AMAZONA DE MAZAGÃO

SUMMARIO

A Veneza Luzitana é seu berço—Vinda para Lisboa—Educação livre—Repressões—Revolta—Partida para o desconhecido destino, Mazagão—Annos de serviço militar—Galanteios de ambos os sexos—A Donzella que vae á guerra—Confissão inesperada—Desposorios—Regresso ao Reino.

Em Aveiro, a linda Veneza luzitana, nasceu, a 31 de Março de 1580, Antonia Rodrigues, que havia de dar brado no seu tempo.

O pae, Simão Rodrigues, mareante de profissão, passava a vida laboriosa no mar, embarcado nas galés, que, ou partiam com longinquo rumo, carregadas de sal, para o ultramar, ou se dirigiam aos bancos da Terra Nova, á pesca do bacalháo, ou iam seguindo a costa, em busca de acasos raramente lucrativos.

A mãe, Lianor Diaz, mourejava para ajudar o sustento da familia. Casara a filha mais velha, que logo partira para Lisboa.

A pequena Antonia herdara do pae, e talvez dos remotos avós, phenicios ou celtas, que n’aquellas paragens tinham abordado em passadas éras, a attracção pelo desconhecido, e o animo resoluto, avido de aventuras. Quando bebia na aragem, que vinha dos lados da barra, cem as emanações salinas, o philtro mysterioso, que impelliu os nossos navegadores para a conquista do mundo, sentia ferver-lhe tumultuosamente nas veias o sangue. E pelos minusculos canaes da ria, que serpenteava na planicie, ou pelas estreitas viellas da antiga villa, lá ia de envolta com a garotada turbulenta em perigosas excursões sobre jangadas improvisadas, ou em luctas monumentaes de pedrada. Era o tormento da mãe, que não podia domar aquelle pequeno animal bravío. Era o enlevo do pae, que, nas occasiões em que não embarcava, se revia na filha, quando ella partia, já dominadora, commandando o infantil exercito, ou organizando giganteas partidas de jogo de barra, em que se distinguia, apezar da edade, por ser dextra e agil.

A vida, porém, corria difficil para a familia. Os invernos quasi haviam atulhado de areia a barra, e a navegação fôra perjudicada com esse impedimento. Os canaes transformados em paúes tornaram-se estereis e doentios. Nas marinhas diminuiu a producção do sal, e por pouco não se extinguiu a industria da pesca. A villa, agora insalubre, ia-se despovoando pouco a pouco.

O antigo embarcadiço sentiu de perto a miseria. Foi então que sua mulher, a valorosa Lianor, resolveu levar a pequena Antonia para Lisboa, onde a outra filha se estabelecera. Afigurava-se-lhe que o genio indomito d’aquelle seu rebento meio selvagem, se disciplinaria melhor longe das complacencias do pae, e no contacto da gente da capital, mais polida de maneiras, que os miseraveis habitantes da decadente Aveiro.

O certo é que, pelos annos de mil quinhentos e noventa e tantos, metteram-se as duas a caminho, arrostando com as difficuldades e perigos d’uma viagem, tão arriscada n’aquelles tempos, quer por mar, onde os corsarios inglezes e hollandezes atacavam as embarcações mal defendidas, quer por terra, onde os ciganos aos cardumes surprehendiam os viajantes nas estradas, e até nas albergarias, ou dependencias de conventos em que pousavam.

Vieram encontrar Lisboa bem diversa das pinturas com que lh’a haviam figurado—primeiro ruidosa, festiva, brilhante, quando fôra da expedição para a Africa com D. Sebastião e a flor da nobreza; depois amargurada, deprimida, orphã de Rei e de côrte, quando da morte do Cardeal D. Henrique; depois ainda tumultuaria, nervosa, excitada por occasião da phantasmagorica acclamação do Prior do Crato; finalmente, galvanizada, com a organização e preparativos da partida da Invencivel Armada, para a qual tinham dado:

«Naples ses brigantins, Cadix ses galions

Lisbonne ses marins, car il faut des lions».

Na Lisboa onde entravam, respirava-se agora a atmosphera soturna das povoações subjugadas, sentia-se a tristeza apagada de uma terra de provincia, votada ao desdem pelo poder central.

O Palacio Real fechado, depois da partida do Vice-Rei, Archiduque Alberto, era na sua mudez taciturna a imagem do Portugal de então.

A filha mais velha de Lianor Diaz acceitou a missão de hospedar a irmã, o que não foi pequeno encargo para uma, nem grande motivo de regosijo para a outra.

A mais velha era azeda e violenta de genio. Pretendia governar com aspereza a rapariga que, passando já dos doze annos, manifestava cada vez mais o seu espirito de independencia, andando a flaino pelas congostas da antiga Alfama; subindo perto do Castello, d’onde enxergava ao longe o Tejo, que lhe avivava saudades da sua Costa Nova; renovando com a gaiatada do largo de S. Christovão e das Cruzes da Sé as proezas de Aveiro.

