SUMMARIO

As glorias portuguezas disputadas por estrangeiros. O Palmeirim de Inglaterra attribuido a hespanhoes. Controversias. Os trabalhos de Purser—Alguns dos documentos mais interessantes. A desculpa de uns amôres feita por Francisco o Moraes. A sua paixão pela bella Torcy na Côrte de França. As mimosas de El-Rei. Identificações. Coração ferido. A Infanta D. Maria acolhe benevolamente o poeta. Morte mysteriosa.

É sina das glorias portuguezas verem-se disputadas por extranhos!

Um punhado de aventureiros audazes e sonhadores embarca-se um dia em rudes galeões, em airosas fustas, ou em resistentes carraças e, de longada vae ao mundo revelando novos mundos…

Logo vêm Italianos, Hespanhoes, Francezes, e até Inglezes reivindicar a prioridade dos seus descobrimentos. E comtudo, se da Europa amputassem esta nesgasita occidental que as ondas beijam, e onde os monstros marinhos cantam extravagantes balladas; se supprimissem da Historia o povo que foi seduzido pela mysteriosa Atlantida, pelo mysterio do Preste João, e que, por loucura aventureira se metteu aos mares, o homem não teria tão rapidamente caminhado, a humanidade não poderia tanto a tempo ter-se alastrado pela terra, e muito mais tarde haveria conquistado o globo.

Um cavalleiro portuguez, Vasco de Lobeira, que as ideias de cavallaria andante embriagavam, escreve, na volta do seculo XIV, o seu Amadis de Gaula. E logo a sorte mofina envolve n’uma nebulose o auctor e o romance, de maneira que, conforme diz o Dr. João de Barros nas Antiguidades e cousas notaveis de antre Douro e Minho, «como estas cousas se seccam em nossas mãos os Castelhanos lhe mudaram a linguagem e attribuiram a obra a si.» Deram-lhe como auctor um Montalvo ainda mais indeciso na sua personalidade que o nosso Lobeira.

Um mathematico de genio, que lia nos astros e comprehendia a harmonia das espheras, inventa o instrumento que melhor ajudaria os navegadores a proseguirem na sua rota sem escolhos; e sem detença vem os Francezes com o seu Vernier, pretender que o aparelho d’este precede, se não no tempo, pelo menos nas vantagens, o nonio do nosso immortal Pedro Nunes.

Antonio Ferreira, o culto humanista, rendilha em correctissimos versos soltos a sua Castro, obra prima do nosso cyclo classico.

Pois o plagiario Bermudez não ousou arrogar a si a paternidade da obra, valendo-se da precedencia da edição da sua insipida Nise lastimosa?

Ainda mais. Um conego engenhoso e atrevido atira uma tarde, do alto do Castello de Lisbôa, em Agosto de 1709, a celebre Passarola, sua invenção, avó veneranda dos modernos Zeppelins. Soffregamente, os Montgolfiers em França affirmam que se haviam antecipado ao nosso Bartholomeu de Gusmão.

E não param aqui os latrocinios.

Recuando um pouco no tempo, topamos com o mais engenhoso romance de Cavallaria que o seculo XVI produziu—O Palmeirim de Inglaterra, lido e relido por cavalleiros e donas, amado por todos os que sentiam ainda na imaginação esvoaçar a pluma ligeira da poesia medieva, e se compraziam em admirar a valentia dos heróes que vencem gigantes e resgatam donzellas prisioneiras. Pois essa novella, que Francisco de Moraes offerece á erudita e talentosa Infanta D. Maria, que durante dezenas de annos desperta em todos os animos masculinos valor e ancia de combates, e em todos os corações de mulher sympathia e admiração pelas proezas dos Palmeirins, Florianos e Dramusiandos, esse quasi poema que ao proprio Camões inspira a Tenção de Miraguarda, tambem tem sido regateado á gloria do seu auctor, attribuindo-o até a outros Portuguezes. Assim, o proprio Cervantes, ao dar o golpe mortal na Cavallaria Andante, quando figura na livraria de D. Quixote o barbeiro e o cura condemnando á fogueira os livros culpados da exaltação do engenhoso manchego, e exceptuando por serem excellentes o Amadis e o Palmeirim, refere-se a este ultimo dizendo: «este libro, señor compadre, tiene autoridad por dos cosas: la una por que él por sí es muy bueno; y la otra, porque es fama que lo compuso un discreto Rey de Portugal.»

