O bem molherigo de Portugal—A donzella Guiomar—moradora na Calçada. Filha do Cosmographo mór—O sabio—Os discipulos—Astrologia—Astronomia—O romance da Filha—Traição do pretendente. A cutilada—Entrada no Convento.
Escrevendo a respeito do «bom molherigo» de Portugal, e especialmente do «valor e animo das mulheres portuguezas», Duarte Nunes do Leão, no livrinho posthumo, a Descripção do Reino de Portugal, que seu sobrinho Gil fez imprimir, falla com particular enternecimento na «donzella moça D. Guiomar,» cujo animo levantado e varonil tanto o assombrou.
Foi o laborioso Licenciado eborense contemporaneo da endiabrada rapariga, e talvez a conhecesse, pois no minusculo mundo da intellectualidade d’esse tempo o Desembargador Duarte Nunes—chronista—e o Doutor Pedro Nunes—cosmographo-mór—embora a identidade dos patronimicos não seja prova de que houvesse parentesco, de certo cultivavam relações de espirito, e até porventura conviveram, visto que ambos habitaram por vezes, simultaneamente, Evora, Lisboa, e talvez mesmo Coimbra.
Acabou Duarte Nunes de escrever o seu livro em 1599, «estando recolhido na villa de Alverca, por causa do mal de que Deus nos livre» (a peste que então lavrava). E como é todo composto de notas, e esta de que nos occupamos foi registada nos seus canhenhos pouco depois do escandaloso caso, a que vamos assistir, não se atreveu o Doutor a esmiuçar circunstancias ou tirar a lume pormenores da picaresca aventura, que tornou celebre D. Guiomar, dando-lhe como alcunha: a da cutilada.
Não que o amedrontasse o genio assommado da resoluta menina, pois as referencias que houvesse de fazer-lhe seriam todas em seu abono. Mas talvez porque na familia do imbelle casquilho coimbrão, heroe da romanesca historia, havia gente de importancia, e creaturas rancorosas e vingativas, como veremos.
É de lastimar que, por esta ou por outra razão, não nos dêem mais informações acerca de D. Guiomar, nem o repositorio a que alludimos, nem as «Noticias chronologicas da Universidade de Coimbra», de Francisco Leitão, onde se encontram os famosos versos, já por alguem attribuidos a Camões:
«Senhora Dona Guiomar.
Moradora na Calçada…»
Mas, á falta de indiscreções de soalheiro, que tornariam mais picante a anecdota, temos de nos soccorrer dos estudos feitos ácerca da vida e obras do seu glorioso pae.
O nome d’este, mais que regionario, mais que nacional, mais que europeu, porque o seu engenho notavel, e a sciencia que possuiu ajudaram os navegadores portuguezes no proseguimento das suas derrotas, logrou fama universal.
Se, porém, as suas obras o tornaram celebre e lhe dão um logar unico entre aquelles, que teem contribuido para fazer crescer o patrimonio dos conhecimentos da humanidade, e se a invenção do Nonio, o pequeno instrumento tão precioso para as observações astronomicas, perpetuou a nome do genial Portuguez, a sua vida, sendo pouco conhecida, escassamente nos ajuda nas investigações para architectar o romance, que deixou a sua filha apontada á nossa curiosidade.
Entre os modernos escriptores, o sr. Alberto Pimentel, aproveitando-se do que diz Duarte Nunes do Leão, um pouco tambem das Noticias de Francisco Leitão, e mais que tudo da propria phantasia, compoz uma novella que, embora interessante, é como muitos dos chamados romances historicos, obra principalmente de imaginação.
Quando o distincto escriptor engendrou a sua Dama da Cutilada, novella que se encontra n’um volume intitulado Portugal de Cabelleira, editado no Pará, em 1875, quasi nada se sabia da vida de Pedro Nunes e nada da de sua filha, além da scena que adiante vamos relatar.
Mas com o recente movimento de estudos historicos, que tem trazido á luz factos ignorados, ou rectificado os confusos, na biographia do Cosmographo-Mór, podemos adiantar-nos um pouco (muito poucochinho!) no campo das conjecturas pelo que diz respeito á filha, conhecendo-lhe a raça, a nacionalidade da mãe, a sua situação social, a regalada mediania em que vivia, o nome do heroe da aventura amorosa, e os motivos plausiveis, que o levaram a um proceder descortez.
Depois de muitos escriptos, além dos que já apontámos, em que se trata das obras, e se dá algumas noticias da vida de Pedro Nunes, como são as de Ribeiro dos Santos, Stokler, Varnhagen, etc., veiu em 1889 Sousa Viterbo, o cego-vidente, que tantos documentos curiosos arrancou ao limbo dos archivos, e publicou nos seus Trabalhos nauticos dos Portuguezes um artigo ácerca de Pedro Nunes.
Depois, os estudos recentissimos dos distinctos academicos Dr. Luciano Pereira da Silva, General Brito Rebello, Antonio Baião, Rodolpho Guimarães, etc., trouxeram, além de valiosa contribuição para se dar um balanço sério aos tratados scientificos do Mathematico, alguns dados para accrescentar ás suas notas biographicas.
Antes de fallar da filha, fallemos d’elle e de seus discipulos.
Entre as individualidades gigantes do grande seculo portuguez, aquelle periodo aureo que decorre entre Aljubarrota e Alcacer-Kibir, avulta com singular relevo a do auctor do Tratado da Esphera, Dos Crepusculos, da Arte de Navegar, essa inconfundivel figura do grande Nonius.