Eram então grandes partidas do jogo do pião, do homem, da laranjinha, do pegochuna, da cunca e sobretudo da barra, em que a rapariga revelava especial destreza e habilidade, como para todos os exercicios a que os Inglezes dão o nome generico de sport, vocabulo que os modernos lexicographos traduziram por desporto, palavra cuja significação é antes folgança, que jogos athleticos.

Outras vezes a pequena Antonia deitava até á Ribeira das Náos, onde se quedava pasmada, admirando toda a faina maritima, que ainda alli era muita, a despeito da progressiva decadencia, que a acção do Governo hespanhol ia tornando cada vez mais sensivel.

Ainda alli se construiam galeras, carracas, fustas e caravellas; ainda alli se carregavam as embarcações, que levavam homens e mantimentos para as nossas possessões, ainda alli se apparelhavam as armadas que iam a combater, e se descarregavam as que vinham da India com especiarias.

Estas excursões pouco proprias de uma rapariga que ia entrar n’uma puberdade promettedora; cujas fórmas começavam a desenhar-se em linhas felizes; e a cujo caminhar cadenciado os exercicios physicos tinham dado uma elegancia especial, não agradavam á sizuda e rebarbativa irmã primogenita.

Começaram então os reparos, as prohibições, as repressões, que em vez de alcançarem o recato e a compostura requeridas, mais excitaram no animo da insubmissa Antonia o espirito de revolta.

Ás recriminações da sensatez, correspondiam os impetos insubordinados.

De um lado o resguardado viver no interior da habitação lisboeta da edade média, com as gelosias de rotulas cerradas, e adufas cahidas, na qual a femea semi-arabe, ancilla enclausurada tradicionalmente, fiava durante as horas da sésta, até que entre lusco e fusco sahia a pedir ás visinhas lume para apromptar a ceia do marido, e a depenicar um pouco na reputação alheia; do outro lado a alma celtibera, impetuosa e independente que destroça cadeias, e rompe preconceitos, que é ciosa de emancipação individual, que se governa a si propria, indomavel, e que se encarna nas figuras de Brites de Almeida, a lendaria padeira de Aljubarrota; em Izabel da Veiga a heroina de Diu;em Filippa de Vilhena e Magdalena de Lencastre, as matronas da restauração; na filha do cosmographo Pedro Nunes, a freira de Coimbra; e em nossos dias n’uma neta de Vasco da Gama, cujo nome de Constança é já glorioso.

As duas irmãs representavam as qualidades typicas da mulher portugueza da pequena burguezia n’aquella quadra—a que, educada no recato moirisco, tinha a existencia quotidiana limitada pelo horizonte da sua rua, e as aspirações reduzidas a ver passar de anno a anno as pompas do «Corpus Christi»; e a que, deslumbrada com as aventuras narradas pelos capitães de navios, que regressavam de remotas paragens, sonhava com os explendores do Oriente, com os jardins de Ceuta, com os dramaticos encontros com piratas no alto mar, e com os cercos famosos das fortalezas da Africa e da India, em que as mulheres representavam por vezes tão insigne papel. Com estas narrativas de epopeia e miragem de riquezas, começava a levedar na alma da rapariga a aspiração de emigrar em companhia dos que partiam…

D’esta antinomia de caracteres havia de nascer necessariamente um conflicto de vontades. A mais velha, exigente e escudada com a razão, impunha recolhimento; a mais nova resistindo, proclamava emancipação. O resultado não se fez esperar.

Uma manhã Antonia enfiou na cabeça o seu capello, alforjou no bolso de briche o pequeno peculio que a mãe lhe deixára; e eil-a ahi vae pelas tortuosas quelhas em direcção á rua dos mercadores de fato feito e roupavelheiros, á porta dos quaes se penduravam, balouçando ao sabor do vento, casacos, vareiros alcatroados, e calçotas oleadas dos pescadores da Costa. Alli ajustou um «vestido conforme ao trajo dos moços que vivem no mar em navios mercantes» e munida de uma thesoura dirigiu-se para o campo, fóra de portas. Não ficava n’esse tempo longe para qualquer dos lados, pois Lisboa ainda estava quasi toda encerrada nas muralhas de D. Fernando.

Sahindo pelas portas da Trindade, logo alli achou perto de Santa Catharina o que procurava, isto é, um lugar escuso onde, depois de cortar o cabello despiu o trajo de mulher e envergou o de grumete. Desceu então pelo corrego junto da muralha, e vindo dar ao Cata-que-farás dirigiu-se á Ribeira, perto das tercenas navaes.