Um Rei de Portugal? D. Duarte diziam uns, D. João II diziam outros sem grande attenção pela chronologia e sem grande senso critico. Como se ao melancholico filho do Rei D. João I sobrasse tempo depois de escrever o Leal Cavalleiro ou o Livro da Ensinança de bem cavalgar toda sella, para se embrenhar na narrativa das extraordinarias aventuras, que se emmaranham nos 172 capitulos do famoso romance. Ou como se D. João II, entre os festejos de Evora e o proseguimento de sua empreza governativa, tivesse disposição e embocadura litteraria para se comprazer na tarefa de explicar como o cavalleiro do Dragão desencantou Leonarda, e como a mesma Leonarda foi tambem desencantada pelo sabio Daliarte.

Mas não é essa competencia, que mais affronta a paternidade do nosso Moraes. Cervantes, que não era um erudito ou um bibliophilo, attribuiu ao Palmeirim aquella origem, e ainda assim fallando pela bocca do Licenciado.

Outros Hespanhoes, porém, viriam disputar em favor de compatriotas seus, a proveniencia do notavel romance ao imaginoso Thesoureiro de El-Rei D. João III.

Depois de mais de dois seculos de incontestada naturalidade portugueza, apparece, em 1826, o livreiro-bibliophilo D. Vicente Salvá, que, fugido de Valencia, foi estabelecer-se em Londres, a berrar aos quatro ventos, no seu famoso catalogo, que descobrira uma edição hespanhola do Palmeirim, anterior á portugueza de 1567, e que o seu auctor era um tal Ferrer. Este Ferrer, diga-se de passagem, não foi mais que um modesto mercador de livros, escriba de segunda ordem.

Mas logo depois o filho de Salvá, illudido por um acrostico da edição de 1547, julga descobrir que não foi Ferrer o auctor da obra, mas sim Luiz Hurtado, um poeta menor, incapaz de o escrever por falta de engenho, e por falta de edade. Tinha apenas uns 15 annos.

Dividiram-se então os campos, envolvendo-se os contendores na celebre controversia, e foram com erudição apresentados os mais rebuscados argumentos (alguns fundados em ingenuas subtilezas) para comprovar as asserções com que os de cada nação reivindicavam o Palmeirim.

Do lado dos Hespanhoes formaram na primeira fila Salvá e D. Pascoal Gayangos, que foram seguidos por outros criticos e diccionaristas bibliographicos.

Defendendo a origem portugueza, encontrâmos o sabio hespanhol Benjumea, o brasileiro Odorico Mendes, D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, Pinto de Mattos, o Sr. Theophilo Braga e mais recentemente o escriptor inglez William Edward Purser, que em 1904 publicou um livro digno, a todos os respeitos, de attento exame e de uma gratidão sem reservas por parte de todos os Portuguezes que prezam as glorias da sua terra.

William Purser, em 464 paginas de prosa cerrada, encara no seu Palmeirin of England o assumpto em todos os seus aspectos, e, occupando-se principalmente da controversia, demonstra com argumentos irrespondiveis a origem portugueza da novella que Francisco de Moraes compoz, quando foi a França como Secretario de D. Francisco de Noronha, futuro Conde de Linhares, Embaixador de Portugal.