O mathematico Pedro Nunes, philosopho e um quasi nada astrologo, como adiante veremos, foi um notavel professor de Artes, expressão que no seu tempo abrangia, segundo a divisão aristotelica—o trivio—em que figurava a grammatica, a rhetorica e a dialetica; e o quadrivio, constituido pela geometria, arithmetica, astronomia e musica.
A sua crescente fama apontou-o, desde moço á attenção de El-Rei D. Manoel, perspicaz farejador de meritos, e contrastador de capacidades, que lhe confiou a missão de ensinar as sciencias mathematicas e a philosophia a seus filhos.
Ensinou trez gerações de Principes e, o que ainda é melhor, formou o espirito scientifico, dos mais eminentes cerebros do seu tempo.
Que mestre e que discipulos!
Não só lhe ouviram as licções D. João, que depois foi Rei, e o Infante D. Luiz, «sacra anchora da nação, delicias de Portugal», e o Infante D. Henrique, depois Cardeal e Rei, e o Infante D. Duarte e D. Antonio Prior do Crato, e El-Rei D. Sebastião, mas aproveitaram-lhe os ensinamentos, além de successivas gerações de ouvintes anonymos, e de infinitos navegadores e pilotos, que foram guiados, na «liquida estrada», pelas luzes da sua arte de marear, D. João de Castro, o heroe da India, auctor dos Roteiros, e o proprio Camões!
D’entre os Principes, discipulo dilecto foi o Infante D. Luiz, quarto filho de El-Rei D. Manoel, nascido em 1506, a quem o Mestre dedicou o Tratado da Esphera.
Esse Principe deixou da sua memoria um rasto luminoso.
Poeta, generoso Mecenas, fogoso guerreiro, arguto estadista, faustoso amphytrião, homem de sciencia e amoroso cavalleiro, quando a gente começa a ler ácerca da sua vida deixa-se insensivelmente ficar a maldizer da sorte, que o poz em quarto logar na série dos filhos de El-Rei D. Manoel.
Seu irmão, o bisonho D. João III, sentia-lhe a superioridade, e, dominado por um semi-ciume, semi-admiração, ora reclamava a sua voz auctorisada no Conselho para a resolução de casos difficeis na administração do Reino, ora contrariava os seus projectos de emprezas guerreiras e allianças conjugaes. Foi contra a vontade do Rei, o qual mais de uma vez lhe promettera um commando, sem nunca o deixar ir batalhar em Africa ou na India, que resolveu fugir de Evora e clandestinamente partir com os navios de Antonio de Saldanha, para levar auxilio ao cunhado, o Imperador Carlos V, contra os infieis.
N’essa expedição pediu para se incorporar um pequenito ruivo, cuja viveza era notavel. Chamava-se Luiz de Camões e ambicionava tornar-se bem acceito do Infante.
Presentia, de certo, o turbulento pagenzito a gloria que o Infante havia de alcançar no cerco de Goleta e na jornada de Tunis, cuja conquista aconselhara, contra o parecer dos capitães de Carlos V.
Do coração amoroso d’este Infante dá testemunho a firmeza com que recusou desposar a Princeza Edwige, filha do Rei da Polonia, com o contrapeso do seu grande dote, porque a esse tempo andava captivo dos encantos da formosa Violante Gomes, a Pelicana, appetitosa judia, de quem havia de nascer o Prior do Crato.
Mas se foi elle proprio quem desviou aquelle casamento, foram outros que o impediram de casar com a Rainha de Escocia, Maria Stuart, de tragica e voluptuosa memoria; com a filha de Francisco I, de França; com Maria, Rainha de Inglaterra (the bloody Mary), com a filha de seu irmão D. Duarte, que foi Duqueza de Parma, e com a que foi mulher de Felippe II, projectos atropelados pelo irmão, pela cunhada, e pelo Imperador.
Tão bem dotado pela natureza e fadado para maiores feitos, este Principe cultivava carinhosamente as lettras. Attribuem-se-lhe, com mais ou menos fundamento, muitos dos sonetos que andam nas obras de Camões, e o Auto do D. Duardos, que figura nas de Gil Vicente, bem como o dos Captivos ou dos Turcos, que se suppunha perdido e que ultimamente foi encontrado.
Tambem d’elle existe um soneto, que se conserva na bibliotheca de Evora.
Além do cultivo das artes, e da faina a que o obrigava a sua alta posição social, applicava este Principe a sua actividade intellectual no estudo das sciencias mathematicas, em que foi leccionado por Pedro Nunes, e escreveu um Tratado dos modos, proporções e medidas, e outro sobre a Quadratura do circulo.