Fervilhavam-lhe no cerebro projectos arrojados, atravessavam-lhe a alma de creança rajadas de emancipação.

Chegando á praia encontrou o formigueiro humano em plena actividade. Calafates e carpinteiros de machado trabalhavam nos arcabouços de pequenos bateis destinados á navegação costeira, emquanto outros alcatroavam os bojos de galeras inclinadas. Regateiras açodadas, confundindo os seus prégões com a algaravia da marujada, offereciam fructas, bebidas, frituras de peixe salgado. Alguns da soldadesca dos terços resmoneavam, queixando-se de serem mal pagos, e substituidos nas fortalezas de Cascaes e Setubal por guarnições hespanholas. Por entre a arraia alguns vultos embuçados em seus gibões, maldiziam dos vexames dos Castelhanos ou dos senhores governadores do Reino, e suspiravam olhando para os lados da Barra, em cata de um galeão phantastico, que lhes havia de trazer o Encoberto, o Rei legitimo, o desejado D. Sebastião…

Mas logo se calavam olhando desconfiados em redor não fosse algum esbirro denuncial-os, e dar que fazer á corda com que fôra enforcado o Rei da Ericeira, á galé em que se sumira o Rei de Penamacor, ou ao garrote com que Filippe II engravatou o Pasteleiro de Madrigal.

Carregadores espadaudos, transportando fardos de mercadorias, eram seguidos por mendigos andrajosos, que procuravam na peugada bagos de trigo esvasiados dos saccos mal compostos, ou sardinha petinga, escapada das canastras abarrotadas. Marinheiros mercenarios concertavam com os capitães de navios mercantes as soldadas de futuras derrotas. Outros embarcadiços preparavam-se para a largada.

Entre estes, o mestre de uma caravella carregada de trigo, prestes a partir, lamentava-se de que á ultima hora lhe desertára um grumete, que lhe fazia grande falta na viagem.

Antonia ouvindo a queixa sentiu-se tocada pelo destino, e obedecendo a uma força irresistivel, offereceu-se para substituir o marinheiro remisso. O mestre da galera olhou-a sobranceiro e desdenhoso. Parecia-lhe atrevimento do franganote. Quem lhe garantia as aptidões do rapaz? Hesitava.

O marujito, porém, inculcou-se como sabedor da arte de marear, e prompto para qualquer mister.

O capitão achou esperto o pimpolho, leu-lhe nos olhos vivos determinação e arrojo, e impellido pela urgencia determinou-se a engajal-o.

Partiu a caravella com rumo a Mazagão.

Durante a viagem tudo correu á maravilha. O novo grumete, activo, desembaraçado e agil, causava o espanto da tripulação pela fórma como realizava as manobras e serviços de bordo, trepando pelos mastros e tomando as velas, talvez por invocar reminiscencias do officio paterno, e a pratica das suas proezas na ria de Aveiro. Sempre álerta, era o primeiro arriba ao toque de alvorada, e á noite o ultimo a recolher. Dormia a qualquer canto do porão embrulhado no varino. E era tanto o seu recato, que os companheiros de camarata nunca suspeitaram o seu sexo.

É vulgar este contraste apparente entre uma grande desenvoltura de maneiras e a fundamental honestidade no viver. Não é rara tambem a inversa.

Entre as borboletas loiras, que esvoaçam em volta das lampadas electricas de Leicester Square em Londres, ha expressões virginaes, olhos azues cheios de innocencia, sorrisos ingenuos que se transformam em espasmos lubricos apenas se vendem por alguns schillings. Em compensação quanta manola sevilhana se pavonea no passeio das Delicias, de cigarro ao canto da bocca e punhal na liga, que não consentiria sequer que um atrevido esboçasse o minimo gesto de familiaridade equivoca.

A mulher de Claudio tinha no rosto as linhas hieraticas da sua dignidade imperial, e comtudo, chegada a noite, prostituia-se nas alfurjas de Roma, tornando um symbolo o seu nome de Messalina. Ao contrario, Jeanne d’Arc cavalga escarranchada e vestida de homem á caça de Inglezes nos campos de Patay, dorme nos arraiaes, de conserva com os arcabuzeiros de Carlos VII, e sahe pura, virginal, intemerata de todas as promiscuidades perigosas.

Assim a nossa heroina.

A pureza do seu espirito, a castidade do seu organismo preservam-n’a de avaria no contacto com a marujada, e nas intimidades do dormitorio.

Alma e corpo atravessam immaculadas as concupiscencias dos rudes mareantes.

Passaram dias. A travessia n’aquelle tempo, embora o barco fosse veleiro, era demorada. E a derrota não isenta de perigos n’esses mares infestados de piratas mouros e christãos. O capitão porém era homem de longa pratica, muito saber e prompta resolução. Entretanto havia nas suas maneiras dubias qualquer cousa que inspirava desconfiança a Antonia. A sua perspicacia teve ensejo de apurar-se na forçada convivencia de bordo e o seu faro não a enganava, como veremos.