Não caberia aqui, ainda que me propuzesse extrahir e distilar a quinta essencia do assumpto ou apontar as questões que têm levantado o famigerado romance de cavallaria, bem como as polemicas litterarias a que tem dado azo. O sabio inglez trata de todas. Quem quizer aprofundar o caso terá, portanto, depois de ler os trez volumes do Palmeirim, o que não é tarefa ligeira para o leitor de hoje (pois que o mesmo Purser diz a respeito da novella: a work no one reads) de compulsar vagarosamente a obra do critico.

São de natureza varia os argumentos por elle usados; uns colhidos no estudo intrinseco do romance, outros fundados na chronologia, outros na comparação do merecimento de Francisco de Moraes, da sua cultura, do seu estylo, da situação social que occupou em Portugal e na Côrte de Francisco I, com as individualidades inferiores dos dois Hespanhóes, o Ferrer e o Hurtado.

Um dos mais engenhosos argumentos é o que devemos á paciencia do critico inglez, e que faz parte do capitulo em que coteja as duas versões, phrase por phrase. Prova com elle exuberantemente terem sido os Hespanhóes que traduziram (em estylo, aliás incaracteristico e insipido) o texto portuguez e não Francisco de Moraes que trasladou o de Hurtado.

Purser comparando os dois textos, e fazendo notar que a nossa palavra saudade não tem equivalente em hespanhol, encontrou no Palmeirim de Inglaterra, em portuguez, cincoenta e sete vezes esta palavra e sempre empregada com propriedade. No texto hespanhol é omittida trez vezes, e nas outras cincoenta e quatro é substituida pelas palavras—alegria—cuidado—gozo—soledad—deseo—deleite—etc; evidentemente rodeios para evitar a difficuldade da traducção de uma palavra intraduzivel.

Abençoada seja a benedictina perseverança com que o estudioso inglez catou a prosa de Francisco de Moraes!

Mais uma vez a palavra—saudade—tão nossa, veiu dar uma certidão de naturalidade a uma obra escripta na doce lingua portugueza.

Outro argumento que melhor ainda demonstra essa naturalidade e constitue, por assim dizer, uma prova n’este processo de investigação de paternidade, é o episodio que no Palmeirim de Inglaterra toma os capitulos 137 a 147, em que são descriptas as justas em honra de quatro senhoras francezas, esclarecido pela comparação com o escripto de Moraes, que nas suas obras se intitula: Desculpa de uns amores, que tinha em Pariz com uma dama franceza da Rainha D. Leonor, por nome Torsi, sendo portuguez pela qual fez a historia das damas francezas no seu Palmeirim.

Recordemos esse pequeno romance, seguindo o proprio Moraes, que n’elle foi heroe e chronista, e percorramos não só aquelle escripto em que nos deixou a sua confidencia, mas tambem a carta dirigida ao Conde de Linhares, onde encontraremos uma scena flagrante das recreações algo desregradas das damas da côrte franceza.

Desculpa de uns amores… é o titulo com que foi divulgada a curiosa declaração.

Desculpa? N’esta confissão, especie de auto-biographia amorosa, que alguem já comparou ás de Rousseau, por se comprazer em mostrar-se á posteridade n’uma postura de geito ingrato, o nosso Moraes é tão ingenuamente sincero, que não extranhamos que quizesse como que desculpar-se de, em edade já avançada, se deixar envenenar pela amorosa pestilencia distillada nos olhos maliciosos da escarnicadeira Torcy.

Para um meridional facilmente inflammavel, como era o thesoureiro particular de D. João III, que no seu proprio dizer tinha «a condição namorada como em especial a tem os Portuguezes» e já anteriormente se sentira muitas vezes tomado de amores, era perigosa aquella creatura formosa, loureira, voluvel, e prezada do seu parecer, que estonteava todos os cortezãos de Fontainebleau, Dijon, Pariz e Melun. Vejamos como operou a feiticeira, e como se deixou captivar o indefenso portuguez.

Reinava em Portugal D. João III pelos annos de mil quinhentos e quarenta e tantos, quando em França o voluptuoso e inconstante Francisco I, aos pés da Duqueza d’Etampes, ou borboleteando entre as mimosas da côrte, esquecia a Rainha Leonor com quem casara, em virtude do contracto de Madrid de 1526, depois da batalha de Pavia.

