SUMMARIO

O livro na antiguidade. A paixão pelo livro—Bibliographos, bibliophilos, bibliomaniacos, bibliolatras, bibliotaphios, biblioclastas, bibliophobos. As encadernações. O livro do futuro—Sociedade de Bibliophilos Barbosa Machado.

Affirma Renan algures que, de hoje a algumas centenas ou milhares de annos, terão completamente desapparecido da memoria dos homens todos os livros que actualmente conhecemos, com excepção da Biblia e talvez das obras de Homero.

É possivel que a prophecia mofina do mais attico escriptor francez do seculo passado, sahida da sua penna prestigiosa n’um dia de melancholico desalento, venha a realisar-se, sendo precipitado no fundo sorvedoiro dos tempos todo o vasto cabedal do saber humano, desde que o pensamento se materialisou na palavra, e a palavra escripta se juntou a outras, para formar—o Livro.

E, assim como a acção destruidora dos flagellos tem devorado o recheio das mais famosas bibliothecas da antiguidade, taes como a que Osymandias estabeleceu no seu maravilhoso palacio de Thebas, e sobre cuja porta fez gravar a conhecida inscripção: Remedios para a alma, e a celebre de Alexandria, que Ptolomeu Soter dotou com os setecentos mil volumes, queimados depois, segundo a lenda, pelo musulmano Omar, ou desapparecidos com a ruina do templo de Serapis,—assim tambem a acção demolidora dos annos irá talvez, em successivos outomnos cyclicos, fazendo cahir no chão do esquecimento, e apodrecendo na terra, as folhas da grande arvore do saber humano, d’onde hão de sahir novas folhas vivas, pelos seculos dos seculos…

E, pela mesma fórma que pouco ou nada resta de tudo quanto compunha essas colossaes bibliothecas, em cujos escrinios e columbarios se encerravam os preciosos volumen de papyros de Saïs, fabricados com agua do Nilo, e de pelles respançadas de cordeiros de Pergamo,—é tambem para recear que, no cumprimento da prophecia do mestre, desappareça tudo quanto enche as modernas livrarias, cuja colossal bibliographia é impossivel organisar no seu conjuncto, tantos são os milhares de publicações que em cada dia e a cada hora apparecem em todos os paizes, escriptas em qualquer das seis mil linguas do mundo, e nascidas da vertiginosa producção litteraria da nossa epocha.

Se assim fosse, se o vacticinio se cumprisse, tempo haveria em que a humanidade do futuro não teria a delicia suprema de conhecer o effeito da leitura das obras primas, que nos legou a antiguidade hellenica e a latinidade classica; ignoraria a deleitosa impressão de sentir em consonancia com os poetas, que tem agitado a alma moderna; desconheceria o theatro de Shakespeare, o de Racine, o de Corneille e o de Molière, os tercetos de Dante, os sonetos de Camões, as obras de Schiller e as de Calderon e Cervantes; deixaria de admirar a força prestigiosa da palavra com que alguns privilegiados de genio tem feito vibrar os nervos do animal humano, e os trabalhos que tem transmittido o patrimonio da sciencia de geração em geração, n’esta faina incessante a que se convencionou chamar progresso; seria privada de avaliar a acção d’aquelles que dotaram a raça humana com ideias e beneficios; ter-se-hiam apagado na memoria dos homens os nomes de Newton, Lavoisier, Darwin, Pasteur… E, quem sabe? deixaria até, (se a revolução de que fallamos adeante se realisar,) de conhecer, de possuir, de consultar essa coisa preciosa que é o Livro.

O Livro! A paixão por esse objecto que na sua essencia se compõe apenas de laminas, de rolos ou de algumas folhas, em cuja superficie são traçados, pintados ou impressos alguns caracteres, symbolicos ou alphabeticos, sendo tudo envolvido n’uma capa ou capsa, que varia segundo a epocha, o gôsto e a fortuna do seu possuidor, essa paixão é uma das que mais fundas raizes tem no animo das gentes cultas, e que apresenta fórmas mais diversas.

Bibliographos, bibliophilos, bibliomaniacos, bibliolatras, bibliotaphios, e até mesmo (pois tambem existe a paixão do odio) biblioclastas e bibliophobos, são outros tantos amorosos do Livro, da sua essencia ou da sua fórma externa.

Que poderoso é o attractivo que exerce no animo do amador de livros a edição estimada, o exemplar raro, a encadernação de luxo!

