Oh! meu amigo, oh! meu poeta, tu não sabes o que é um rapaz que sáe aos vinte annos da sua agua furtada, sem conhecer o mundo, ignorando a vida, tendo vivido alimentado por sonhos impossiveis, rico de todas as leituras, levado por ambições altivas, que o fazem grande, sentindo muito, amando tudo, e que o acaso atira ao meio de uma cidade opulenta, onde ninguem se conhece, onde todos se egualam e atropellam! Foi quando comprehendi aquelle tercetto de Dante, de uma profundesa nocturna, que me abysmava, cada vez que o repetia na mente:
No meio do caminho d’esta vida
Dei por mim na amplidão de selva escura,
Pois que a vereda certa era perdida.
Não sabes como o ruido de uma cidade immensa, o dédalo das ruas, a extranhesa e indifferença dos que passavam, me tornava solitario no meio das multidões. Tantas vozes perdidas no ár, e nenhuma para mim! Tantos braços cahidos com desdem, e sem nenhum me estreitar a si. Parecia-me o tumulto como um naufragio em que a ancia do salvamento nos torna egoistas, insensiveis para as agonias dos outros.
Todas as aspirações que me fizeram deixar o retiro benigno onde me voaram os primeiros annos, mostrando-me o mundo como uma grande festa, que me despertaram o desejo de ser tambem um dia conviva, iam-se apagando, abandonavam-me como no encontro fortuito de um desconhecido. Sentia-me pequeno, incapaz de luctar, de me impôr a admiração dos outros.
O que teria sido de mim nas horas monotonas do desalento, nos longos dias do desamparo, se não fôra a poesia! Até então tinha ella sido um folguedo, um brinco infantil, innocente, um vagido timido e suave da alma, que anceava a luz, como uma borboleta prateada antes de romper a chrysalida nocturna. Sem ter quem me fallasse, pedi á poesia os seus antigos carinhos, um alento de esperanças, um orvalho para refrescar a aridez do dezerto em que me via. Ella, a irmã dos tristes, a alma dos que soffrem, como veiu terna, espontanea, compassiva para consolar-me! Cantava, como uma criança, quando tem medo e procura esvaecer os vultos caprichosos que lhe voejam na phantasia. Foi a poesia tambem que salvou o desgraçado Jacopone, quando, abalado pelos desastres da vida, errando pelas ruas desvairado e doido, apupado da plebe, perseguido, veiu bater ás portas de um mosteiro, d’onde egualmente o repelliam. Foi ella que lhe deu a paz da cella e a serenidade da contemplação.
Oh santa e divina poesia! bem hajam os que choraram por que te descobriram e trouxeram á vida, como uma pérola nunca vista trazida do fundo do oceano. Bem hajam os que ainda choram, por que te guardam em si, como uma vestal solicita ateando continuamente a labareda do altar. Bem hajam os que hão de vir para soffrerem, por que nos comprehenderão sentindo-se aliviados.
Andava pela cidade sem destino, vagabundo; eu mesmo ia comprar o alimento para o dia, e enojava-me esta guerra mesquinha e vil do pequeno commercio para os que chegam incautos, inexperientes. Os fundos, e bem poucos que eram, iam-se reduzindo de dia para dia; estava quasi sem dinheiro, e com um orgulho e altivez incrivel para affrontar o futuro.
