nas mãos do inimigo; era um magnifico apresamento. Exasperado de raiva encravou-lhe o busil, para não fazer mais fogo. Depois, que a levassem os contrarios! N’isto o pelotão foi distrahido para outro lado. Julgaram então o misero soldado traidor aos seus, e descarregou-lhe o general um golpe que o estendeu por terra. Em uma nova investida dos contrarios conheceram a prudencia do artilheiro, mas deixaram-no estendido por morto; as carretas passaram por sobre elle e fracturaram-lhe as pernas. Pediu debalde aos inimigos, que iam de avançada, que o acabassem de matar. Ninguem o ouviu, com o estrepito das descargas e do rodar dos trens, o ruido da cavallaria e o ecco dos clarins. Depois da batalha, quando iam atiral-o á valla, pediu que lhe poupassem a vida. Doeram-se d’elle e levaram-no.
Passados longos annos, depois de percorrer alheias terras e ter affrontado a fome e a solidão de extrangeiro, pôde voltar á sua aldeia, desacompanhado de felicidade, sem um unico signal de reconhecimento pelos serviços. A esposa que deixára um anno quasi depois de casado, tinha já morrido, deixando uma filhinha na orphandade. Ella mesma fôra crescendo, fizera-se mulher; humilde, havia dias que se casára tambem com um pobre pescador. O velho soldado não quiz ir aguar com a sua presença a sociedade dos dois esposos; restava-lhe um antigo amigo, que ouviu attento as suas calamidades, e o convidou para tomar conta de uma rica herdade que possuia. Ao menos encontrava no fim da vida a suavidade dos campos, e a tranquilidade da solidão.
Quando se tem soffrido muito, cada momento está cheio de saudades da vida, porque o soffrimento é o signal mais certo de que se tem vivido.
Estava pois n’esse remanso o velhinho quando no desejo de ver a creança, filha de sua filha, passára annos e annos na doce espectativa. Só quando lh’a trouxeram e a beijou com a loucura de quem se sente duas vezes pae, é que soube dos novos desastres que o saltearam. Que havia fazer senão resignar-se! Aquella planta debil e mimosa era o que lhe restava na vida; protegia-a com afan, sollicito, esmerado, como um amante, cioso de que um atomo impalpavel de pó a maculasse.
Em todos os momentos, em qualquer parte o velho e a creança agrupavam-se tão bem, que a natureza, por mais bella e surprehendente, era sempre accessoria, o fundo do quadro em que realçavam. N’este idylio encantador a creança passou a infancia mais descuidada e feliz; a liberdade dos campos, a serenidade do espirito deram-se as mãos no desenvolvimento d’ella.
Estava uma rapariga!
Linda, linda como os amores!
Quem a via esquecia-se a olhar, contemplava.
Era mais um seraphim do que uma creatura.
Os olhos tremeluziam-lhe com um fulgor metalico; pareciam nunca terem sido empanados pelas lagrimas. Cantava a toda a hora como um passarinho das balsas; mas as cantigas que modulava distraida, eram a expressão do segredo mais recondito da sua alma. Lavando na ribeira ao som da agua corrente, ouviram-lhe uma vez cantar:
Os meus olhos são dois peixes
Que nadam n’uma alagôa;
Choram lagrimas de sangue
Por uma certa pessoa.
E quem seria essa pessoa, a primeira que soube arrancar uma lagrima d’estes olhos tão puros e meigos? Maior que todos os poetas, mais do que Deus talvez, quem soube dar fórma ao sentimento d’aquelle coração virginal em uma gota de agua, uma lagrima caida, irmã gemea das que os anjos andam pelo mundo aparando em suas urnas crystalinas, para as engastarem como estrellas da noite saudosa no vacuo do firmamento. E ella cantava:
O coração e os olhos
São dois amantes leaes,
Quando o coração tem pena,
Logo os olhos dão signaes.
Ella espalhava ao vento os seus pezares, mas ninguem os percebia; o avô alegrava-se ao vêl-a sempre entrar em casa cantando; mal sabia que a harmonia sonorosa era o ruido de uma grande tormenta. A pobre criança soffria muito, amava! Ha na vida do coração um momento em que todas as emoções, impulsos e sentimentos se alevantam a um tempo, e vão apoz o primeiro que os acorda. São como os perfumes derramados pela primeira brisa que chega. É como um estado nascente da paixão.
Don Juan sabia por certo este segredo, conhecia o momento em que todas as mulheres se perdem, porque se dão ao primeiro que apparece.