La Reine Alianor, a irmã de Carlos V, fôra bella, quando na mocidade, as feições do seu retrato, devido ao pincel de Clouet, haviam perturbado de tal sorte a imaginação de El-Rei D. Manoel de Portugal, duas vezes viuvo, e quinquagenario, que, levado de paixão serodia, a roubou ao filho (depois D. João III) de quem estava noiva.

Agora, embora conservasse as linhas da sua belleza (belleza que, diga-se de passagem, um retrato existente em Hampton-Court não deixa suspeitar), começava a envelhecer e faltava-lhe o sufficiente prestigio para segurar o coração e dominar os sentidos do seu inquieto marido, o sybarita Valois, galanteador e artista.

Mas esse Rei, porque era cavalheiroso e magnanimo, rodeava a Rainha, embora imposta por Carlos V, o rival odiado, de uma côrte brilhante. E as damas que a serviam eram as mais illustres e mais formosas de França.

Á casa da Rainha Leonor pertenciam entre outras Madame de l’Estrange, Mademoiselle de Macy, Madame de Telligny, e, a mais que todas perturbante, Mademoiselle de Torcy.

Caçadas e justas, torneios e monterias succediam-se ora nos frescos bosques de Sonia «que agora chamam Dijon», ora na floresta de Fontainebleau, cujo palacio o Rei, seduzido pelas graças da Renascença e influenciado pela Duqueza d’Etampes adornava com as maravilhas de Jean Goujon.

Era deslumbrante a côrte que Francisco de Moraes ia encontrar em França, para onde partiu em 1540 como Secretario do Embaixador D. Francisco de Noronha. Tão grande era o poder de seducção de que este dispunha que, sendo o posto que ia occupar sobremaneira ingrato, pouco depois de alli estar tinha conquistado as boas graças do Rei, da Rainha, dos cortezãos, e tornara-se o mimalho da sociedade franceza.

Não era isso empreza facil se pensarmos que Francisco I tinha sobejos motivos de aggravo da nossa côrte, que bem penosos eram para o seu orgulho, pois sentia a politica portugueza toda inclinada a Castella. Carlos V o adversario feliz, casára com uma filha do El-Rei D. Manoel, a doce Imperatriz Isabel; e D. João III depois de rejeitar Carlota, a filha de Francisco I, casára com D. Catharina, irmã do Imperador…

Acertadamente procedia portanto o Rei de Portugal escolhendo, para o representar em Paris, o insinuante e intelligente fidalgo. Teve este durante a sua estada em França uma melindrosa missão. D. João III destinara sua filha D. Maria ao filho de Carlos V, Filippe, o futuro Diabo do meio dia.

Francisco I não podia olhar com boa avença este consorcio que mais ia engrandecer o detestado competidor. O Rei de Portugal, querendo evitar complicações, julgou preferivel não dar d’isto conhecimento ao monarcha francez. Nem mesmo chegou a consultal-o.

A noticia, porém, voou até Pariz, e foi sabida na Côrte, antes que D. Francisco de Noronha a farejasse. O Embaixador passou por isso um mau bocado.

A scena que o chronista Francisco de Andrade nos deixa adivinhar é caracteristica e pittoresca.

De uma vez que o representante portuguez foi ao Paço, onde tinha facil accesso e onde era recebido com «muyta festa e bom gasalhado» notou que a atmosphera aulica tinha arrefecido subitamente. «Viu no Paço tão notavel differença que até nos lacaios se enxergava muito claramente. Porque a gente franceza é a que mais se transforma ao gosto ou desgosto de El-Rei.»

