SUMMARIO

A côrte de El-Rei D. Manoel—Duas estrellas—D. Joanna de Mendoça e D. Brites de Lara. Quem eram—D. Brites é pretendida por muitos—O Marquez de Villa Real, o Duque de Bragança e o proprio Rei desejavam-n’a para seus filhos—O Principe Herdeiro fez-lhe a Côrte. Interpretação de textos desfavoravel ao bom nome de D. Brites. Rectificação das accusações—D. Brites casa com o Conde de Alcoutim—É mãe da primeira Duqueza de Aveiro

E trabalhay por andardes

com as damas,

laa vos onray de danardes

suas famas.

(De Francisco Mendez de Vasconcellos hyndo-se meter frade—Cancioneiro geral, tomo III, pag. 435)

Em plena Côrte manoelina a formosa D. Brites de Lara foi astro de primeira grandeza.

N’esse periodo da Renascença em Portugal, quando tudo desabrocha com exhuberancia florente: quando os sabios transformam a astrologia na sciencia de observar o céo, e de caminhar nos mares, e as artes passam a inspirar-se nos ideaes da antiguidade pagã; quando já chegam de Além-mar as náos abarrotadas de ouro e especiarias, e os capitães trazem protestos de vassallagem dos potentados do Oriente; quando os Reis do mundo pedem allianças e offerecem a sua bemquerença; quando a ogiva severa das cathedraes gothicas se transforma nas bracejantes nervuras de pedra em ramificações artificiosamente brincadas, e da Italia vem os primeiros sopros do humanismo nas lettras, a vida aulica toma aspectos novos de fausto, de grandeza, de elegancia e de graça.

As embaixadas partem com ostentação a levar Infantas a Monarchas e Principes, e a apresentar ao Papa, soberano da christandade, dadivas e homenagens.

Nas coutadas de Cintra echôam as trombetas das caçadas régias, em perseguição de veados e javalis.

No Tejo navegam docemente as galeotas com musicas festivas, levando o Rei Afortunado ás merendas dos caramanchões de Santos-o-Velho.

Nas ruas e praças o bom povo de Lisboa vê com pasmo atravessor o cortejo, em que D. Manoel, a cavallo, é precedido pelo rhinoceronte, pela onça brava que lhe dera o Rei de Ormuz, e pelos cinco elephantes trazidos do Industão, que borrifam com aguas rosadas os toucados das meninas curiosas debruçadas das adufas rotuladas.

Baylos mouriscos, com suas retortas e folias, meneiam-se ao som dos alaúdes, pandeiros e tamboris, rufados pelas languidas agarenas, nas viellas estreitas da Alfama, subindo em danças até á Alcaçova.

Nos serões dos Paços da Ribeira, de Almeirim e de Evora, a voz de Gil Vicente e dos seus comicos exalta a fama de Portugal, a belleza das suas mulheres e a bravura dos homens.

Os rimadores palacianos e versejadores cortezãos compõem trovas, vibram apodos, entoam vilancetes e tecem enredos amorosos.

A vida é uma festa! A Côrte um scenario deslumbrante.

Entre as muitas Guiomares, Leonores e Isabeis, de quem os echos do Cancioneiro e registos mundanos repetem indiscretos ruge-ruges, duas formosas mulheres deixam fama do seu encanto—D. Joanna de Mendoça e D. Brites de Lara.

Aquella, cantada em verso por todos os poetas. Esta, cortejada por Duques e Principes.

D. Joanna, porque era triumphantemente bella e porque ella propria cultivava as lettras com relevo, inspirou muitos cantares e despertou muitas paixões. Celebrou-a o rendido Simão de Souza nas suas trovas enternecidas, e adorou-a o Duque de Bragança D. Jayme, aquelle que annos antes n’um delirio de ciume matara a primeira mulher, e que depois de conquistar Azamor veiu, n’um accesso de paixão ardente, depôr a sua alma triste no regaço da linda Joanna e coroal-a duqueza.

Não é d’ella que nos occupamos agora. Deixemol-a ir para o seu remanso de Villa Viçosa curar com o balsamo de uma felicidade tranquilla o espirito atormentado do melancholico Duque.

Trouxemol-a á memoria porque viveu na mesma roda e brilhou na mesma esphera em que se movia Brites de Lara. E sendo grande o prestigio da sua belleza, convem notar que não tolheu o poder de seducção que esta exercia.

D. Joanna, futura Duqueza de Bragança, tinha na dominante formosura a severidade olympica das deusas, e uma leve melancholia no geito, que fazia exclamar um dos seus adoradores, quando uma vez a Rainha a prohibiu de sahir:

Não cureis de vos queixar

nem deis lugar á tristeza,

folgae, dama de folgar…

Por isso os Lucenas, os Sousas, os Telles, Vimiosos, Alvitos, e quantos mais! (são quatorze os poetas que no Cancioneiro lhe dedicam versos) andavam captivos seus a incensar com trovas, glosas e cantigas a fulgurante inspiradora.

Mas Brites, mais nova e com mais frescura, tinha no olhar provocante, na boca risonha, no meneio airoso do seu corpinho bem moldado, todas as graças herdadas da avó hespanhola…

Porque esta rapariga azougada, que enfeitiçava Principes, esta sobrinha d’El-Rei D. Manoel, sobre cuja cabeça esteve por um momento suspensa a corôa real, tinha uma avó castelhana, muito bonita tambem, como o nome da sua terra ducal—Villa Hermosa.