Aproaram emfim a Mazagão, cuja fortaleza e casaria branca o pequeno grumete, trepado á verga da sobre-prôa, foi o primeiro a signalar.

Tinham os Portuguezes aportado alli em 1502 (havia quasi um seculo) e logo edificaram um castello no sitio em que existia uma torre. Mais ao deante, quando o Duque de Bragança D. Jayme voltou da sua expedição famosa da tomada de Azamor, que fica d’alli duas leguas, tão boas informações deu a El-Rei D. Manoel sobre a excellente bahia e amenidade do sitio, que logo este resolveu mandar para alli o architecto João de Castilho, o Velho, que, levando operarios e materiaes, entrou a construir a cidade.

Asturiano de nascimento, mas Portuguez de coração, o talentoso artista dotou a sua patria adoptiva de formosos monumentos. Compoz em pedra alguns dos mais bellos poemas da arte manuelina. Foi o auctor das abobadas e pilares do Cruzeiro dos Jeronymos em Belem; foi o mestre das obras da Batalha por morte de Matheus Fernandes; e foi-o tambem das obras reaes no Convento de Christo em Thomar. Poeta na architectura, lança ainda uma projecção luminosa sobre o nome de dois vultos eminentes no patriciado das lettras portuguezas—os dois Castilhos nossos contemporaneos.

Em 1543 João de Castilho, depois de ter estado em Arzila, parte para edificar a praça de Mazagão e delinear a cidade, que ainda hoje conserva tantos vestigios do dominio portuguez.

Poz n’esse trabalho toda a sciencia que exigia a construcção d’uma fortaleza a cada passo atacada pela moirama, que vinha aguerrida e cheia de sanha em tentativas de vingança assediar esse porto portuguez. E poz nas construcções toda a arte com que o seu genio se enriquecera em Italia, então em plena explosão de Renascença. Os baluartes, as bombardeiras de onde a grossa artilharia de bronze vomitava granadas em occasião de ataque, as seteiras dos parapeitos, as ameias ao longo das muralhas, a ponte levadiça sobre as fundas cavas, davam á curiosa fortaleza não só a segurança requerida, mas a elegncia, que caracteriza as construcções do nosso periodo aureo, tão lindamente manifestado na Torre de Belem.

Ás habitações da cidade João de Castilho deu a graça da sua arte, e as commodidades exigidas pelas condições sociaes dos moradores—ou gente da nobreza e familias da guarnição que da metropole tinham vindo acompanhar os seus parentes, ou mercadores que ensaiavam o trafico nos raros intervallos da paz.

Mazagão ficou assim constituindo um dos pontos fortificados d’essa costa de Africa ao longo da qual Ceuta, Tanger, Arzila, Azamor, Zafim serviam de theatro ás façanhas dos fidalgos, que alli iam ganhar as suas esporas de oiro, antes de passarem á India. Impellidos por esse espirito de cavallaria andante, que caracteriza grande parte da nobreza n’aquelle declinar da Edade Média, muitos faziam d’essas praças de Africa a sua escola de guerra. Em cada uma punhados de bravos arriscavam quotidianamente a vida em correrias, rechaçando com valentia os marroquinos que vinham de Fez, e colhendo, além de gloria, rebanhos de gado. Não era raro tambem aprisionarem formosas moiras, que traziam captivas ás suas noivas, ás suas mães, e ás suas damas, que as tomavam como escravas.

Não foi, porém, só de cruezas feita a epopeia de Portugal em Africa. Então, como agora, a par das brutalidades proprias da guerra, e da braveza com que o animal humano ataca o seu adversario, creaturas de bondade attenuavam com mãos piedosas os horrores da chacina. Assim o mostra o episodio passado em Alcacer—Ceguer no meiado do seculo XV, em que D. Izabel de Castro, Condessa de Vianna, esboça um movimento humanitario, que se torna um embrião da moderna Cruz Vermelha.

A mulher de D. Duarte de Menezes foi uma precursora das heroicas enfermeiras que, abandonando as frivolidades de uma vida de prazer, os confortos de uma existencia farta de gozos, e as elegancias, adornos e joias caras, envergam a simples bluza de linho, de que a braçadeira é divisa e galão honroso.