Condiscipulo era d’este Infante, nas licções de Pedro Nunes, um moço de nobre ascendencia, filho segundo de uma grande Casa, onde, como em muitas outras illustres, as lettras eram um segundo morgado, e que, levemente excentrico, revelara desde pequeno um assombroso engenho, e um caracter de rija tempera, que a Historia havia de eternizar nas pedras das fortalezas da India; nas phrases emphaticamente lapidares de Jacintho Freire de Andrade; nas paginas dos Roteiros celebres, nas estancias da Villa de Almada ou nas penedias e bosques silvestres de Penha Verde, para onde se retirava, escondendo soffregamente a lua de mel com uma prima, ou fugindo «com antecipada velhice» ás ambições da Côrte. Arredío e avesso a seducções mundanas, mais ambicioso de gloria que de mercês, e preferindo a honra a honrarias, se não era mimoso na aula régia, onde El-Rei D. João III «que o amava por valoroso, lhe era comtudo pouco affecto, por altivo,» foi tido em alto apreço na aula de Pedro Nunes, onde acompanhava o Infante D. Luiz, de quem foi intimo, e de quem, no fim da vida, havia de receber, com os emboras pela victoria, aquella famosa carta que começa: «Honrado Viso Rei!…»
Porque aquelle rapaz, que ouvia com tão grande proveito a exposição das doutrinas do Cosmographo e que havia d’ellas tirar noções para escrever, «nas horas que lhe perdoavam os cuidados da guerra, a descripção das Costas da India, signalando baixos e recifes, a altura da elevação do Polo em que estão as cidades, restingas, angras e enseadas, as monções dos ventos, condições das marés arrumando as linhas em taboas differentes; tudo com tão miuda geographia que o podera esta só obra fazer conhecido se já o não fôra, tanto pelo valor militar», esse rapaz, era o futuro heroe do Diu, era—D. João de Castro!
A ligação intellectual entre os dois grandes vultos que foram o Infante D. Luiz e D. João de Castro, e a influencia de cada um nas sciencias do seu tempo, dariam ensejo para um capitulo interessante, que seria todo em louvor e exaltação dos merecimentos do mestre commum, o mathematico Nunes.
Outros discipulos teve elle, por diversos motivos attrahentes, e que dariam tambem pretexto a pittorescos quadros evocativos da epocha, se seguissemos em imaginação o doutor envergando o seu gibão de bombazina parda, montado em mula pacata, caminhando pelas congostas e viellas da Lisboa mourisca, em direcção á Alcaçava, onde El-Rei residia ainda, emquanto não se terminavam as obras dos Paços da Ribeira.
Nos aposentos reaes esperavam os Infantesinhos. E, chegado alli, levemente curvado pelo habito do estudo, vel-o-hiamos dobrar o joelho perante esses pequenos Infantes que, uns mais rebeldes, outros menos, lhe ouviam as praticas.
O seu perfil adunco, revelador de homem de nação, desenhando-se sobre o damasco vermelho das paredes, daria á scena uns tons caracteristicos e significadores das relações que entre as duas raças até esse tempo existiam. De uma parte, os christãos aproveitando as faculdades scientificas ou financeiras dos judeus de quem colhiam conhecimentos, remedios medicinaes, bom manejo de finanças; e da outra os hebreus recebendo em troca uma certa tolerancia nas leis e nos costumes, e auferindo elevados juros de suas agencias.
Breve ia acabar este estado de cousas, com o começo das perseguições já proximas.
Entretanto, a fama de christão novo, que vagamente pairava sobre o Cosmographo, nunca o prejudicou directamente.
Reis e Principes, mesmo depois, em tempo do Cardeal Rei, intransigente e inquisidor, tinham pelo glorioso mathematico carinhosa predilecção.
É que recordavam, talvez, as sessões de estudo nos palacios reaes e nos aposentos dos Infantes, onde D. João III ainda tamanino aprendera noções geographicas, arithmeticas e os prolegomenos da philosophia aristotelica; onde o Infante, depois Cardeal D. Henrique, ouvira as theorias de Ptolomeu e as correcções apresentadas áquelle systhema, pelo sabio professor; e onde o Infante D. Duarte, depois da sua licção com mestre André de Rezende, empregado com o resumir em latim o tratado De Predicabilibus e as cathegorias de Aristoteles, ou em declamar de côr o livro De officiis, de Marco Tulio, recitando-o tambem ao revez, pegando na ultima palavra e palrando todo o capitulo de deante para traz, se entregava, com a memoria ainda desarticulada por este exercicio, ás prelecções de Pedro Nunes, que lhe explicava como traduzira do latim o livro sobre a esphera, com que Sacro Bosco, o monge inglez, revolucionara a astronomia.
Tambem o sabio mestre dera prelecções de Philosophia e Mathematica ás filhas d’este Infante. Primeiramente á Senhora D. Maria que havia de vir a ser Princeza de Parma por casar com Alexandre Farnesio, creaturinha meuda e feia, mas com uma certa graça no vestir e grande applicação ás boas lettras latinas e gregas. Tão impressionavel era esta com as bellezas da poesia que, abrindo por duas vezes as obras de Petrarcha, as fechou subitamente, como castigando-se, e temendo que o seu espirito devoto fosse excessivamente captivado pelas profanidades do adorador de Laura. Para esta deviam ser apaziguamento da sensibilidade, e perservativo de tentações mundanas, as demonstrações algebricas, e os elementos de Euclides, que o mestre lhe ministrava.
Egualmente, e com proveito semelhante, recebia d’elle licções a Infantasinha D. Catharina, que depois foi Duqueza de Bragança, concorrente com Filippe II ao throno de Portugal, e avó de El-Rei D. João IV.
Dois discipulos teve ainda Pedro Nunes, cujos genios altaneiros pareciam estar destinados a reagir contra a disciplina dos raciocinios mathematicos, e a cujos animos insubmissos parecia dever repugnar o rigor das demonstrações algebricas:—El-Rei D. Sebastião, e D. Antonio, Prior do Crato.
E, comtudo, ambos aquelles espiritos se deixaram attrahir pela seducção do genio do mestre.
D. Antonio «cuja viveza era tanta que o poz em estado de encontrar no Cardeal algum desagrado» ouvira Pedro Nunes com preveito, segundo se affirma, principalmente em Logica e Metaphysica.