O Duque de Vizeu, irmão de El-Rei D. Manoel, quando estivera em Castella, pelo capitulo acerca das tercearias, encontrou viuva a Duqueza de Villa Hermosa, cunhada de Fernando, o Catholico, e neta, por sua mãe, de D. Ignez de Castro e de D. Pedro I.

O Duque de Vizeu e a viuva impressionavel do mestre de Calatrava encontraram-se na Côrte dos Reis Catholicos. Elle, o futuro apunhalado de Setubal, galhardo, bom cavalleiro, e com um certo lusitanismo que ás hespanholas agrada; ella livre de peias matrimoniaes, e envolvendo-se com donairoso gesto nos véos elegantes da viuvez recente.

Entreabriram, nas respectivas existencias, um parenthesis amoroso, que breve se encerrou, mas do qual resultou uma creança que o pae trouxe cuidadosamente para Portugal quando finda a sua missão.

El-Rei D. João II, porém, logo que se desfez summariamente do Duque, determinou ao tenebroso Antão de Faria que mandasse crear o pequeno em segredo e longe da Côrte, na casa de um lavrador de Portel… não fosse a creança, pela sua origem, crear-lhe difficuldades de futuro.

A essa obscura villa alemtejana mandou El-rei D. Manoel, quando subiu ao throno, buscar o sobrinhito, e casou-o com D. Joanna de Noronha, da casa de Villa Real, nomeando-o em seguida Condestavel.

Foi d’esta união, de pouca dura, que nasceu em 1501 a linda Brites em quem, segundo a phrase do conspicuo D. Antonio Caetano de Sousa, a natureza «ajuntou descrição e formosura sobre o real sangue que lhe deu o nascimento, que fez a esta senhora tão esclarecida, que a habilitava digna consorte de um soberano.»

E quasi esteve a sel-o.

Vejamos como.

A sua meninez passou-se junto da mãe, a Condestabelleza viuva, e a sua radiante mocidade illuminou os salões dos Paços de El-Rei D. Manoel, seu tio-avô, que se revia n’ella desvanecidamente.

Ainda ia nos quatorze annos, e já em volta lhe borboleteavam pretendentes; uns presos da sua belleza, outros attrahidos pela sua grande fortuna, e situação eminente. Quantos!

A Condestabelleza viuva era irmã de Marquez de Villa Real, D. Fernando. Este tinha um filho—o Conde de Alcoutim—e para elle ambicionava a appetecida sobrinha.

Por seu lado o Duque de Bragança, D. Jayme, que frequentava assiduamente a casa de sua prima, (os Villa Reaes eram primos dos Braganças), via enlevado o desabrochar promettedor de D. Brites, cujo rostinho enfeitiçava todos em redor. Alguem chegou até a julgar que o sorumbatico Duque, visitava D. Joanna de Noronha porque «estando hi sua filha bordada de louçainhas» se sentia elle proprio namorado, pretendendo-a para si.

Deste rumor chegou echo aos ouvidos do Marquez de Villa Real, que se julgava seguro d’esta noiva para seu filho, fundado n’uma supposta promessa de El-Rei. E como detestava o Duque de Bragança, e não estava longe de suppôr que este projecto nascesse no intuito de «o danar» fazendo-lhe picardia, escreveu uma carta desabrida a El-Rei.

Mas não era para si que o Duque de Bragança D. Jayme a queria, pois talvez já a esse tempo andasse tomado de amores pela que devia ser sua segunda mulher, e ainda não estava desligado d’um compromisso que por elle tomára El-Rei D. Manoel, de casar com D. Leonor de Noronha, filha do Marquez, senhora de grande erudição, mas de poucos attractivos femininos.

Era para o proprio filho, D. Theodosio, embora tamanino, que o Duque de Bragança ambicionava a gentil noiva.

Havia, porém, da parte de El-Rei D. Manoel, como se vae ver, uma intenção reservada.

Damião de Góes, o chronista, diz-nos que sendo ella «hua das formosas e bem dispostas mulheres que em seu tempo houve n’estes regnos com as quaes partes e nobreza de sangue, e bom dote que tinha, trouxe sempre opinião de casar com o Infante D. Fernando, filho terceiro D’El-Rei D. Manoel, posto que fosse muito mais moço que ella.»

E accrescenta:

«Mas por isto não lhe succeder á vontade…»

É necessario notar que a vontade d’ella não era casar com o Infante. El-Rei é que, conforme elle proprio diz, a desejava «para algum dos meus filhos»… Excepto o mais velho, já se vê.

Ora, foi esse justamente, o herdeiro, o futuro D. João III, que esboçou um idyllio amoroso com a seductora prima.

Creados os dois na aula régia, eram frequentes as ocasiões de se encontrarem; de trocarem olhares a que davam significativa intenção; de entrarem juntos nos mesmos jogos de cartas que entretinham os serões, ou nos folgares que alegravam as horas da sésta nos jardins realengos.

Assistiam com egual interesse ás diversões de altanaria, quando, nos campos de Almeirim, os falcoeiros reaes largavam os açores e gerifaltes encarapuçados, a alarem-se elegantes na perseguição da voaria, pelas crystallinas manhãs da leziria ribatejana.