Penetrou no emtanto até junto do soberano, que encontrou com sobrecenho, e de aspecto carregado. Pelas salas e antecamaras a frieza dos cortezãos annunciava-lhe borrasca. Não conhecendo a causa d’aquella novidade, o sobresalto não foi pequeno, sobretudo quando Francisco I, não podendo conter a colera que lhe invadira o animo, o levou para o vão de uma janella, onde, com palavras asperas, o increpou desabridamente. Queixava-se do procedimento do Rei de Portugal que, estando com elle em paz, fôra casar a filha com o herdeiro do seu maior inimigo, sem ao menos lhe dar as razões porque o fizera.

O Embaixador que nada sabia, e que carecia de instrucções para proceder, ficou engasgado. Mas não se desconcertou. Foi deixando explodir a sanha do irritado monarcha, emquanto reflectia na attitude que melhor convinha tomar.

Via no fundo da sala os cortezãos segredando, e adivinhava nas physionomias ironicas e sorridentes a satisfação com que alguns assistiam ao seu desfavor. Avaliando a gravidade da situação, logo que as queixas de Francisco I iam esmorecendo, pediu licença para responder. E com destreza se houve no seu arrazoado, jurando que ignorava tudo, mas que era sua convicção que o silencio de El-Rei de Portugal, longe de ser uma desconsideração, demonstrava o desejo de manter boa amizade… Enfeitou com tal arte esta these aliás difficil de defender, que Francisco I, ouvindo-o discretear «ficou n’isto tão satisfeito que com muito riso e festa levantou o Embaixador nos braços (porque era homem de muito grande corpo e de muitas forças), dizendo-lhe: Ah monsiour (sic) dom Francisco, dera Paris por um homem como vós.»

O gelo derreteu-se milagrosamente. E a fina flôr da gente palaciana, que de longe observava o extranho espectaculo, logo fez correr a noticia de bocca em bocca pelas camaras e recamaras, de modo que o valimento de D. Francisco ficou outra vez consolidado.

Quem era este Embaixador? Filho segundo do Conde de Linhares, por seu Pae descendia dos Villa Reaes e dos Braganças, sendo portanto proximo parente da Casa Real. Seu irmão primogenito, D. Ignacio, que na primeira mocidade fôra intelligente e valoroso, deixara-se dessoradamente arrastar a uma vida crapulosa de prazeres faceis. Attrahido pelos encantos equivocos de hetaïras de viella, sacrificava á Venus plebeia em orgias de baixa esphera, o que fez determinar sua mulher D. Isabel de Ataide, filha de Vasco da Gama, a recolher-se a um convento, desgostosa por ver o marido dominado e amollecido pelas comborças, que infestavam as betesgas da Alfama. Conscio da propria degradação, D. Ignacio, afim de mais livremente se entregar ás suas fugas para Cythera, pediu, ou foi pelo Rei induzido a pedir, a renuncia do titulo e da casa, em que succedeu o secundo-genito D. Francisco de Noronha que assim foi o 2.º Conde de Linhares.

Os Linhares, Noronhas, com excepção de D. Ignacio, eram gente dada ás cousas do espirito, e na sua casa prestou-se fervoroso culto ás lettras. Esse culto foi intensificado com o casamento de D. Francisco.

Sua mulher, Violante de Andrade, provinha de uma casa nobre tambem, e toda rica de tradicções litterarias. A essa familia pertenceu Diogo de Paiva de Andrade, o grande prégador; o heroico frade agostinho, Frei Thomé, auctor vernaculo dos «Trabalhos de Jesus», Francisco de Andrade, o chronista; sem contar que d’essa estirpe brotaram tambem os Ericeiras, tão nobres no patriciado das lettras como no do sangue, e no das armas. E de D. Violante e D. Francisco foi filho aquelle D. Antonio de Noronha, o amigo dilecto de Camões que, ao saber da morte do pobre moço, lhe dedicou o lindo soneto:

«Em flôr vos arrancou, de então crescida,

Ah! Senhor D. Antonio a dura sorte…

e que termina:

«Na memoria das gentes vivereis.»

Basta este verso para tornar immorredouro o nome de D. Antonio.