Quem tem visto esse amador nas lojas dos nossos alfarrabistas—o velho Rodrigues, do Pote das Almas,—o Silva, por alcunha o Frade, da rua dos Retrozeiros, de quem o filho herdou, aperfeiçoando-a, a technica da sua arte, e a memoria feliz, que faz da sua cabeça um diccionario bibliographico; quem tem percorrido os estendaes dos ferro-velhos da Feira da Ladra, onde se vendem volumes a vintem; quem tem assistido aos leilões das bibliothecas que se dispersam, e observa a physionomia interrogadora e interessada d’esse bibliophilo que fareja e segue a pista do volume ambicionado, encontra-se perante um dos entes humanos, que mais exclusivamente é absorvido por uma paixão, e que, para a satisfazer, commetterá loucuras e até crimes.

Quem não conhece casos de bibliokleptas celebres, que roubam sem escrupulos livros que appetecem?

Uma edição princeps, como algumas das que encerra o quarto dos Reservados na nossa Bibliotheca Nacional; um volume raro, quer seja impresso, como o Boosco deleytoso, quer manuscripto, como o Cancioneiro d’Ajuda; uma encadernação da escola italiana ou franceza do seculo xvi, tem para os amorosos do livro, bibliophilos ou bibliomaniacos, o maior poder de seducção que na vida póde existir.

O prestigio do livro impõe-se por diverso modo, conforme a indole do apaixonado.

Querem alguns a sua bibliotheca composta de livros raros ou preciosos, embora em numero reduzido, como o nosso André de Resende, o archeologo eborense, ou como Barbosa Machado, o sabio oratoriano, que possuia uma das mais escolhidas bibliothecas do seu tempo, ou como o suisso Goulier, que vivia como um asceta, quasi sem comer, para, com as suas economias, poder comprar qualquer maravilha typographica de Jean de Tournes in-12ᵒ, ambicionada durante annos.

Querem outros a collecção numerosa, ou seja que a variedade e o prazer da ostentação os impulsione, como aquelle arcebispo de Evora que possuia onze mil volumes, aos quaes os maliciosos chamaram as onze mil virgens, ou que a sofreguidão e a furia de amontoar os domine, como o parisiense Boulard, que, na sua insania, chegou a comprar varios predios em Paris, os quaes foi recheando com os seiscentos mil volumes que pela sua morte deixou.

Livros ha cujo valor, para certos bibliophilos, nasce de circunstancias especiaes, alheias ás suas qualidades bibliographicas, como aquelle exemplar da 2.ª edição de Shakespeare que serviu de leitura a Carlos I na prisão, e que conserva notas á margem, da mão do infeliz monarcha; e aquelle outro manuscripto de Leonardo de Vinci, em que esse assombroso engenho do Renascimento italiano lançou as bases scientificas da aviação, preciosidades, que se conservam na bibliotheca de Windsor e que evocam tão grandes figuras. Quem não sentirá (mesmo os que não são dominados pela mania do livro) uma piedosa e particular commoção, ao contemplar o encantador volume das Horas da Rainha D. Leonor, pensando em que tanta vez n’aquellas paginas assentaram os olhos da intelligente viuva de D. João II, e foram folheadas pelas suas mãos esguias, nas vigilias da Madre de Deus; ou quem não apreciará, pelo seu valor archeologico e artistico, aquelle codex do mosteiro de Lorvão que A. Herculano fez conduzir para a Torre do Tombo, e cujas illuminuras são deliciosas precursoras das figuras hieraticas dos pintores modernos?

Para outros amadores de livros, têm mais seducção as lindas edições dos seculos xvii e xviii, obras eruditas, pomposas, ostentando a gravidade do classicismo, impressas em papel de luxo, de largas margens, como convem á sua nobreza, ornadas de gravuras a buril, com iniciaes ornamentadas e vinhetas floridas terminando os capitulos, e o magestoso frontispicio a duas côres, seguido das licenças necessarias, e da emphatica dedicatoria a El-Rei Nosso Senhor, ao Principe ou ao Mecenas…

Alguns tambem ha ainda, colleccionadores, mais do que bibliophilos, que estimam sobretudo as Miscellaneas, tão usadas entre nós no seculo xviii, e posteriormente, nas quaes o capricho do amador juntava folhetos das mais desvairadas proveniencias e diversos auctores, ou subordinava o feixe de opusculos a um assumpto determinado.

Mas o que a muitos encanta e seduz (e ainda hoje, como outr’ora ha quem possua riquissimas collecções d’esta especialidade) é o aspecto exterior do livro, independentemente da sua alma. Para estes a vestimenta, a encadernação é tudo, como tão pittorescamente o significa François Fertiault no seu livro «Sonetos de um bibliophilo», quando diz:

De loin vous en flairez l’arome avant-coureur;

Vous contemplez, ravi, sa date reculée;

Vous caressez du doigt sa marge immaculée,

Et de sa rareté vous prônez la valeur.