Sublinhavam as mesmas allusões nos Autos de Mestre Gil. Riam-se juntos das mesmas facecias com que os chocarreiros, bobos, e anões os debicavam nas ante-camaras. E nas festas da Capella ouviam com egual unção os sons do orgão a gemer plangente, emquanto na atmosphera se aspirava aquelle perfume mixto de rosmaninho, de alecrim e de incenso que tão favoravelmente dispõe as almas á terneza.

Os quinze annos d’ella rimavam com os do Principe.

E d’este rythmo das duas mocidades ia nascendo suavemente um sentimento…

Não ainda uma paixão.

Mas o lume ia-se ateando com indiscreta chamma, e os roazes do mundo já entravam o boquejar o caso.

É que, quando D. Brites vinha com sua mãe, de Santarem a Almeirim, assistir a alguma caçada ou torneio em que o Principe tomava parte, involuntariamente o seguia com o jacto luminoso dos seus olhos negros.

E quando, em Lisboa, nos Paços da Ribeira, as figuras declamavam no tablado as suas fallas com emphase, não era raro surprehender o herdeiro do throno, distrahido das arengas, procurar com a vista interessada as louçainhas da garrida Lara.

Á perspicacia de El-Rei D. Manoel não escapou o embevecimento do filho, que assim ia contrariar os seus planos. Ou talvez algum mexerico caseiro lhe segredasse que já na côrte se formavam conluios e projectos sobre a possibilidade d’aquelle enlace.

Occorreu-lhe talvez então á lembrança, que no reinado antecedente tambem o Principe herdeiro andara, muito novo ainda, captivo dos olhos languorosos de D. Branca Coutinho, e a promptidão com que o inflexivel D. João II atalhou o devaneio amoroso.

N’este caso tratava-se apenas de um namorico passageiro, uma iniciação de adolescentes. E a perturbante D. Brites não passaria para o Principe d’aquillo a que os Hespanhoes chamam—novia de verano, querendo significar que estes laços corrediços se atam e se desfazem com a mudança de uma estação, deixando apenas uma recordação risonha. Tudo levava a crer que assim fosse. Mas á imaginação do monarcha afigurava-se o perigo imminente, e resolveu acudir-lhe, retirando o fogo de ao pé da estopa. Não que a estopa já se estivesse inflamando, como parece quererem alguns deduzir do exame de uns documentos vindos a lume ha poucos annos.

Vem aqui a talho fallar n’esses documentos.

Foi Luciano Cordeiro, a quem João Bastos, o Director da Torre do Tombo, os revelou, que veiu com elles a publico no appendice de um folheto que tem por titulo—A Segunda Duqueza—e que mais propriamente se deveria chamar—A segunda mulher do Duque D. Jayme. Mas isso não vem para o caso.

Prestando homenagem ás qualidades de investigador d’aquelle publicista, que enriqueceu com alguns trabalhos a litteratura historica, seja-nos comtudo licito, sem menoscabo pela sua memoria, discordar da hermeneutica que usou na glosa d’estes textos.

Levado pelo engodo de apresentar inédito, de destruir lenda, de faire du nouveau, exagera a importancia d’esses documentos, ultrapassa o alcance das palavras e illude-se com a intenção de quem as escreveu.

Uma vez enveredado no labyrintho das conjecturas, tenta desfazer o testemunho dos chronistas, e explica a seu sabor os motivos do terceiro casamento de El-Rei D. Manoel, para o que architecta um plano de politica matrimonial, que vae muito além dos designios d’aquelle monarcha.

O que nos diz a Historia pela penna do coevo Damião de Góes, e de Francisco de Andrade, que não muito longe d’esse tempo viveu?

El-Rei D. Manoel, que era na verdade um grande casamenteiro, como o fôra Dom João de Bôa Memoria, distribuia a seu talante as noivas conforme os interesses internacionaes, ou conveniencias de familia.

E assim, no proposito de continuar a alliança com Castella, determinara pedir para seu filho, o Principe D. João, a irmã de Carlos V.

Entretanto enviuvou. E quando, tempo depois, chegou á Côrte o retrato de Leonor, que o artista favorecera com attrahente belleza, tanto se deixou embelecar com a pintura, que resolveu guardar para si o original.

D’ahi nasceu o despeito do futuro D. João III, o resentimento contra seu pae e o refrear a custo o sentimento pela madrasta.

Pela morte do Rei, esboçou-se até, como é sabido, um projecto de casamento com a Rainha viuva. E são conhecidas as peripecias d’este drama de que já em outros estudos nos occupámos, e a que alludem os historiadores desde Andrade na Chronica e Frei Luiz de Souza nos Annaes, até ao sisudo auctor da Historia Genealogica.

Luciano Cordeiro, porém, pega nos documentos em que fallamos, e d’elles tira conclusões, por vezes engenhosas, mas tão enfeitadas pela imaginação, que alteram os acontecimentos e (digamos a verdade) collocam pouco geitosamente alguns dos personagens d’esta historia.

É tempo de dizermos quaes sejam os documentos.

Quatro cartas existentes na Torre do Tombo, entre os papeis do Corpo Chronologico.

A primeira e segunda d’essas cartas são do Marquez de Villa Real, dirigidas a El-Rei D. Manoel a 10 e 11 de Agosto de 1515.