Nem ella conhecia porque amava, nem tampouco o impossivel que se erguia entre o seu amor e o nascimento desegual d’aquelle que a endoudecera com as palavras balbuciadas tremendo. Amava o filho do antigo amigo de seu avô, dono da herdade em que habitava; estupido, uma d’essas almas boçaes, nascidas para deturparem tudo, porque não vêem, nem sonham senão o mal, mesmo no instante em que a linguagem mais intima da candura vem affagar-lhes o deserto em que o seu egoismo as esconde. Demais, elle tinha esta regularidade de feições, de uma monotonia que enfada, chata, insignificativa, mas que dizia bem com a alma que o animava, incapaz de qualquer acto generoso, de instinctos vis, mas julgando-se digno de todos os respeitos diante da sociedade. Tanto mais criminoso parecia, quanto era ainda novo, tambem criança, em quem se espera a ingenuidade dos primeiros annos que tudo perdôa.
Aquelle que a innocente rapariga amava, não pensava senão em perdel-a. Era tão facil! Estava desprevenida, não via a traição da onça refalsada, onde esperava uma attracção irresistivel! Mal haja quem não falla verdade n’este episodio mais santo e verdadeiro de toda a existencia.
A pobre pequena não sabia estas subtilezas do peccado; foi apoz os seus sentimentos, deixou-se adormecer ao som da voz que a illudia, para acordar com a gargalhada fria e insultante no fundo de um abysmo onde fôra atirada para sempre. A alegria que até ali tivera, e era a sua principal belleza, perdeu-a com a innocencia.
Ja não cantava; andava silenciosa, desolada, como na afflicção de uma dôr que se não exprime. A unica pessoa que a amára verdadeiramente no mundo, seu avô, não tinha alma para perguntar-lhe o que a trazia assim oppressa.
Ella envergonhava-se das lagrimas, represava-as, bebia-as! Uma vez, pela volta das trindades, o velho voltava do trabalho; pousou a enxada ao canto da choça. Sentaram-se á mesa frugal; não comiam, preoccupados por uma angustia que se não atreviam a confessar um ao outro.
A final o avô perguntou-lhe com uma doçura inexcedivel:
—O que tens?
Ella prorompeu n’este instante em uma torrente de lagrimas irrepressiveis; ia para fallar, os soluços intercortaram-lhe a voz; atirou-se ao pescoço do velhinho, estreitou-o a si, sem poder fallar.
Era o maior golpe que o desgraçado soldado experimentava, o ultimo que lhe abalava a vida.
Comprehendeu tudo.
Traduziu as meias palavras da queixa dolorida, e soube que o filho do seu protector fôra o seu algoz.
Não podia accusal-o, vingar-se; era uma horrivel collisão de deveres! Ficou com a immobilidade do espasmo; hirto, como Bonifacio VIII diante da multidão que ia para despedaçal-o. Sentado á mesa, com a mudez do assombro, assim permaneceu a noite toda, até que ao outro dia deram com elle regelado, cadaver!
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O desespero das imprecações do desgraçado da terra de Hus, deitado sobre o monturo, coberto de lepra, envergonhando-se da luz, desejando haver tido o sepulchro por berço e por seio que o escondesse a podridão e os vermes da terra, todo este cicio da immensa agonia da alma que se alevanta até Deus e na sua fraqueza lhe exproba a desegualdade da lucta, é uma das mais completas, a primeira manifestação do poema eterno da agonia.
Acorrentado sobre os fraguedos que te serviram de leito, Prometheu vencido, a Força e a Violencia guardaram os sarcasmos para a hora em que as extorsões convulsas não amedrontam os algozes; deixaram-te aos abutres famintos, fustigado dos ventos, mas ao menos o turbilhão erguia o grito da ameaça; o orvalho das noites refrescava-te o ardor da raiva, e o Oceano consolava-te porque te dizia: Prometheu, mesmo pregado contra essas rochas, sabes fallar ainda com liberdade! Deus banido, os outros deuses feriram-te porque nos alentaste a vida com a esperança; se é de força o soffrimento cumpra-se a fatalidade! Elles não conheciam as dôres fundas, que se não vêem, que matam lentamente, as dôres da alma, não as conheciam por isso não as infligiram. As grandes obras da arte, Job e Prometheu, foram os que fizeram sentir no mundo as maiores dôres; mas a dôr moral, que os deuses antigos desconheceram, a dôr muda, essa é uma creação do homem, o maior inimigo do homem.