Enrolado, dentro de uma gaveta, tinha um manuscripto, que escrevera para distrair-me na solidão das minhas horas. Quando me lembrei d’elle comecei então a dar-lhe o valor que até alli não conhecia. A necessidade, que se approximava, a cada instante, fazia-me procurar n’elle todas as esperanças. Pobre manuscripto! Quem o poderá entender, quem dará dinheiro por essas paginas sem sentido, que a ninguem tocam e que nem ao menos fazem rir? Demais, estava escripto com uma letra inintelligivel, entrelinhado e sublinhado, em um papel repassado de tinta amarella, que mal se percebia. Quando me vi quasi sem dinheiro, á porta inferi, tornei a enrolar o manuscripto, metti-o debaixo do braço, e sahi. Passava pela porta dos editores e não me atrevia a entrar. Tinha medo que me insultassem com um riso de escarneo, por me verem tão criança e já com pretenções a auctor. Guardava sempre para ámanhã a extrema resolução, e tornava a trazer o livro para casa e a fechal-o na gaveta. Não imaginas que horas de tormentos! Eu temia que me apagassem com um riso todas estas esperanças, e me convencessem com argumentos assim da minha nullidade; bem conhecia o que me haviam de dizer, previa-o, cheguei a escrever a resposta que os editores me dariam: «O seu manuscripto não tem leitores; não é um romance, nem um conto; tem algumas paginas excellentes, mas não póde dar lucro de maneira alguma.»
Era esta a resposta que eu antecipava, para me não doêr tanto depois quando a recebesse. Um dia, o ultimo, sai a tremer com o manuscripto. Oh meu amigo, para que te hei de fallar n’estas cousas? Nem eu queria chegar a este ponto, quando te prometti contar a historia d’essa mulher, que tu conhecias melhor do que eu. N’esse dia, comecei a sentir povoar-se-me a soledade da vida, mas com outras dores, desesperanças novas.
Nos primeiros mezes que passei n’aquella cidade, tinha lido e estudado desesperadamente; a meditação fôra o refugio do tedio, mas era como um abutre que me lacerava as entranhas.
Vi-a! leve, delgada, divertida, olhando para todos, com uma graça encantadora de infancia, com uma gentileza de senhora, confundida pelo meio da plebe, sorrindo para os que a fitavam. Foi um d’esses sorrisos que me levou a alma presa. Que lucta obstinada e escura dentro d’esta pobre alma! o estudo e a paixão debatiam-se, arcavam, procuravam mutuamente supplantar-se. Eu tinha acabado de ler a Notre Dame de Paris, e achava em mim não sei que analogias sinistras com Claudio Frollo. A Notre Dame de Victor Hugo é a rosa emmurchecida, que rejuvenesce ao sol do mysticismo, é a Turris eburnea por quem o poeta se apaixona no sublime delirio da arte. Claudio Frollo! o desgraçado arcediago deixou tambem correr tranquilla a mocidade no retiro do estudo; depois a Esmeralda enfeitiça-o, dançando, no volteio vertiginoso das praças. São duas paixões que se combatem. Qual d’ellas triumphará? A fatalidade do impossivel?
Eu não conhecia o labyrintho de ruas da cidade populosa e immensa, ía em busca d’ella sem saber para onde. Encontrava-a quasi sempre, por uma coincidencia fatal. De uma vez, lembra-me ainda, foi quando a vi mais bella do que nunca, mesmo do que todas as mulheres. Estava confundida entre a multidão, que a abafava na sua onda; mas para mim realçava tanto como um carbunculo que reflecte em si a luz de todos os cirios. Via-lhe na expressão languida e curiosa a alma de todas as almas dos que a cercavam. O povo amontoara-se para vêr subir aos áres um balão. Era um dia de alegria e de festa; quando a descobri estava com os olhos erguidos para o céo. Oh! se ella soffresse, se implorasse a Deus uma consolação, não estaria mais sublime e radiante. O que a fazia confundir o azul dos seus olhos com a limpidez do firmamento era a curiosidade de criança. E contemplava o balão que subia, alheia á vozeria da gentalha. Desejaria elevar-se tambem ás alturas, e então estava pensando no devaneio d’esse desejo? Quem sabe os caprichos que passam pela alma de uma mulher? Quem póde contar todas as ondas que faz uma brisa perpassando levemente á flôr das aguas? Quando baixou os olhos á terra deu com os meus, que a contemplavam, sorriu-se. Oh! como aquelle sorriso me faria esquecer todos os pezares, me daria coragem para todas as luctas, me insuflaria alento para os mais inauditos esforços, se ella se não sorrise assim para todos.