O opulento fidalgo estava nas suas terras de Villa Real, quando de Lisboa recebeu um aviso que o alvoroçou.

Annunciava-lhe o zeloso correspondente, que na Côrte se tratava de dar casamento á promettida noiva de seu filho, o Conde de Alcoutim. E com quem? Com o seu primo co-irmão, o seu maior inimigo, o Duque de Bragança D. Jayme («Inymigo pubriquo» confessa o Marquez).

Facil é conceber o seu furor com o recebimento de taes novas. Ferido no orgulho, que era apanagio da sua raça, escreve sem detença a El-Rei, queixando-se amargamente, e pedindo-lhe «que atalhe este caso».

Essas duas cartas, em que a par da firmeza das expressões ha um certo resaibo litterario, demonstram que o Marquez, Dom Fernando, manejava com egual energia a espada e a penna. Aquella nas campanhas d’Africa em que se distinguira. Esta, nas horas de lazer do seu solar transmontano.

Na segunda carta relembra o Marquez que em Setubal o Monarcha lhe assegurara, que o Duque de Bragança casaria com sua filha Leonor, para com esta união acabarem as desavenças e «haver concerto» entre elle e D. Jayme.

Dos outros dois documentos apresentados por Luciano Cordeiro, é auctor o proprio Rei D. Manoel.

O primeiro é em fórma de Instrucções dadas a um secretario para as transmittir ao Duque de Bragança, seu sobrinho.

N’este papel datado de 5 de Outubro de 1520, D. Manoel trata dos projectos de casamento para sua sobrinha D. Brites de Lara.

N’elle se vê que o Duque pedira a ambicionada noiva, não para si, como o Villa Real suppunha, mas para seu filho, D. Theodosio, e vê-se tambem que El-Rei só consentiria n’isso, se não se fizesse o casamento com algum dos Infantes seus filhos.

Tambem o papel nos diz que tendo o soberano farejado o namorico da sobrinha com o Principe herdeiro, o que contrariava os seus projectos, decidira que ella casasse com o Conde de Alcoutim, como o pae d’este reclamara cinco annos antes.

O outro documento é uma carta de 20 de Dezembro, de El-Rei D. Manoel, em resposta a uns apontamentos que o Duque de Bragança lhe mandára sobre o caso.

Esses apontamentos, pelo que se deduz da carta de El-Rei, seriam uma contradicta a algumas affirmações acerca da sobrinha, exposta por D. Manoel.

É lamentavel não haver conhecimento d’esses apontamentos, pois nos elucidariam sobre os obstaculos (pejos lhe chama D. Manoel) antepostos pelo Duque ás resoluções do monarcha. Ao que se vê o Duque persistia na sua reclamação, e, por isso, El-Rei empraza-o a encontrarem-se em Lisboa no mez de Janeiro afim de, pessoalmente, lhe expôr as razões que o tinham movido.

D’estes documentos, que effectivamente nos esclarecem alguns pontos da chronica cortezã, tira Luciano Cordeiro conclusões imprevistas e, com especiosa hermeneutica, chega a encontrar n’elles elementos para explicar os ignorados motivos do casamento de El-Rei D. Manoel com a noiva do proprio filho.

Para isso, obrigando as palavras a significarem mais do que naturalmente os lexicons permittem, tem que dar como certo que D. Brites, no seu idyllio com o Principe D. João, resvalou imprudentemente, se não impudentemente, pelas margens floridas do rio, que banha os valles de Cythera.

E tem que attribuir ao proprio Rei a feia pecha de conspurcar a honesta fama de sua sobrinha, assumindo, declaradamente cynico, o papel odioso de atirar a pobre menina, com a sua supposta mancha, ao thalamo do Conde de Alcoutim, tambem seu parente, e um bravo militar, que servia em Ceuta.

Luciano Cordeiro depois de expôr aquillo a que elle chama—a Lenda—, e que é a Historia tal como nol-a transmittiram os chronistas comtemporaneos dos factos, apresenta a versão, que dá como assente, quando diz:

«Perjudicada a idéa do casamento do Duque D. Jayme com a litterata filha do seu orgulhoso adversario, o Marquez de Villa Real, ficára naturalmente mallogrado tambem o outro termo do régio plano:—o casamento do filho do Marquez com a juvenil sobrinha d’este e do Rei, Dona Brites de Lara, a neta do Duque de Vizeu. É até permittido duvidar da sinceridade do Rei quando em Setubal a promettera por nóra ao Marquez, como este lhe lembrava na colerica carta de 1515. D. Manuel tinha acerca de D. Brites bem diversas ideias.»

Fallando depois na inclinação de Dona Brites pelo herdeiro, accrescenta aquelle escriptor: «embarcaram ambos n’um idyllio de secretos e desaustinados (sic) amores, emquanto o Rei, o Duque e o Marquez, gente pratica e sisuda disputavam gravemente a quem ella havia de querer e dar-se. Deu-se a D. João. Não deixa duvida o dizer dorido e indignado do proprio D. Manoel a D. Jayme.»

Como se vê, Luciano Cordeiro dá como certo aquillo que o proprio D. Jayme (mais interessado e mais bem informado que o impetuoso escriptor) parece contestar nos seus apontamentos.