Vous en aimez la tranche à la vive couleur,

La nervure du dos, ou svelte ou potelée,

La robe au blanc satin, d’un filet dentelée,

Le noir chagrin, brodé par le fer du doreur.

As encadernações são, para alguns amigos do livro, um vasto capitulo cheio de delicias.

As de luxo, trabalhadas nas officinas venezianas e florentinas, que ornavam a bibliotheca do afamado Maoli; as celebres encadernações à la salamandre de Francisco I de França, e os artefactos dos famosos encadernadores de Henrique III e de Henrique IV, Nicolau Eve e seu filho Clovis, provocam ainda hoje a admiração de quem visita as bibliothecas onde ellas se encontram.

Foi entre nós um grande amador de bellas encadernações El-Rei D. João V, o Magnifico, que tinha enviados em todos os centros intellectuaes da Europa, com o encargo de comprarem as mais valiosas obras litterarias, e de as fazerem encadernar luxuosamente.

A maior parte d’essas maravilhas foram destruidas pelo terremoto, e pelo incendio que se lhe seguiu.

Os ricos exemplares doirados por folhas e com ellas azaradas; os de seixas finamente trabalhadas com oiro; os que apresentavam os mais bellos ferros nos seus marroquins; as encadernações em velludo vermelho, tão nobres, e as de pergaminho, tão severas; as lindas capas de madeira com metaes preciosos e outras de segredo, com a sua pequena corrediça onde se escondiam miniaturas profanas e licenciosas, ou reliquias devotas; as innumeras encadernações de phantasia, feitas com pelle de animaes diversos—a panthera, o crocodilo, a serpente, o bacalhau e a phoca—tudo foi destruido na catastrophe de 1755.

Não refere a historia se, n’essa espectaculosa bibliotheca do intelligente Rei, havia tambem, como n’algumas outras, encadernações feitas com pelle humana.

Estas phantasias macabras davam um valor especial ás obras a que se applicavam.

Assim, era grande a estimação em que o medico inglez Dr. Ashew tinha dois volumes encadernados com a pelle d’uma feiticeira do Yorkshire, Mary Ratman, que fôra enforcada pelo crime de assassinio.

Um rico negociante de Cincinnati mandou encadernar a Viagem Sentimental, de Stern, com a pelle d’uma negra; e com as das costas d’uma chineza o livro Tristam Shandy, do mesmo auctor.

Goncourt conta, no seu jornal, que um encadernador do Faubourg St, Honoré era especialista em aproveitar a pelle dos seios femininos nos seus trabalhos. E o editor Lireux affirma ter visto um exemplar da Justine, do Marquez de Sade, encadernado em pelle de mulher.

O insigne astronomo Flammarion foi uma vez convidado pela Condessa de Saint Auge, enthusiasta do seu talento, para ir passar uns dias no pittoresco castello que ella habitava no Jura. Parece que o sabio admirou com desvanecimento os hombros decotados da linda condessa…

Pouco depois, morria ella, e o seu medico escrevia a Flammarion dizendo que, para cumprir o desejo da morta, lhe enviava a pelle do peito que tanto o encantára na noite da despedida, pedindo-lhe que com ella fizesse encadernar o seu proximo livro.

É assim que, na bibliotheca do philosopho, figura ainda hoje a obra «Terras do Ceu», encadernada com a pelle da romantica condessa. E nas folhas azaradas a vermelho, do livro, fez o sabio semear estrellas d’oiro, que lhe recordam as noites scintillantes do Jura…

Extravagante idyllio!

Se o amor ao livro, como todo o sentimento humano, reveste as mais diversas fórmas, desde o culto que se dedica ao volume, que os olhos d’um ente querido e ausente leram em horas felizes ou em horas de tristeza e desalento, e desde a soffreguidão com que alguns ciumentos do livro (que tambem os ha), os conhecidos bibliotaphios, que, com sofrega avareza, reservam exclusivamente para si o uso das suas livrarias, até á ostentação dos vaidosos que adquirem por centenas de libras o exemplar unico que, n’um leilão retumbante, faça espalhar o seu nome por todo o mundo e lhes lisongeie o amor proprio—se essa paixão do livro é tão profunda e tão complexa, não o é menos o sentimento opposto—o dos bibliophobos e biblioclastas.

Por espirito religioso, ou de seita, ou de raça, ou de politica, a historia está cheia de casos de devastação de livros. Hecatombes medonhas! Inutil é mencional-as.

Mas de todas as causas de ruina d’essa coisa tão essencial até hoje á vida da humanidade—o Livro—duas predominam e ameaçam consumar o seu desapparecimento.