Passou-se o caso quando em 1459 o Rei de Fez resolveu tomar Alcacer, suppondo a guarnição exhausta e o Governador prestes a render-se. Dera-lhe essa esperança uma carta apprehendida no ar, atada ás pennas de uma seta. (N’aquelle tempo a correspondencia entre as praças e os navios era feita, á falta de telegraphia sem fios, por meio de setas). Ora uma, que levava a carta angustiosa de D. Duarte de Menezes, dirigida á caravella do Védor da Fazenda que viera do Reino, e com a noticia da penuria em que se achava, foi colhida por um moiro, e isso resolveu os Arabes a um combate encarniçado, de que afinal resultou a victoria para os nossos. No mais acceso da peleja aconteceu desembarcar, vinda de Lisboa, D. Izabel de Castro, mulher do Governador, com comitiva numerosa. Era a irmã do 1.º Conde de Monsanto, senhora de grande intelligencia e muita auctoridade entre a gente do seu tempo. Foi recebida com enthusiasmo pelos heroicos defensores da praça. E como na refrega muitos tinham cahido feridos, resolveu ella logo organizar soccorros e prodigalizar confortos espirituaes. Conta-o Ruy de Pina na sua chronica quando diz: «… assim pelo reparo que os feridos e doentes em sua cura d’ella recebiam, como pelo favor de suas donzellas com que os fidalgos fronteiros se favoreciam e folgavam melhor de pelejar, porque ella tinha em sua casa gentis mulheres filhas de homens honrados que, guardada em tudo a sua honra e honestidade, sabiam bem fallar e tratar os homens como mereciam». Estava assim esboçada a Cruz Vermelha.

Fechado este parenthesis voltemos á nossa Antonia, que tinhamos deixado abordando a Mazagão como grumete, na caravella carregada de cereaes, onde servia com o nome de Antonio.

Teve então o Governador uma denuncia certificando-lhe «que o mestre da caravella fizera furto e falsidade no trigo que levava». Procedeu-se a um inquerito, ou, como n’esse tempo se dizia, abriu-se uma devassa para averiguar, «tirando-se do caso testemunhas». Uma d’ellas foi o grumete Antonio, que compareceu perante uma especie de conselho composto do governador e alguns magistrados. Logo a todos impressionou a viveza do olhar do marujito, a sua expressão intelligente e decidida, a sua airosa cabeça enquadrada pelo cabello cortado á altura do mento, e aquella apparencia de ephebo, um mixto de escudeiro e de pagem, que lhe dava ao mesmo tempo um ar marcial, e a graça de cortezão.

Interrogado disse a verdade sem rebuço nem receio, a despeito dos olhares minazes do mestre do navio, que esperava assim atemorizal-o.

Não sabemos qual foi a sentença do Tribunal. É porém certo que Antonio revelou tudo, desde as suspeitas, que logo no principio da viagem o tinham assaltado ácerca da honestidade do mestre, até á prevaricação no caso das medidas. O rancor do embarcadiço transudava nos olhos injectados: pelo que não era de invejar a sorte que esperava o intrepido marujo, quando se achasse de novo na caravella á mercê do seu odio.

O Governador da fortaleza não consentiu portanto que o rapaz fosse exposto ás iras vingativas do mareante, e desde logo assentou praça, como soldado, ao grumete Antonio Rodrigues.

Começou elle immediatamente a mostrar a sua destreza no manejar das armas, e quando ia com os outros camaradas ás barreiras e estacadas a todos levava vantagem. Nas ruas e praças publicas, em occasião de exercicios, era tão desembaraçado na esgrima que logo passou a ser notada a sua pericia.

Fallando d’este periodo, diz o chronista seu contemporaneo: «fazia suas vigias de noite sem nunca faltar n’ellas, e com os soldados comia, e se deitava na cama, e dormia entre elles, vestido porém sempre com gibão e ceroulas, que nunca andava sem ellas, por onde não foi conhecido».

Durante mais de um anno fez serviço entre os peões. Mas notando-lhe as qualidades e valor o Capitão encorporou-o entre os de cavallo, dando-lhe soldo e mantimentos como aos outros cavalleiros.

Chegou então o capitulo mais brilhante da sua carreira militar, em que a valentia lhe proporcionou luzentes victorias sobre os moiros infieis, e o seu garbo conquistas sobre os corações christãos.

Diz d’elle o chronista Duarte Nunes de Leão: «Sendo de cavallo se avantajou dos outros a destreza, e bom ar, e ligeireza com que cavalgava do chão: e no commetter aos inimigos nas emprezas maiores e de importancia, sempre o Capitão o nomeava e mandava na deanteira como ao mais destro cavalleiro que tinha. E assim se achou em muitas pelejas e encontros onde foram captivos e mortos muitos mouros principaes e seus cavallos, de que Antonio Rodrigues participava como o melhor cavalleiro da companhia. Velava de noite nos muros seus quartos sem faltar, e sahia ao campo com sua espingarda a cavallo a fazer lenha e feno. E muitas vezes ajudava a matar porcos no campo dos mouros, de que trazia sua parte».