Mas além d’essa affirmação, Luciano Cordeiro accrescenta que «surprehendidos por El-Rei estes amores… e dada a obcessão apaixonada do Principe D. João por D. Brites… não sómente a revelação positiva d’este caso até agora escondido, desconhecido, e absolutamente inedito dissolve e arreda o conto já de si soffrivelmente inconsistente da paixão do Principe por D. Leonor, que não vira, como illumina e explica, facil e naturalmente a historia do terceiro casamento de Dom Manoel».

Depois, seduzido ainda pela ideia de modificar a Historia affirma que D. Manuel, vendo que o herdeiro envolvido em tratos de amores com D. Brites se recusaria a honrar o compromisso do pae e a sacrifical-a ao empenho da politica real, desposando a Princeza castelhana, resolve elle tomal-a como esposa.

Por este arrazoado aqui resumido já o leitor sente a inconsistencia da critica d’este investigador, que na ancia de tirar effeitos de documentos escondidos, desconhecidos e ineditos, se lança nas regiões da phantasia, chegando a interpretar a mania que sempre teve D. João de se vestir á portugueza, como uma homenagem a Dona Brites, em opposição aos que ostentavam trajos flamengos para fazerem a côrte á nova Rainha.

Mas não pára aqui. Para fortalecer a sua these entra em considerações psychologicas, que deixam todos os personagens a sangrar.

«Zelando, diz elle, affectuoso e austero, a honra do Duque e da Casa de Bragança—quem sabe se lembrando-se da tragedia de Vila Viçosa?—Dom Manoel diz-lhe assim sem reservas, carinhosa e honradamente que a noiva que lhe promettera, e elle queria para o filho, não lh’a aconselharia, não lh’a dará agora, que não é digna d’elle, e do futuro Duque, pois não soube guardar a honra de mulher. E ao mesmo tempo friamente, calculadamente sem uma palavra de hesitação ou escrupulo, atira essa mulher que elle proprio repudia e infama, para os braços de um nobre e moço soldado…»

Vamos já vêr como a razão fria e a justiça feita ao caracter dos personagens apresentados, desfaz este edificio architectado, com boa fé, sim, mas com imprudente leviandade.

Antes d’isso, porém, não resistimos a abrir um parenthesis, registrando um thema ou exercicio litterario que, por ser bordado sobre este caso, tem interesse e é pittoresco.

O Sr. Theophilo Braga, no decurso da analyse das obras de Gil Vicente, allude a este episodio sentimental, mas não lhe liga a importancia que a Luciano Cordeiro merece.

Diz até: «É mesmo natural que o Principe se adiantasse nos amores com D. Brites de Lara pelo despeito do terceiro casamento de seu pae com a irmã de Carlos V, que pretendia para sua esposa.»

Por esta versão o adiantar nos amores, ao contrario do que pensa Luciano Cordeiro, seria o effeito da paixão mallograda, uma especie de reacção contra o rapto paterno.

Sem entrarmos a escabichar nos recessos da psychologia joannina, vejamos como o commentador de Gil Vicente entende haver nas obras do comediographo referencias aos amores do Principe.

Tanto no Auto das Fadas como principalmente na Comedia de Rubena, encontrou o Sr. Theophilo Braga «elementos d’essa intriga amorosa» e até «uma allusão delicada á paixão do Principe, que a teria comprehendido, pois que Gil Vicente, n’aquella comedia, romantiza a situação d’esses amores, velando algumas circunstancias.»

Por muito que diligenciassemos achar, lendo e relendo esta ultima comedia, as pretendidas allusões, e tentassemos levantar o sendal que velou as taes circunstancias, não encontrámos maneira de identificar a Rubena, gemendo ao sentir as dores da maternidade, com a avó de D. Brites; nem esta com a pastorinha Cismena, que nas suas invocações exclama:

«Oh! mãe de filha perdida

Oh! filha de mãe prenhada

Sem ventura.»

Tambem não encontrámos a menor parecença entre o futuro D. João III, e o pastorinho per nome Joanne, que pergunta a Cismena quando entra em scena:

«Di, rogo-te Cismeneninha

Viste-m’a minha burrinha?»

E sobre tudo não vemos motivo para D. João se lisongear com a allusão.

Nos versos, com que o Licenciado apresenta o argumento da peça, quer o Sr. Theophilo Braga encontrar uma referencia á aventura amorosa do Duque de Vizeu:

«En tierra de Campos allá en Castilla

Habia un abad, que alli se moraba

Tenia una hija, que mucho preciaba,

Bonita, hermosa á gran maravilla.»

Com este trocadilho, especie de calembourg, formado com o tirar meia palavra ao final de um verso—villa—para o juntar a um adjectivo anterior—hermosa, formando o titulo—Villa Hermosa, com que alludiria á Duqueza, o nome d’esta heroína fica por tal fórma rebuçado que, embora demonstre engenho, não abona a hypothese. E menos se encontrará qualquer fundamento para ella no decorrer da peça em que a phantasia do poeta vôa de Castella para Creta; mettendo em scena pastores, diabos, feiticeiras, e todo o arsenal vicentino.