Para todos! É este egoismo do sentimento que gera os nossos males, exacerba a mais terrivel das paixões, a mais selvagem e vil, que é só grande pela loucura. Eu tinha ciumes de todos, porque ella sorria prodiga de encantos, tanto para os que passavam indifferentes, como para o que a contemplava com o desinteresse com que se olha para um marmore antigo ou adorando a sua morbidez de Madona, como para aquelles espiritos baixos e abjectos que a fitavam desassombrados, preoccupados de um desejo faminto e estupido de sensualidade.
Criança e indiscreta, seria a innocencia que a fazia sorrir para todos, como uma borboleta que vôa de flor em flor, ou como uma rosa que embalsama de perfumes todas as virações que passam? Eu não sabia, e tinha medo da verdade. O amor triumphava completamente do estudo. A verdade, que procurava incansavel no ardor das vigilias, agora já não me mostrava os mesmos encantos. Queria que se escondesse, que se não deixasse tocar por mim, como um arcano divino. Quem podesse viver sempre illudido! Oh! verdade! verdade! para que vens agora, que te não busco, acordar-me tão cedo do sonho doirado?
A multidão dispersou-se ao vir da noite; eu fui seguindo para onde ella habitava. Ia perdido, a distancia, sem conhecer as ruas; a pequena, distrahida, como por descuido olhava para traz. Depois que soube onde morava, procurava a cada instante vel-a. Havia uma fatalidade que me atirava para essa mulher. Só, no meio de uma cidade grande, desconhecido, amava a perdição, e sentia-me arrastado, sem ter ao menos um Tiberge que me salvasse, como o amigo do infeliz Des Grieux, amante da Manon Lescaut. O futuro! nem já podia vêl-o, com a vertigem que um olhar fascinador me causava; apagava-se esse ideal que me dera tantas vezes coragem nos transes e provações da vida. Ria-me do futuro. E que é o futuro? De que me vale preparal-o, consummindo a vida, se me foge antes de o gosar? Viver obscuro! embora n’uma trapeira, mas ter um dia, ao menos, a mais pequena realidade de tantos sonhos! Ter que apalpar entre as visões brilhantes, sem corpo, e que nos mentem sempre. Viver obscuro! Que haverá melhor, quando se tem ao lado aquella que se ama e resume todos os encantos e riquezas do mundo na mais pequenina de suas fallas?
Sentia-me escorregar lentamente para o precipicio; a paixão dava-me uma lucidez com que explicava a loucura e a justificava diante da consciencia que me accusava de instinctos baixos, sem dignidade. Apparecia-me á janella todas as tardes; sentava-se ali e costurava. Tinha um orgulho indizivel ao lembrar-me que, de entre todo aquelle bulicio de gente desconhecida, havia uma mulher que pensava em mim e me estava esperando. O amor tornava-me timido; queria fallar-lhe e não sabia. Pedi então á poesia que fallasse por mim.
Para um amor puro, ethereo, que se esconde e não se atreve a declarar-se, nada o exprime melhor no seu vago ideal do que um soneto. Estudei esta fórma, a mais completa das fórmas lyricas. Elevado como a ode, melifluo e simples como o madrigal, sentencioso como o epigramma, é a synthese de todas as fórmas do lyrismo. Como o não desenvolveu o genio da Italia, nas suas elevações erotico-mysticas! Nas duas primeiras strophes do soneto, o sentimento revela-se pela imagem, occulta-se sob ella como indefinido, intangivel; o predominio da imagem tem a quadra, fórma livre para as representações do mundo exterior. Depois é que o sentimento se mostra no seu esplendor absorvendo em si todas as potencias da alma; é o terceto que o traduz, a triade fatidica, que se imprime mysteriosamente em todos os factos do espirito. Do accordo entre a imagem e o sentimento, provém a diversidade das fórmas poeticas. Se a imagem se mostra na sua complexidade finita, a poesia tem um caracter didactico e descriptivo; se o sentimento se sobreeleva á imagem e se manifesta na sua subjectividade, eis o lyrismo puro. É por isso que o soneto é a fórma suprema do lyrismo. Santificaram-n’o Dante, no retrato do amor ideal, na Vita Nuova; Petrarcha, exaltando o amor religioso de Laura na solidão de Vauclusa; Miguel Angelo, esse Protheu que encarna todas as fórmas do bello, e Vittoria Colonna, confidenciando ambos com os sonhos da arte, de um modo que ninguem macularia o seu platonismo radiante. É tambem nos sonetos religiosos de Lope de Vega, que se conhece a profundidade de sua alma sensivel, e nos de Camões, que se aspira o perfume da saudade de seus mallogrados amores.