Emquanto a D. Sebastião, o irriquieto ephebo corôado, todo elle absorvido no maravilhoso da missão que se impuzera, levado pela attracção dos perigos que o fazia buscar a lucta com animaes ferozes, a braveza das ondas do mar em noites de temporal, as corridas doidas nos matagaes do Alemtejo, e os misanthropicos recolhimentos nos bosques sombrios de Cintra; essa alma de heroe n’um corpo desiquilibrado, symbolo de uma raça e de uma nação decadentes; esse a quem chamaram o Nun’Alvares da perdição, e que tinha a ferverem-lhe no cerebro as imagens do Rei Arthur e dos companheiros da Tavola Redonda; o capitão de Deus como a si proprio se appellidava; embora por indole pareça pouco disposto a attender com serenidade ás regras para resolver equações de segundo grau, ou a seguir as tentativas para obter o maximo divisor de duas expressões algebricas, é certo que ouvia com tão feliz resultado as lições de Pedro Nunes e que fez por sua propria iniciativa uns commentarios á Esphera de Sacro Bosco, a que Bavão no Portugal cuidadoso e lastimado, chama «muy doutos, e engenhosos os quaes vistos pelos peritos na materia não acharão que emendar».
Eram as lições dadas n’aquella sala dos Paços da Ribeira onde estava preparado um bofete preto de pau santo, com o seu tinteiro, pennas, papel e uma palmatoria de marfim, sem disciplinas. (Não reza a chronica se este delicado instrumento de fustigação e de correcção pedagogica era applicado por D. Aleixo de Menezes, ou por algum dos Padres da Companhia, ahi presentes, ás mãos nervosas do pequeno D. Sebastião. Mas era decerto á dos turbulentos moços fidalgos da chacotada d’El-Rei, que tambem recebiam lições.) Sobre o bofete a ampulheta marcava, com o correr da areia, a hora destinada á licção, emquanto n’uma cadeira de espaldas o discipulo attento escutava a palavra do cosmographo explicando-lhe o movimento das espheras. Uma parte do saber de Pedro Nunes interessaria principalmente o imaginoso Rei—a astrologia—á qual, apezar da sua probidade scientifica, o grande espirito do sabio, influenciado pelas ideias ainda imperantes, não se poude eximir completamente.
Conhecia o moço Rei talvez, e isso devia inquietar-lhe o animo, o aviso sinistro com que o Mestre prognosticára a sua Avó, a Rainha D. Catharina, desgraças para o Seu Reinado se não addiasse a solemnidade da entrega.
Conta assim o caso o chronista no seu Portugal cuidadoso e lastimado. «Convocou-se a nobreza e Prelados do Reino; e estando tudo prompto (no mez de Janeiro de 1568) para se fazer a Real funcção da entrega em terça-feira 20 do dito mez, dia de S. Sebastião com que El-Rei cumpria justamente os quatorze annos, dois dias antes veio fallar á Rainha Pedro Nunez cosmographo-mór do Reino, e mestre nas mathematicas d’El-Rei e lhe disse: que posto que elle exercitava pouco a parte da mathematica que julga de sucessos futuros pela ter por fallivel e cheia de incerteza, comtudo que o grande amor que tinha a El-Rei e o zelo do seu serviço, e bem da sua pessoa e obrigavão a sahir do seu costume, e levantar figura sobre o dia, e tempo em que se lhe havia de fazer entrega do governo, e se desvelára em apurar o juizo d’ella quanto permittia sua sciencia e as regras de mathematica e depois de muy bem conciderado o que alcançava, lhe pareceo conveniente avisar a sua Alteza que, sem dar a entender a causa porque o fazia, cuidasse muito em dilatar o acto da entrega alguns dias, ainda que não fossem mais que tres, porque elle affirmava segundo o que entendia, que se El-Rey começasse a governar n’aquelle dia, seria seu Reinado instavel, cheio de inquietação ordinaria e de muy pouca dura.»
Cento e trinta e cinco annos antes, mestre Guedelha, um astrologo tambem, fizera prophecia semelhante a El-Rei D. Duarte, assegurando-lhe que Jupiter ia retrogrado e o Sol decahido. Então, como agora, o aviso fôra desattendido.
A Rainha D. Catharina agradecendo o zelo do cosmographo-mór, declarou-lhe que já estava tudo preparado para o dia de S. Sebastião; que o Cardeal julgaria ridicula a causa do addiamento e que era melhor encommendar o negocio a Deus, guardando em segredo o que lhe tinha communicado.
Pedro Nunes atalhou dizendo:
—«Até essa razão tinha eu por tam certa que estive para o dizer a Vossa Alteza antes de lha ouvir; e assim vejo que são inevitaveis os trabalhos d’este Reyno da parte dos quaes Vossa Alteza será testemunha ainda que não dou remate d’elles.»
Dá-nos este dialogo uma impressão inesperada, porquanto (circumstancia curiosa!) é a Rainha viuva, orphã de todos os filhos, com a alma retalhada por tantos desfortunios, e com o espirito sempre alvoroçado pelo temperamento do seu fogoso neto; é a velhinha que a desventura parecia dever predispôr para acceitar todos os vaticinios e presagios dados por essa sciencia ainda então respeitada e temida, que affasta o prognostico agourento, e é o sabio com a intelligencia habituada ás demonstrações rigorosas e positivas que attende ás indicações mysteriosas dadas pela conjugação dos astros.