Quando vemos figuradas nos azulejos portuguezes as apparatosas caçadas ao porco bravo, em que cavalleiros de vistosas casacas e emplumados tricornes, perseguem com suas lanças, e seguidos de ululante matilha, o javardo, emquanto os couteiros, e moços do monte, sopram nas buzinas, concebemos facilmente como os heroes d’esse exercicio varonil, tão dilecto da gente de escol, alvoraçava imaginações femininas. E não nos causa espanto ver que n’aquelle canto da Africa o denodado caçador Antonio Rodrigues que tinha fama de atravessar com o acerado chuço a pelle dos animaes bravios, trespassasse tambem com os olhares os corações das formosas portuguezas.

«Por parecer um mancebo mui gentilhomem e de muita graça (diz o chronista) era mui bem olhado e favorecido das donzellas de Mazagão».

Entre ellas havia uma, cujo nome a historia não registra, talvez para não a vexar pelo seu equivoco, que se apaixonou loucamente pelo arrojado cavalleiro. Nos combates em que elle entrava, tão encarniçados que, segundo o costume, dois frades de São Francisco, com o crucifixo levantado contra os moiros, se collocavam no mais alto do castello para inspirar confiança aos soldados, não era raro ver a amorosa rapariga acompanhar as outras mulheres da povoação, moças e velhas que vinham dar agua aos homens, e que muitas vezes, deixando nas mãos d’elles os pucaros emquanto bebiam, arremessavam ellas pedras contra o inimigo.

Quando o combate cessava e todos recolhiam, Antonio Rodrigues era convidado a ir descansar a casa d’aquella, que muitos consideravam já sua noiva, e que era filha de «um avalleiro principal». Ahi era recebido com affectuosa familiaridade pelos paes e mais parentes, que lhe offereciam dadivas como se já o considerassem genro ou pessoa da familia.

Antonia, receiando que o revelar a verdade trouxesse um natural escandalo, ou graves dissabores, e sendo-lhe tambem penoso desilludir a sentimental menina, deixava-se amar sem retribuir galanteios, e empregando meios dilatorios que a tirassem de difficuldades.

Este caso original de psychologia amorosa, já de si embaraçoso para qualquer casuista, e principalmente para quem andava mais habituado a escaramuças com agarenos que a justas de corações, ou embates de almas, complicava-se agora com um facto ainda mais curioso, e a que ella não era indifferente.

Entre os olhares com que as suas numerosas admiradoras solicitavam o seu, notava por vezes o de um moço militar de boa familia, que apenas se julgava presentido, o desviava, dissimulando. E por uma circumstancia inexplicavel, emquanto todos os camaradas tratavam Antonio Rodrigues desenfastiadamente, aquelle nunca lhe dirigia a palavra, ou se a dirigia era com visivel commoção.

Cantar-lhe-iam talvez na memoria, com mysteriosa significação, os versos d’aquelle romance tão lindo «A Donzella que vae á guerra», melopêa com que em creança sua aia o adormecia:

«Tende-los peitos mui altos

Filha conhecer-vos hão.

—Venha gibão apertado

Os peitos encolherão.

Senhor Pae! Senhora Mãe!

Grande dôr de coração.

Que os olhos do Conde Daros

São de mulher, de homem não!»

Esta situação de equilibrio instavel de sentimentos durou cinco annos.

E se o derivativo das batalhas com os moiros espaçava uma solução inevitavel, é certo tambem que a forçada intimidade n’uma cidade pequena, e n’uma sociedade limitada; a influencia do clima ardente tão propicio á explosão das paixões; e os perigos compartilhados com frequencia, elemento que tão fortemente concorre para o estreitamento de laços sentimentaes, espicaçava os cerebros e os sentidos dos actores d’este pequeno drama.

Repugnava ao instincto de rectidão de Antonio Rodrigues o embuste, embora forçado, em que vivia; desadorava a comedia que estava representando, tanto em contraste com os lances e investidas guerreiras, em que por vezes andava empenhada; e apiedava-se do engano em que via enredar-se a doce creatura, que lhe davam como noiva.

É possivel tambem que os impulsos do seu sexo, tão longamente reprimidos, a levassem a julgar necessario tornar regular a situação. Talvez mesmo não fossem extranhos a esse estado de espirito os olhares esquivos, quasi envergonhados, do moço militar.

Afigurava-se-lhe, porém, embaraçoso resolver este caso.

Não era correcto confessar a qualquer homem a sua ambigua situação. E difficilmente encontraria uma mulher, mesmo entre as matronas da cidade, que lhe escutasse de boamente a confidencia arriscada.

Durante muita noite de vigia na barbacan da fortaleza, durante muitas horas de ronda nos arredores do castello, meditou sobre o passo que tinha a dar.