Esquecia-me a dissertar sobre o soneto para evitar o ridiculo de ter assim cantado esse desvario. Eu a via todas as tardes á janella; tinha a seu lado um passarinho, que saltitava, chilreando contente, para quem fallava, dizendo o que queria que eu ouvisse. Como não perceberia elle estes segredos de amor, quando o estava embalando com o seu cantar soffrego, tremente. De uma vez atirei para dentro da janella este soneto traduzido do hespanhol de Lope de Vega. Não ha expressões humanas que possam dizer mais:
Dava alimento a um passarinho um dia
Lucinda, e pela estreita portinhola
Foi-se-lhe a ave das grades da gaiola
Ao vento livre, onde a cantar vivia.
Entre-rindo, a mãosinha ella estendia
Para o suster; na dor que a desconsola,
Diz (pois como a vergontea se estiola
Sem luz, sua face a pallidez tingia):
«Para onde vás? e deixas este ninho
«Que de frouxel teceu a doce amiga,
«Que a brincar com o teu bico se enamora?»
Ouviu-a enternecido o passarinho,
Bate as azas para a prisão antiga,
Que tanto póde uma mulher que chora.
O que haverá na poesia antiga que exceda este primor? Quem soube idealisar assim uma lagrima? Comprehenderia ella a profundidade d’este sentimento? E sorria-se de cada vez que lhe enviava novas confidencias, mas do mesmo modo que sorria para todos. Para todos! Sempre esta idéa infernal a envenenar-me todas as horas da vida. O poder das lagrimas que lhe descobri, a fraqueza que vence todas as forças, não tinha esse mysterio, quando as derramei ao vêr-me nú, abandonado pela esperança fagueira, que fugira como o passarinho de Lucinda. Disseram-me… nem eu sei o que me disseram. Fôra a mãe, a mesma que a susteve nos joelhos quando a atirou á vida e a amamentou com seu leite, quem a arrojou á perdição. Quem havia de adivinhar que sob um ár de candura, que a cercava de uma auréola divina, vergava uma alma oppressa pelos insultos dos que lhe pagavam! O que é uma cidade grande! Não se devoram com os horrores da anthropophagia, mas a vida vae continuamente alimentando-se da vida. Não sei, não posso contar-te tudo.»
Um anno depois encontrámo-nos; o pobre rapaz estava possuido novamente da paixão dos livros. Era uma anciedade de saber, não menos funesta, que o amputava para todos os gosos da vida. Não me atrevia a fallar no antigo amor; tinha medo de acordar-lhe as agonias que estariam talvez já adormecidas. De uma vez, estavamos juntos, vi passar a distancia uma rapariga, um typo raphaelico de candura; ia seguida por uma mulher velha e tropega. Era uma antithese que fazia pensar muito. Elle olhou-a e foi acompanhando-a com a vista, com certa anciedade; depois, como refreado pela reflexão, olhou para mim envergonhado, córou e disse, procurando esconder esta impressão repentina:
—É ella.
Não comprehendi immediatamente; fui barbaro, pedindo que me explicasse o mysterio d’essas palavras intercortadas. Elle apenas pôde proferir uma, mas que era o resumo de todas as dores e decepções, da compaixão que ainda sentia, do ideal a que tinha aspirado, da fatalidade a que tinha succumbido. Olhou-a, ella já ia longe; depois que a viu desapparecer, disse, contemplando ainda e com a voz a apagar-se:
—Uma ruina!