É que a infelicitada Rainha encommendava «todo o negocio a Deus, em cuja mão estavam os bons successos» e o astrologo, cosmographo-mór, que se julgára obrigado a «levantar figura recorrendo á parte da Mathematica que julga dos successos futuros» entendia que, embora tudo estivesse dependente da Vontade de Deus, deviam respeitar-se as causas segundas.
E quem sabe, se ainda um dia a sciencia, no seu caminhar, não dará razão a mestre Guedelha e ao Dr. Pedro Nunes!
Vaticinios, agouros, presagios, horoscopos, vôos d’aves, sentenças de pythonizas, threnos de prophetas, prognosticos de astrologos, formam um cortejo de tentativas para conhecer a acção futura das forças mysteriosas da natureza, actuando sobre os destinos humanos. E tambem infinda é a serie de esforços empregados para conjurar os maleficios de entes sobrenaturaes. Amuletos, sacrificios a divindades hostis, mãos de finado, varas de condão, figas de osso, cordas de enforcado; e os segredos da magia branca, da negra, bem como de todas as sciencias occultas desde a nigromancia á cabala; os dictames da astrologia contra a conjuncção dos astros; os exorcismos da Egreja contra as bruxas, duendes, lobishomens, vampiros, diabos, ou contra as desgraças annunciadas pelo piar das corujas e o uivar dos cães; tudo isso que os espiritos fortes englobaram na palavra superstição, e que é como que um presentir de leis ignoradas pela intelligencia limitadissima do homem, na perpetua ancia de descobrir meios de defender a sua miserrima fraqueza contra o poder dos perigos que o rodeiam, tudo isso occupou durante seculos, e continúa a occupar (ai de nós!) o fragil cerebro da humanidade.
Pedro Nunes, annunciando á Rainha D. Catharina desgraças para o reinado do neto, é bem o sabio do seu tempo—crente em Deus e na astrologia, mas já levemente sceptico, não confiando muito n’essa sciencia tanta vez fallivel, e comtudo (concebivel contradicção) receiando, ainda assim, ver cumpridos os prenuncios sinistros.
Quem sabe se recolhendo n’esse dia a casa, e topando com a sua Guiomarzita, ainda então pequena, não encontraria na conjuncção dos astros motivo para a apertar mais soffregamente contra o peito, com receio de vir a perdel-a?…
Mas não antecipemos.
Tivesse ou não suspeita dos avisos do mestre, fundados no zelo pelo seu serviço, e amor pela sua pessoa, El-Rei D. Sebastião demonstrou-lhe sempre affecto e consideração.
Em 1572 manda-o vir de Coimbra, onde residia, já jubilado, para o ouvir acerca do projecto que então affagava de reformar os pesos e medidas do Reino.
Eram frequentes as vindas a Lisboa de Pedro Nunes, pois, por occasião das partidas das frotas para o Ultramar, era reclamado o seu saber para superintender nos aprestos scientificos das náos, e para instruir os pilotos, e orientar os navegadores, cabendo-lhe assim um farto quinhão da gloria d’aquelles, que contribuiram para a grandeza d’este torrãozinho lusitano, e para facilitar a empreza dos seus habitantes na derrota heroica iniciada pelo Infante D. Henrique.
Outra especie de gloria estava ainda reservada para o genial cosmographo.
Além de ser mestre do padre Clavio, denominado o Euclides do seculo XVI, reformador do kalendario romano, que tem o nome de gregoriano, teve como discipulo um vulto que excede todos.
Indirectamente, por meio das suas obras, se não por alguma communicação directa, que desconhecemos, Pedro Nunes foi o mestre de Camões, e com elle collaborou nos Lusiadas.
Poeta elle proprio, não nos seus versos, que são mediocres, mas no vôo de aguia com que a sua imaginação atravessou os espaços e pairou nas regiões sidereas, fluctuando na grande machina do mundo entre as nove espheras, o cosmographo, reformador de toda a sciencia astronomica do seu tempo, impressionou a alma lyrica do grande poeta, que, nas suas obras, colheu noções acerca dos céos que rodeiam a terra, das estrellas, dos astros, dos planetas e dos movimentos dos corpos, que povoam os espaços celestes.
As theorias do astronomo, fundindo-se no cadinho cerebral do épico, transformam-se nos mais formosos decassylabos com que, em lingua humana, um poeta póde fallar dos phenomenos da natureza, assimilando o rigor da sciencia e a harmonia d’um lyrismo cheio de pittoresco.
Nos eruditos artigos publicados na Revista da Universidade de Coimbra pelo Dr. Luciano Pereira da Silva, intitulados: A Astronomia dos Lusiadas, o sabio professor expõe lucidamente o estado das sciencias astronomicas no seculo XVI, as ideias de Pedro Nunes e a applicação que d’ellas fez Luiz de Camões com a leitura do Tratado da Esphera publicado em 1537.
A esses artigos remettemos o leitor, curioso d’estes assumptos, que, se ainda os não conhece, nos dará alviçaras pelo bom aviso. Como tambem lhe aconselhamos os preciosos trabalhos do actual Director da Torre do Tombo, o Sr. Antonio Baião, elucidativos para a biographia do cosmographo, rectificando erros, e ampliando-a com noticias saccadas dos processos do Santo Officio. Tambem valiosos repositorios de elementos para conhecer a vida e obras de Pedro Nunes são os dois opusculos publicados pelo distincto academico Rodolpho Guimarães, e os artigos do General Brito Rebello.
Não nos adeantam, porém muito estes trabalhos acerca da filha famosa do cosmographo, e da sua ruidoza aventura.