Uma, a acção destruidora do tempo com o seu cortejo de insectos, de humidades, de incendios, de vandalismos, de ignorantes despresos e do fatal esquecimento.

Outra, e essa está por emquanto apenas esboçada nas brumas do futuro, vem a ser a transformação da palavra escripta.

N’um recente estudo intitulado «Prosodia e Ortographia» Coelho de Carvalho tratando dos caracteres alphabeticos, e dos signaes representantes das syllabas escreve:

«Ora desde que se conhece que todo o som é resultado do movimento e que este, como todo o movimento deslocando uma porção de materia, traça no espaço uma linha, a successão de pontos por que a massa deslocada vae passando; e, sabendo nós que a falla é produzida pela mobilidade de uma massa de ar, que variamente impellida dentro do apparelho vocal, produz sons de modalidades diversas, conforme a intenção emotiva que determina a emissão do ar; e se a sciencia physica achou a forma pratica de tornar visivel, por instrumento de phonographia, a linha de cada um d’esses movimentos; nenhuns outros traços graphicos, senão aquelles que tal instrumento desenhar, podem ser representativos das unidades sonicas da linguagem.»

E propõe como unica reforma: «fazer na ortographia: substituir o alphabeto pelo syllabario systematisado da linguagem, substituindo, para dar o caracter da syllaba, as figuras sonicas que o phonographo nos der, á compilação das chamadas lettras».

Sendo assim, (e parece-me que o talentoso escriptor tem a visão d’uma revolução na escripta,) o que será no futuro o livro?

Um rolo phonographico?

Uma fita como a dos apparelhos Morse?

Voltarão as bibliothecas a ser a antigo columbarium, especie de pombal cujas paredes eram cheias de ninhos (que as tornavam semelhantes ás modernas lojas de papeis pintados) onde se encerravam os rolos que foram os primitivos livros?

No melhor dos casos, e conservando, por um movimento adquirido e tradicional, a antiga fórma, o que haverá nas suas paginas?

Caracteres cabalisticos. Figuras sonicas de mysteriosa apparencia.

Hão-de passar ainda, eu bem o sei, alguns lustros antes que se torne definitiva a reforma prevista, e antes que as gerações do futuro se habituem á pratica da racional, mas para nós (que vivemos na era do alphabeto) inesthetica fórma do livro que ha-de vir.

Quando ella, porêm, se realisar, apenas algumas das obras-primas da humanidade serão transportadas á nova graphia.

E o resto do actual patrimonio bibliographico?

Será considerado, por aquelles que usarem correntemente o syllabario phonographado, uma herança archeologica? Um thesouro de eruditos? Uma fórma anachronica da materialisação da palavra? Uma quasi enigmatica escripta cuneiforme?

É difficil atravessar com a vista algumas camadas de tempo, e poder futurar o que será a litteratura d’aqui a mil annos.

É certo, porém, que no homem ha-de haver sempre, cumulativamente com o anceio de novas conquistas, a curiosidade retrospectiva, o culto do passado.

E por isso é de crer que os netos dos nossos netos, querendo reconstituir o viver da antiguidade nos tempos em que se lia pelo alphabeto, deitem mão d’esses objectos, que para elles serão de curiosidade archaica a que seus avós chamaram—livros.

A esse tempo a livraria terá já perdido o seu caracter de ser vivo (pois uma bibliotheca é como um animal cujo organismo se renova incessantemente) e será um museu, como todos os museus, cemiterio de arte, sarcophago onde se conservam, como cadaveres, os objectos curiosos, que as passadas gerações nos legaram.

Para que essa herança preciosa se perpetue, ou para que, pelo menos a sua força, se prolongue por largas centenas de annos, devem tender os esforços d’aquelles que deveras amam o livro.

Por isso as sociedades dos bibliophilos têem na vida dos povos uma missão conservadora de incontestavel alcance, tanto mais benefica, quanto mais valiosos forem os monumentos a que o seu amor vigilante se applique.

A bibliographia portugueza é rica e gloriosa.

Patriotica e util é, portanto, a missão d’aquelles que—amadores, colleccionadores de livros e estampas, ou curiosos de bibliotheconomia, iconographia e artes subsidiarias do livro—se juntaram sob a invocação do venerando patrono Barbosa Machado. Com nenhum outro nome podia melhor baptisar-se esta prestimosa Sociedade, do que com o do erudito abbade de Sever, pois que, assim como elle, fundando a sua Bibliotheca Luzitana, assentou as bases da nossa bibliographia e nos legou um thesouro de conhecimentos inestimavel, assim os esforços d’esta Sociedade tenderão a conservar, para os tempos que hão de vir o patrimonio da Bibliotheca Portugueza.