Lembrou-se afinal que, entre os clerigos, que mais piedosamente confortavam os moribundos em occasião de batalha, e que mais reputação gozavam de saber tranquillizar os espiritos anciosos, destacava-se o Padre Provisor. Resolveu abrir-se em confissão ao austero magistrado ecclesiastico que, habil em questões de jurisdicção ecclesiastica, era ao mesmo tempo subtil manejador de almas e de casos de consciencia. Elle melhor que ninguem lhe indicaria o modo de proceder.

Ouviu-a surpreso o Padre Provisor, e logo lhe aconselhou a que ambos se dirigissem ao Governador Diogo Lopes de Carvalho, que sempre dispensára protecção ao moço militar, afim de lhe fazerem a extranha revelação.

Mais surprehendido ficou ainda o Governador, que o Padre, com tão inesperavel noticia.

E o que mais lastimava n’aquella insolita occorrencia, era ter que assim perder um dos seus melhores cavalleiros.

Mas forçoso era submetter-se ás circumstancias, e inevitavel o regresso de Antonio Rodrigues ao sexo a que pertencia.

Procurou-se então a casa de uma familia honesta onde pudesse recolher-se, e vestir o fato que lhe era proprio.

Não foi custosa a iniciação, porque a varonilidade de Antonia provinha mais da sua energia de animo, que da mascula rudeza de maneiras. Não era a virago das revoluções da rua; era antes o athleta androgyno dos collegios athenienses, cujas fórmas foram consideradas a suprema expressão da esthetica.

O novo trajo, longe de se desageitar no seu corpo, deu-lhe a graça feminina com que adquiriu um encanto proprio. Era isso o que lhe affirmava a familia que a recolheu. E Duarte Nunes do Leão, que a conheceu mais tarde, quando ella tinha trinta e cinco annos, achava-a «bem parecida, com muita graça no fallar, e grande viveza no espirito que justificava a sua fama».

Mas como seria encarada a metamorphose pelos seus antigos camaradas? E como a olhariam as raparigas que a tinham requestado? E que pensaria o official que de longe a olhava com timidez?

Então, ella, que tinha afrontado tempestades, balas de moiros, e arremettidas de féras, intimidava-se com a ideia de ver menos bem acolhido o seu novo avatar; a sua transformação de guerreiro em donzella. Pensou voltar ao Reino.

Aproveitaria a partida de qualquer familia que regressasse, e assim dissimuladamente subtrahia-se a commentarios indiscretos. Entretanto, não ousava apparecer em publico, tanto lhe parecia que todos haviam de encaral-a com zombaria ou menosprezo.

Enganava-se.

Duarte Nunes do Leão assevera «que a foram visitar as donzellas a que ella fallava amores, as quaes mudaram o amor que lhes tinham em amizade, e lhe pagaram as galanterias que lhes dizia com presentes de rocas e fusos, e outros taes ditos».

Ha n’esta offerta uma leve ironia, um innocente debique. Mas não a podia molestar; nem era essa a intenção das raparigas, logradas, mas não rancorosas.

O governador, que muito se lhe affeiçoara, e todos os da villa, tanto homens como mulheres, oppuseram-se á sua partida.

Entretanto aquelle a quem, de havia muito, a figura de Antonia impressionara, sem que nunca o tivesse revelado, e que era pessoa de qualidade, apresentou-se solicitando a sua mão.

Ha situações difficeis de sustentar. O marido de cantora celebre que assiste diariamente aos duettos da mulher com um tenor almiscarado; o da dançarina, que a vê desnuda e provocante piruetando perante espectadores em irreverente observação; o da mulher cujo talento pertence exclusivamente ao publico; o da feminista, que reivindica direitos politicos e a emancipação da tutela marital; o da mundana, que em bailes e em festas provoca adulações, segredos equivocos, colloquios prolongados, contactos em danças lascivas…

Mas de todas a mais estravagante é por certo a qualidade de marido de um soldado reformado, de um marujo na reserva, de um cavalleiro d’Africa.

E comtudo a casta attitude de Antonia, a sua candidez intemerata, o juizo recto, a doçura do seu animo, collocavam a esposa do moço official n’uma atmosphera ideal que não acarretava ridiculo sobre o noivo.

Partiram para o Reino logo depois do casamento.

A noiva recemcasada trazia entre as joias do enxoval uma dadiva pouco vulgar—a certidão, que o governador lhe dera, dos seus serviços pelas armas, e das acções de valor que commettera em successivas batalhas. Um attestado authentico de heroe d’Africa!

Parece que essa qualidade nada perjudicou a ternura do casal, visto que pouco depois lhe nascia um filho. Pelo menos de um, temos noticia.

Felippe III, isto é Filippe II de Portugal, quando veiu a Lisboa em 1619 quiz vel-a.

Tinha essa entrevista por motivo não sómente satisfazer a curiosidade do monarcha, mas talvez um intuito politico.

Era conhecido o prestigio da valorosa amazona a quem chamavam a cavalleira portugueza.