Ainda assim os processos da Inquisição com os depoimentos dos sobrinhos-netos, e de varias testemunhas encaminham-nos o espirito em conjecturas provaveis.
Envelhecia docemente em Coimbra, onde definitivamente estabelecera residencia, n’umas casas da Calçada, (provavelmente entre o Convento de Santa Cruz e a congosta que subia pelo Arco de Almedina,) o velho professor estimado por uns, venerado por outros, discutido por alguns que lhe contestavam os acertos scientificos e invejado por muitos, pois, além da gloria que o aureolava, attribuiam-lhe bens de fortuna.
A mulher, D. Guiomar de Areas, uma hespanhola de que se namorara quando em 1523 (tinha então 21 annos) lia em Salamanca uma cadeira de mathematica, morrera havia tempo deixando-lhe algumas filhas e dois filhos. Estes foram para a India. As meninas, umas iam casando, as outras faziam por isso. Um alvará do começo do reinado de D. Sebastião estabelecia que: «havendo respeito aos serviços que o Doutor Pedro Nunes meu cosmographo-mór, tem feito a El-Rei meu senhor hei por bem de lhe fazer mercê para a pessoa que casar com uma de suas filhas do officio de contador de Elvas»… Facil foi por isso á mais velha D. Briolanja casar em 1566 com Manoel da Gama Lobo que recebeu em dote aquelle officio depois transformado n’uma tença de 50.000 reaes.
D. Francisca, a segunda, foi professar á Lorvão, e alli morreu freira.
D. Guiomar, que acompanhava seu pae, deixou-se galantear por um rapaz pertencente a familia distincta da terra, um tal Heitor de Sá, de quem nada mais se sabe alem da proeza que vamos referir.
Devia a rapariga ser formosa. Assim o attestam as poesias que lhe chamam bella dama, o que não custa a crer imaginando um perfil hebraico, temperado pela graça castelhana.
Além dos encantos pessoaes seria chamariz para o pretendente a segurança de altas protecções e a perspectiva da herança paterna.
Teria o cosmographo conhecimento do namorico?
E contrariaria elle os amores de sua filha, ou por egoismo de velho, que vê fugir-lhe a companhia, ou por conhecer pecha na familia do Heitor?
Houve um Diogo de Sá, talvez parente d’este, que n’um livro intitulado—De navigatione libri tres—atacava vivamente Pedro Nunes; e outro Diogo de Sá (senão o mesmo) que lançara contra os hereges um escripto, a que alguem já attribuiu a intenção de renovar contra Pedro Nunes a perseguição em tempo iniciada contra Damião de Goes.
Fosse o que fosse, Heitor de Sá, por sua parte, começou a esfriar, diminuindo com esquivança as suas assiduidades, e causando com esse desapego grande desgosto a D. Guiomar, a quem prometera casamento. Alguns supuzeram que a fama de christão novo, agora assacada a Pedro Nunes, afastara o pretendente, a quem os parentes davam reproche por tencionar assim conspurcar-lhes o sangue limpo.
É facil de imaginar quanto a deserção de Heitor affrontou D. Guiomar, que, vendo-se tão dolorosamente desprezada, adoptou o expediente de citar o perjuro perante o Bispo da diocese, que então era D. Manoel de Menezes.
Assim, convocado pela intimação, apoiada com a auctoridade do Prelado, o remisso noivo compareceu na egreja de S. João de Almedina, contigua aos paços episcopaes.
Renovado pelo Bispo D. Bernardo no seculo XII, o pequeno templo tinha na sua architectura, antes das ultimas transformações que soffreu, um vago parentesco, um ar de familia, com a visinha Sé, cujas naves romanicas haviam sido scenario de tanto drama no decurso dos tempos.
Tambem agora, sob as abobadas que abrigavam o tumulo do Bispo D. Paterno, sentia-se um desassocego de animos, precursor de borrasca, nos grupos que vinham chegando com desvairados impulsos.
Inclinavam-se uns á parte de D. Guiomar, cuja sisudez e mocidade recatadas eram atropeladas pela offensa recebida. E lamentavam que a injuria feita á velhice veneranda do cosmographo não pudesse ser desaggravada pelos filhos agora ausentes na India.
Outros, da parcialidade dos Sás, rosnavam maldizentes, salpicando de doestos a filha de Pedro Nunes, e alcunhando-a de enredadora.
Para ella aquelle momento era grave e decisivo. Envolta no manteu negro que fazia sobresahir a sua pallidez, cravava os olhos no chão, atraiçoando-lhe apenas a commoção o palpitar das azas do nariz, revelador do seu natural irrascivel.
O Bispo sizudo e grave, arrogando-se auctoridade de juiz inflexivel, sentia comtudo no intimo um pendor favoravel á justiça da accusadora. Adivinha-se essa parcialidade de animo no decurso dos acontecimentos narrados por Duarte Nunes de Leão, contemporaneo do drama, e nas declarações dos sobrinhos da heroina quando foram depôr, passados annos, no Tribunal do Santo Officio.
N’aquelle momento, porém, se lá bem no fundo orientava a sua sympathia para a filha do cosmographo, pelo interesse que lhe merecia a situação de desamparo em que a via, pela consideração que votava ao sabio, agora velho e alquebrado, cuja reputação enchia o mundo, e se tambem era pouco caroavel d’essa familia dos Sás, de onde brotara o petulante pimpolho, que alli se apresentava, a attitude do Prelado, julgador austero e pastor das suas ovelhas, era da mais intransigente impassibilidade.