Não é licito tambem pensar que em plena côrte de D. Manoel, já casado com D. Leonor no tempo em que a Rubena se representou (1521) o comediographo na intenção de ser agradavel (?) ao Principe, se permittisse recordar o galanteio de pouca dura entre este e a priminha, agora tambem já casada com um grande fidalgo, um valente militar, um homem que Gil Vicente estimava e respeitava.

São provas d’esses sentimentos as citações referentes ao marido de D. Brites que se encontram nas obras do poeta.

Entre as orações dos Grandes de Portugal a Nossa Senhora, depois de enterrado D. Manoel, lá poz Gil Vicente a do Alcoutim. E no Romance á acclamação de D. João III, quando os Grandes do Reino lhe beijam a mão, depois dos dizeres do Duque de Bragança, do Mestre de Santíago, do Marquez de Villa Real, do Bispo d’Evora e dos Condes de Marialva de Penella, de Tentugal, e da Feira accrescenta:

«Diria o Conde d’Alcoutim

Beijando a mão preciosa:

Deus vos dê vida ditosa

E tire os dias de mi.

Pera vossa vida e nossa», etc., etc.

Ora Gil Vicente não poria esta linguagem na bocca do Conde, se porventura tivesse querido na Comedia de Rubena lisonjear o Principe com allusões, aliás de máu gosto, aos suppostos amores da Condessa, embora do tempo de solteira.

Esta tentativa, porém, de encontrar na Rubena situações e personagens identicos aos do episodio cortezão, se carece de fundamento, não deixa de ser engenhosa como jogo de espirito, habilmente architectado com mais ou menos verosimilhança.

Fechado este parenthesis voltemos agora á outra these. Essa colloca tão deploravelmente todos os actores que entram em scena, traz á historia consagrada tão grandes modificações, e carrega com tão graves responsabilidades os chronistas que a escreveram, que necessitamos examinal-a com alguma attenção e desprevenido criterio.

Não pretendo de modo algum, (seja dicto desde já), arvorar-me em paladino da nobre Brites, futura Condessa de Alcoutim, futura Marqueza de Villa Real, e mãe d’aquella que havia de ser a primeira Duqueza de Aveiro.

Não o necessita a sua memoria.

Nem tenho procurações, enviadas de além tumulo, dadas pelos que se pretende fazer figurar tão deprimentemente n’este pequeno drama. É excusado pois allegar provas de que El-Rei D. Manoel não era um cynico e um diffamador; de que o Duque D. Jayme, cujos defeitos a historia registra sem poupança, não póde ser acoimado de ambicioso vulgar, que põe de parte escrupulos na ganancia de augmentar o patrimonio do filho; de que o Marquez de Villa Real era incapaz de menosprezar a dignidade do seu nome reclamando e acceitando uma nóra «já poluida» como quem realiza um «soberbo negocio»: e de que o Conde de Alcoutim não era homem que ao voltar de Ceuta soffresse a imposição de lavar, com o seu nome limpo, a mancha cahida na candura virginal da noiva.

Finalmente não venho com a pretensão de defender os creditos dos chronistas Damião de Góes e Francisco de Andrade, accusados de terem contribuido com os «seus testemunhos autorizados» para se formar aquillo a que se chama a Lenda, mas deixando «adivinhar nas entrelinhas a verdade». Nem tão pouco me arrogo a tarefa de desviar de sobre a cabeça de Frei Luiz de Sousa a culpa de ter insinuado «com a sua penna cortezã» motivos falsos para o casamento de D. Manoel, ou de illibar D. Antonio Caetano de Sousa do delicto de «fazer cópias viciadas por piedosa ou cortezã intenção, forçando e escondendo quaesquer vestigios que certamente encontraria, do recalcado escandalo.»

A minha intenção é sómente pôr de sobreaviso o leitor, para se não deixar involuntariamente seduzir pelo apparato conjectural da versão romantizada.

Muito longe leva a phantasia quando se pretende a todo o transe defender uma these, acariciada pelo amor proprio de auctor!

Conheci pessoalmente Luciano Cordeiro. Tinha um excellente caracter. Era um trabalhador bem intencionado, um investigador a quem se devem muitos trabalhos de merecimento.

Mas não só litterariamente carecia de uma penna attica que tornasse menos pesada a sua prosa, e mais elegante a sua erudição, como tambem nos seus juizos era arrastado por violencia tão intransigente no apresentar das affirmações, que chegava a attingir a bôa memoria de algumas figuras femininas e a auctoridade de alguns historiadores.

Já na obra intitulada: Senhora Duqueza, pretendendo, aliás com bom designio, descarregar a memoria do Duque, desnuda indirectamente o coração de D. Leonor, e entra tambem a accusar D. Antonio Caetano de Sousa e outros genealogistas.

Menoscaba-lhes a probidade profissional e alcunha-os de falsarios, sem outro motivo senão o do auctor da Historia Genealogica, e os outros escriptores, não favorecêrem a sua these.

Aqui o caso é identico. Arrastado pela ideia de rectificar episodios historicos, excedeu a méta, e atropellou os obstaculos que encontrava.

Os documentos a que nos referimos, embora valiosos e interessantes, não têem o pezo que lhes attribue, nem d’elles se podem extrahir as conclusões de alcance historico que n’elles deseja encontrar.

Começa por dar a duas palavras alli empregadas o seu significado actual que differe do que então ellas tinham.