O soberano hespanhol no intento em que então estava de captar as boas disposições da Nação que, embora o estivesse recebendo com festejos espaventosos—cortejos, illuminações, danças e arcos triumphaes—era no entanto ainda ciosa de autonomia, aproveitava todos os meios de lisonjear, sem compromettimento, essa illusão. Affigurou-se-lhe que era um passo habil dar um testemunho da sua graça á heroina, que tão brilhantemente tinha honrado o brio portuguez.

Mandou chamal-a.

Accudiu Antonia Rodrigues ao convite. E pouco depois subia a grande escadaria do Paço da Ribeira, onde o Rei se achava, depois de ter vindo do convento dos Jeronymos.

Atravessou a sala dos Tudescos, entre os olhares curiosos da côrte, e foi introduzida na Camara onde Filippe III dava audiencias.

Devia ser um espectaculo curioso o encontro d’essa mulher forte, desempenada, de rosto aberto e olhar decidido, com o valetudinario e debil monarcha!

 

A pallidez de familia, tão pronunciada em Filippe, e as feições caracteristicas da casa d’Austria, tornadas celebres depois por Velasquez, nos rostos compridos e nos beiços proeminentes dos famosos quadros, contrastavam com a pelle de Antonia, tisnada pelo sol africano; com o seu rude dizer, ainda por polir; e com as maneiras de quem tinha a cavallo espetado alguns javalis e muitos moiros.

O Rei, ou por diplomacia, ou porque realmente a heroina lhe agradasse, conversou-a longamente. Acabou o colloquio (conforme diz o chronista) por lhe fazer mercê de duzentos cruzados para ajuda de custo, uma fanga de trigo em cada mez, e uma tença de dez mil réis em sua vida.

Mais ao deante tomou um filho para moço da sua camara, em attenção aos serviços d’ella.

Frey João de São Pedro, ou para melhor dizer Damião de Fróes Perym, (anagrama que servio de cryptonimo ao frade hieronimita) insere no seu Theatro Heroino um capitulo dedicado á intrepida cavalleira. Se não nos dá copiosas noticias, pois Frey João é pobre de erudição e de interesse, constitue comtudo um justo panegyrico celebrando o seu valor.

E D. Antonio da Costa no livro intitulado «A mulher em Portugal» tambem lhe dedica duas paginas, mais encomiasticas e laudatorias que noticiosas. Os dois escriptores contribuiram assim, cada um conforme a sua fazenda, com pedras valiosas para a base do monumento, que em tempo devia ter sido levantado, perpetuando a memoria da heroina.

Porque, encontrando-se n’ella tantas das qualidades da nossa raça aventurosa, sonhadora, resoluta; e tantas das virtudes da mulher portugueza, energica, valente, e leal, bem teria merecido a intrepida amazona (é esse o voto do licenceado Duarte Nunes do Leão) uma estatua equestre na melhor praça de Mazagão!

POST SCRIPTUM

Já depois de composto este artigo o sabio investigador General Brito Rebello a quem tanto deve a litteratura historica, teve a amabilidade de me fornecer a nota seguinte, que transcrevo a titulo de curiosidade, e que vem corroborar as affirmações do chronista, havendo apenas divergencia na quantia que foi dada como tença á heroina o que para nós pouca importancia tem, visto que não é a abastança do casal que nos interessa.

Ev El Rey faço saber aos que este aluará uirem que auendo respeito a Antonia Rodriguez seruir na villa de Mazagão cinco annos despingardeiro de cavallo e de pee em trajos desoldado, ey por bem de lhe fazer merçe de cinqo mil reis de tença cada ano em sua vida pagos no almoxarifado da dita uilla alem dos dez mil reis de tença que tem nas obras pias os quaes cinqo mil reis começará a uencer de treze de nouembro deste ano presente em diante ê que lhe fiz esta merçe. Pello que mando ao almoxarife do almoxarifado da dita uilla que ora he e ao diante for que do dito tempo pague a dita Antonia Rodriguez os ditos cinqo mil reis de tença em sua vida como dito he, e pello treslado deste que será registado no liuro de sua despesa pello escriuão de seu cargo e conhecimentos da dita Antonia Rodriguez lhe será leuado em conta o que lhe pella dita maneira asi pagar, e este ualera como carta sê êbargo da ordenação do 2.º Liuro titulo xx ê contrario, Diogo de Sousa o fez ê Lixboa a quatro de dezembro de j̃ bjᶜ e dous. Sebastião d’Abreu o fez escreuer.

Archiv. da Torre do Tombo, Chancel. de Felip. II, Doaç. Liv. 12, fl. 18 vᵒ

  1. B.—Por não haver na typographia o signal e til, usou-se do accento circumflexo quando a graphia do documento indicava aquelle accento.