Tem esta scena, passada em S. João de Almedina, de Coimbra, um sabor medieval, embora succedesse no declinar do seculo XVI.
Tinham affluido muitos curiosos áquella especie de tribunal, ou pretorio erecto sob as abobadas sagradas do vetusto templo, presidido pelo Bispo, que lhe dava a um tempo o aspecto solemne, que a sua alta cathegoria impunha, e uma feição familiar da auctoridade paternal para com os filhos espirituaes.
A assembléa escutava attenta as interrogações do Prelado.
Quando este perguntou a Heitor de Sá, se effectivamente, promettera casamento a D. Guiomar, como ella affirmára, ou se, como alguem chegara a avançar, esse casamento se tinha realizado, houve em todo o auditorio uma suspensão…
As palavras do accusado echoaram claras e peremptorias.
Assegurou que nunca fizera tal promettimento, e que nem mesmo conhecia D. Guiomar.
Todos os olhos se voltaram para ella interrogativos. Em alguns apontava a ironia, n’outros o desdem, em muitos commiseração.
Então, a pallidez da sua physionomia tornou-se mais livida, o olhar mais negro, e n’aquella alma de hespanhola, fermentada pelos rancores de israelita, levantou-se impetuosa uma onda de indignação e de odio.
Tremeram-lhe as mãos esguias com instinctivo furor. A direita, encontrando ao alcance o canivete do estojo, que lhe pendia da cinta, levantou-se ameaçadora e antes que alguem pudesse suspender-lhe o gesto, a enfurecida rapariga, com segurança de punho, retalhou o rosto do perfido com uma funda cutilada.
Impellido pela agudeza da dôr e pela perturbação que lhe causava o borbotár do sangue da ferida hiante, o malfadado heroe arrancou da espada e arremetteu contra D. Guiomar.
Mas, ou porque a vista turvada o não deixasse bem enxergal-a, ou porque um resto de cavalheirismo o impedisse de commetter outra cobardia, descarregou a espadeirada sobre uma columna da egreja.
A este tempo, já D. Guiomar cahira de joelhos perante o altar, pedindo perdão a Deus pelo sacrilegio commettido, e ao Bispo pelo desacato e escandalo que causara.
É facil de imaginar o sentimento de estupor que nos primeiros momentos se apoderou da assembléa e o borborinho que lhe succedeu.
Os parciaes dos Sás reclamavam energicamente a punição da culpada.
Os animos iam levedando de fórma que ameaçavam tumultos.
O Bispo atalhou promptamente, ordenando que D. Guiomar fosse levada para o Aljube, onde permaneceu. Mas não se contentava a familia de Heitor com tanta benignidade. Exigiam castigo mais severo. E não o obtendo recorreram aos tribunaes, moveram influencias, e conseguiram que da Côrte viesse um magistrado com provisões, em vista das quaes a desditosa Guiomar foi removida para o Castello.
Resentido com esta affronta, o Bispo D. Manoel de Menezes, escreveu a El-Rei, e como que para affirmar a sua auctoridade e interessar mais profundamente aquillo a que hoje chamariamos a opinião publica, lançou sobre a cidade um interdicto cujo effeito era: cessatio a divinis, expediente bem doloroso para a população, que durante trez ou quatro mezes esteve privada de soccorros espirituaes, e por isso em permanente excitação de animos.
Entretanto, mandava retirar da masmorra a prisioneira, e tornava a fazel-a conduzir para a Aljube, carcere menos duro que o do Castello.
Grande alarido dos Sás, que chegaram a fazer correr insidiosas suspeitas ácerca dos motivos por que o Bispo favorecia D. Guiomar.
O velho cosmographo consumia-se de desgosto. A sua nomeada corria agora mundo, entrançada com o apimentado escandalo.
Pasto das linguas chilreadoras, o caso foi aproveitado pelos poetas palreiros, que logo começaram a mettel-o nos seus villancetes, chacotas e canções.
Pela calada das noites luarentas ouvia-se por vezes a voz d’um estudante, acompanhada pela viola, entoar:
«Senhora Dona Guiomar,
Moradora na Calçada,
Que destes a cutilada,
Senhora Dona Guiomar
Que moraveis na Calçada,
Mereceis tença d’el-Rei
Pois destes a cutilada».
e outra voz respondia:
«Foi mui grande o valor d’ella
E pouca a vergonha d’elle
Mas se ella ficou sem elle
Elle não ficou sem ella».
Era ambigua a interpretação d’esta quadra. Mas o sentimento geral continuava a ser favoravel ao cosmographo e á filha, pois que até os vates mais graves entraram a thuribulal-a com sonetos encomiasticos, que correram impressos.
Ainda em 1826, isto é, perto de trezentos annos depois de ella morta, foi dado á estampa em Coimbra o folheto, hoje raro que tem por titulo: Sonetos a D. Guiomar filha do Dr. Pedro Nunes, sobre a cutilada que deu em Coimbra, opusculo attribuido a Joaquim Ignacio de Freitas. Revelam os versos engenhos chochos, mas enthusiasmos vibrantes quando declamam:
«Alma formosa e bella produzida
Do famoso cosmographo e divino,
Illustre gloria, espelho crystallino,
Corôa das mulheres mais subida:
Valerosa donzella esclarecida,
Esmalte glorioso do ouro fino,
Celebre-se teu nome de contino,
Tua fama, tua honra, tua vida.