Honra—Escandalo. Não possuiam estes vocabulos, no seculo XVI o sentido que agora se lhes liga e com que Luciano Cordeiro interpreta os periodos da carta de D. Manoel.

Por isso quando aquelle Monarcha escreve ao Duque D. Jayme dizendo que:

«Se seguiram entre meu filho e ella algumas cousas de amores e que isso foi tão adeante sem eu ser d’isso sabedor, que quando o soube era já muito desservido do que era passado, que de nenhuma cousa o podia ser mais nem fallecia muito para de todo não ser muito anojado e dentre mim e o Principe meu filho se seguir mui grande escandalo» (repito) El-Rei D. Manoel quando isto escrevia, não queria ligar á palavra escandalo a ideia que hoje lhe ligamos.

Não pretendia fallar na revelação espalhada de um caso escabroso ou no conhecimento pelo publico de scenas vergonhosas. Não! Queria apenas significar que algumas cousas de amores entre o Principe e D. Brites, isto é, o idyllio encetado, se fosse progredindo, podia trazer desavença entre elle e o filho, que estava destinado a outra alliança.

N’este mesmo sentido, e a proposito do casamento de El-Rei D. Manoel com D. Leonor, emprega Francisco de Andrade esta palavra quando diz:

«onde tiveram de lançar mão aquelles que desejavam de semear escandalos e desavenças entre o Principe e El-Rei seu Pae».

Escandalo, com sentido de divulgação de actos vexatorios e deshonestos, é termo recente e empregado sem grande correção.

Assim tambem a palavra—honra.

Quando na sua carta El-Rei D. Manoel diz: «vendo como por esta mulher estar tão fóra d’aquillo que eu esperava e com tanta magua da sua honra» não queria dizer que ella a tivesse perdido, como hoje se diria em linguagem de noticia de gazeta, para annunciar a quéda irreparavel de qualquer burguesinha loureira.

Apenas quiz, como tio-avô, informar o Duque de que ella decidindo-se a acceitar o galanteio do Principe, quando elle a destinava a um dos Infantes, exorbitara, e não honrara as determinações que lhe impuzera.

Nem o Rei D. Manoel, cavalleiroso e nobre como era, iria, pela bocca de um Secretario e mettendo na confidencia o Conde de Vimioso, e o proprio Duque D. Jayme, diffamar uma parenta sua, uma orphã quasi creança, que lhe devia merecer attenções especiaes.

Sómente, encarando o galanteio do filho como uma ameaça á realização dos seus planos, e desejando afastar da côrte tão perigosa e perturbadora creaturinha cuja belleza iria causar «desaseguo» e tirar «descanso e contentamento» resolveu, antes que houvesse mais corações captivos e cerebros estonteados, que ella casasse com o primitivo noivo, que a levaria para o faustoso solar de Villa Real, ou para o seu commando de Ceuta.

Descobre-se na mensagem de El-Rei D. Manoel, é certo, bastante azedume por ver que a tentadora rapariga lhe alterava os projectos, e contrariava a vontade, que era casal-a com um dos Infantes. Resistir-lhe era motivo bastante para o exasperar. Enfeitiçar-lhe o filho, uma aggravante que trazia magoa para a sua honra.

Cumpria por tanto dar-lhe depressa um destino, que evitasse futuras complicações.

Iracundo, chega mesmo a affirmar na carta, que lhe diminuira o dote.

Mas d’ahi a cahir na baixeza de declarar, que a sobrinha era barregã de seu filho e que por isso a ia dar a outro sobrinho, ha grande distancia, que não se deve galgar de animo leve.

O proprio Duque D. Jayme, a quem El-Rei dirigia a mensagem, deu tão pequena importancia ao incidente, que nos seus apontamentos, em que responde ao Rei, ainda a pretende para seu filho, como se deprehende da contra-resposta de D. Manoel.

Este no entanto intimava por um cartão a seu filho que puzesse ponto no derretimento, e compunha d’este modo as peças do xadrez matrimonial, evitando um chéque ao Rei.

E ella, a quasi Infanta, a filha do Condestavel, seria a cabecinha leviana, a estouvanada, aquella a quem pesava mais o coração do que a cabeça, como a querem figurar?

Formosa, sim. Todos o asseguram. Seductora, sem duvida. Sensivel e romanesca a sua imaginação, levantar-se-hia em vôos audaciosos até ao throno, sem que isso revele uma aspiração desairosa, posta em pratica por processos degradantes.

Tinham-lhe dicto que um seu primo a pretendera. Mas esse estava em Ceuta, entregue ao commando militar e talvez desinteressado. Tinham-lhe tambem affirmado que D. Jayme a desejava para seu filho. Mas este era uma creança. Finalmente todos lhe diziam que o proprio Rei a destinava a um dos seus.

Que espanta pois, que ella, aceitando este alvitre, se inclinasse para aquelle que pela sua edade, pela aureola que o cercava, pela convivencia entre os dois, mais se adjectivava ao seu sentir? O Principe D. João!

Seria atrevida a ambição?

Mas a Rainha D. Leonor não era filha de Rei.

Tambem não o fôra D. Ignez de Castro. E, arrepiando mais na historia, lembrar-se-hia de D. Leonor Telles, e da mulher de D. Sancho II—D. Mecia Lopes de Haro, que era filha do Cabeça Brava; recordando-se tambem de D. Mathilde de Bolonha, que casara com o que havia de ser D. Affonso III.