Seja com louvor alto mui cantado
D’antiga Coimbra o blasão famoso,
Serpente, Leão, Vaso, e bella dama.
E seja juntamente sublimado
Dona Guiomar, o teu peito animoso,
Pois fez um feito illustre de tal fama».
E outro soneto, depois de evocar Cleopatra, e Lucrecia, termina assim:
«Quem é que a nossa fama escureceu?
Guiomar, que se vingou co’o duro córte
De quem tingir sua fama pretendeu.
Vive na terra? não, porque escolheu
Um meio tão seguro em vida e morte,
Que estando cá na terra está no Céo.»
Refere-se este ultimo verso á sua clausura, porque o Pae entendeu que a melhor solução para o melindroso caso seria que D. Guiomar entrasse n’um convento, á semelhança da irmã que professara em Lorvão.
- Manoel de Menezes tinha uma irmã abbadessa em Santa Clara. Suggeriu a adopção d’aquelle mosteiro por tantos titulos nobre.
Acceito o alvitre, promptamente começou a espalhar-se na cidade que a formosa protagonista de tão dramatico reboliço ia sahir do Aljube.
Novamente se alvoroçaram os parentes amigos e sequazes de Heitor de Sá, cuja ferida apenas cicatrizava, emquanto o nome de D. Guiomar corria, já accrescentado com a prestigiosa alcunha de: a da cutilada.
Resolveram por isso tirar estrondosa vingança na passagem d’ella para o Mosteiro.
O caso era embaraçoso. Resolveu-o a animosa rapariga por uma fórma original.
Estava-se nas proximidades da Semana Santa, que em Santa Clara era celebrada com solemnidades pomposas. As tochas de cêra e os pannos para realizar os officios religiosos, eram conduzidos para aquelle convento em grandes canastras, ás costas de homens.
A valorosa aspirante a noviça, de concerto com as freiras, mandou ir ao Aljube um d’esses moços com o seu canastrão, e n’elle se acommodou, como tocha do cereeiro.
O trajecto não era longo, e o carregador foi escolhido entre os possantes.
Seguiu elle caminho com a sua carga pela Calçada, em direcção á margem esquerda do rio, onde estava situado o Convento de Santa Clara (hoje em ruinas).
Proximo á Portagem, e mais adiante, n’aquelle alargar dos peitoris, em circulo, a que chamavam o O da ponte, numerosos grupos em fallatorio ruidoso dispunham-se a atacar o cortejo que, suppunham, havia de conduzir a prisioneira.
Entretanto, o carregador caminhava, não sem inquietação, receiando que os discolos, descobrindo o embuste, o atacassem.
Lá de dentro do seu escondedouro, a destemida Guiomar animava-o, exhortando-o a proseguir.
«Que nada temesse (dizia baixinho), porque Deus, a quem ia servir, os guardaria.»
Em volta o tumulto ia crescendo. Homens armados dispunham-se a atacar os que provavelmente viriam guardando a protegida do Bispo.
Previa-se rixa bravia. E emquanto as bravatas ameaçadoras recrudesciam, e se cruzavam no ar imprecações violentas, a voz doce de D. Guiomar, despercebida dos energumenos, acompanhava n’um rythmo suave os passos cadenciados do seu rude salvador.
Finalmente, chegaram ao Mosteiro!
A madre rodeira, prevenida, correu a aldraba, entreabriu meia porta que, passado o homem com a sua canastra, se fechou sobre o batente, emquanto o ganhão se sumia nas sombras da crasta, onde depositou o precioso fardo.
Estava salva a filha do cosmographo!
A historia é muda sobre a sua vida conventual.
Cá fóra, porém, as paixões humanas continuaram agitando-se em volta do seu nome.
Pedro Nunes, alquebrado pela edade, roido de maguas, e talvez com saudades da filha, deixou-se morrer pouco depois.
Os Sás não abrandaram na sua sanha, e continuaram a calumniosa tarefa, distingindo peçonha sobre a reputação do Bispo, conforme consta de umas notas marginaes postas n’um exemplar do livro—Descripção de Portugal—, que existia na livraria dos Condes de Vimieiro e em que se dizia: «Esta obra toda foi feita pelo Bispo D. Manuel de Menezes, não sei se a canastra, mas sei que foi levada á conta e cargo do Bispo, cuja irmã era abbadessa.»
Uma tal Maria Barreira, no depoimento do processo intentado em 1624 contra os netos do cosmographo, que eram accusados de judaisar, accentúa mais e diz: «quando de sua casa D. Guiomar fora a perguntas á egreja, e depois da cutilada, os Sás se juntaram e insultaram o Bispo D. Manuel de Menezes, entendendo que elle favorecia a dita D. Guiomar.»
N’esse curioso processo, sente-se palpavel o odio dos Sás, sedentos de vingança por o seu parente ter apanhado pelas queixadas (palavras de uma testemunha) a celebre cutilada e vão n’um bando, como gibelinos contra guelfos, perseguindo os sobrinhos de D. Guiomar…
Emquanto na turbulenta Coimbra, outr’ora tão pacata, capuletos e montecchios se crivam com dardos envenenados, Romeu e Julieta, ao revez dos amantes de Verona, continuam distanciando-se cada vez mais, de corpo e de espirito. Elle, curando a cicatriz que, mau grado seu, lhe ha de perpetuar a memoria com ridiculosa fama. Ella professando em Santa Clara, abafando no habito cinzento rancores ou despeitos, e porventura afogando em lagrimas ainda vestigios do seu amor desprezado!