Então?

Não era ella sobrinha de El-Rei D. Manoel? Não a tratava elle como futura nóra?

Mas este é que decidira de outro modo, quando ao filho remetteu o cartão, manifestando a sua vontade de que mudasse de ideias.

E o filho, o Principe D. João, que Luciano Cordeiro quer fazer-nos suppôr apaixonado pela Prima, não se achava tão absorvido pelo «amoroso enlevo» que não fosse, interpretando a seu modo a ordem paterna, cultivar a intimidade d’uma certa Izabel Moniz, cuvilheira da Rainha, e filha do alcaide Carrança, de quem teve um filho.

Já esquecera a novia de verano.

Ora coincidindo com o desvanecimento do sonho azul de D. Brites, chegava a Lisboa, escorrendo gloria, o filho do Marquez de Villa Real.

Era D. Pedro de Menezes uma prestigiosa figura.

Como erudito tem lisonjeira menção nas obras de Cataldo Siculo, que em seus escriptos louva a eloquencia d’este Conde de Alcoutim, tanto em prosa como no verso latino, chegando a dizer-lhe n’uma carta:

«Non solum te nostratibus Poetis praefero, sed veteribus illis comparo.»

Seu avô, D. Pedro, achando-se um dia a jogar a chóca (especie do moderno golf) com outros fidalgos, foi chamado por D. João I para ir defender Ceuta. Pegou no páo com que estava jogando e disse para quem lhe trouxera o recado: «Com este cajado irei defender Ceuta dos Mouros». Por isso o escudo de armas de Villa Real tem por legenda—Aleo—isto é, o páo ou bastão com que D. Pedro batalhou.

Este tambem, como o seu antepassado, déstro e habil nos jogos athleticos, trocou o aleo com que jogava a chóca, pela espada com que entrou em Ceuta no anno de 1512.

Governou essa praça, e durante os cinco annos que alli permaneceu «conseguiu muitos triumphos e teve gloriosos successos».

Se não era um futuro Rei, era o herdeiro de um grande nome, parente da Casa Real, senhor de muitas villas e logares e… um noivo attrahente.

Quando desembarcou, vindo da Africa, tinham já corrido dois annos sobre o caso sentimental, que não passára de um flirt (permitta-se-me a expressão applicada a um namorico do seculo XVI), que apenas tivera importancia pelo muito que irritára El-Rei D. Manoel.

No coração da rapariguinha operara-se já, como n’uma retorta de laboratorio chimico, a reacção natural de que o tempo é poderoso agente.

Phantasias, ambições, sonhos de grandeza, chimeras côr de rosa, e todos os elementos com que na alma feminina se compõe a imagem da Felicidade, tinham fermentado salutarmente no seu animo.

O passado não fôra a fallencia de uma vida, porque o devaneio interrompido não causára a derrocada irremediavel da sua existencia.

Fôra apenas uma miragem entrevista e logo desfeita, como as nuvens da primavera; uma illusão de optica sentimental, que a sua vista firme agora rectificava.

E o futuro Marquez de Villa Real não era apenas um premio de consolação na loteria matrimonial, nem um marido complacente destinado a aposentar cabecinhas levianas.

Grande homem de bem, bravo militar, intelligente, elegante e habil cortezão, seduzia com a sua personalidade dominante mais que uma imaginação feminina em busca de ideal.

Não foi por isso constrangida, nem arrastada pelo despeito, que D. Brites o acceitou.

O proprio Rei D. Manoel no seu escripto diz «tenho sabido que he com deliberada vontade de casar com o Conde d’Acoutym.»

Não foi tambem por obediencia ao Rei, que parecia querer impôr este casamento, nem ao pae que tanto o desejava, que o Conde a tomou por mulher.

Casou porque n’ella conheceu qualidades que a tomavam digna de continuar a sua nobre raça, e certamente tambem, seduzido por aquelle poder de encanto, que Damião de Goes celebra quando na sua chronica lhe chama: «uma das formosas e bem dispostas mulheres que em seu tempo houve n’estes reinos.»

As nupcias realisaram-se em 1520, no mesmo anno em que D. Joanna de Mendoça, a outra estrella do firmamento palaciano, se escondia nos Paços solarengos de Villa Viçosa.

Ambos os casaes foram felizes. Cada um a seu modo.

O Duque D. Jayme sentiu a mão delicada da antiga Inspiradora de Poetas, sarar-lhe a ferida, aberta na alma pelas recordações sombrias.

D. Brites e o Conde D. Pedro, esses, sem que recordações ou remorsos perturbassem as horas calmas do seu viver, nem suspeitando que mais de trezentos annos depois, futuros historiadores fossem projectar na sua mocidade fócos de luz artificial para refazer a historia, tiveram numerosa prole.

D’elles nasceu, além do 1.º Duque de Villa Real, aquella gentillissima Juliana, cujo encanto, como veremos no capitulo seguinte, tambem viria a ser causa de episodios ferteis em scenas dramaticas.

D. Brites vendo crescer a filha herdeira da sua belleza, pensaria talvez, com prophetico e penoso alvoroço, que nem sempre a graça e a formosura são dotes invejaveis, porque toda a superioridade, seja ella qual fôr, é sempre o alvo dilecto da malicia humana.