Entre aquelles que frequentavam a casa dos Linhares, todos notaveis por varias fórmas,—Fernão da Silva; Francisco de Moura, estribeiro mór do Senhor D. Duarte; João Lopes Leitão, o famoso pagem da lança, Caminha, o mesurado poeta, e Luiz de Camões, o turbulento amigo do moço D. Antonio,—encontrava-se frequentemente Francisco de Moraes, filho do Thesoureiro-mór do Reino.

As suas faculdades eram muito apreciadas e aproveitadas pelos Senhores d’aquella familia.

A elle por vezes recorriam, como se vê da petição dirigida a El-Rei por D. Ignacio, para que a seu irmão D. Francisco passasse o titulo e a casa.

Francisco de Moraes nascêra nos fins do século XV. Fôra na primeira mocidade, moço fidalgo da casa do Infante D. Duarte.

O cargo de seu pae e o seu proprio obrigaram-n’o a manejar cifras e algarismos.

Mas nem a tarefa da contabilidade lhe turvou a inspiração, nem o ambiente severo da Côrte lhe abafou as ebulições e effervescencias do coração.

Poeta, versejou em portuguez e castelhano. Cavalleiro e namorado, o mesmo é dizer—ardente de animo, terno de coração—foram varias as crises amorosas que atravessou, como elle proprio confessa. Não deixaram, porém, esses passageiros enternecimentos outro vestigio que não fosse a ingenua confidencia  (ou auto-biographia amorosa) que nos faz pela bocca do seu heroe Florendo do Deserto, ajoelhado aos pés da Torcy.

Pelas suas occupações, que lhe davam facil accesso na intimidade dos soberanos, e pela sua acceitação em casa dos Linhares, estava naturalmente indicado para Secretario da Embaixada de D. Francisco, que partiu para Pariz no anno de 1540.

Cumpre aqui n’um ligeiro parenthesis desfazer a impressão, que porventura tenham deixado no animo de algum leitor desprevenido, os periodos em que Odorico Mendes, o escriptor maranhense, que denodadamente defendeu a origem portugueza da novella, dá a entender que Francisco de Moraes foi na embaixada como mentor ou guia de Dom Francisco de Noronha. O Embaixador ficaria assim com um papel de simples representação, sem nada emprehender senão com a ajuda do intelligente Secretario.

Odorico Mendes, o douto Brasileiro, deixou-se arrastar pelas suas tendencias cegamente democraticas, quando escreve o seguinte: «Era costume, o de nomear-se um figurão para o posto superior, e alguem de boa cabeça para segundo.»

Deve notar-se que o figurão era um espirito cultivado, que logo de entrada conquistou as boas graças e resolveu negocios importantes, como é sabido.

E Francisco de Moraes, quando chegou a Pariz, nem mesmo a lingua franceza entendia, como elle proprio confessou na Desculpa de uns amores…

Nada prova isso em seu desabono, mas desfaz a atoarda que alcunha de inepto espaventoso o Embaixador, que tão habil se mostrou no desempenho da sua missão.

Um e outro eram dotados de engenho. Um e outro possuiam qualidades para se fazerem apreciar.

E o valimento do Embaixador facultou a Francisco de Moraes, o Secretario, facil acolhimento nos circulos palacianos. Valendo-se d’isto, e porque era conhecedor do coração humano, este soube habilmente explorar o affecto maternal da Rainha Leonor fallando-lhe na filha que ficára em Lisboa, e evocando com tacto e arte subtil os tempos em que moça, adorada e feliz, quando casada com El-Rei D. Manoel, ella era a soberana radiôsa na Côrte de maior explendor da Europa.

A Rainha agora ia já entrando na edade mofina.

Desapparecêra a frescura da mocidade; o marido voluvel cultivava descuidadamente os alfobres em que floresciam as suas damas de honor; o irmão implacavel continuava a guerra; e, lá longe, sobre o Tejo, a filha, a Infanta D. Maria, unico arpão que devéras a prendia á vida, aboborava n’um quasi sequestro em que D. João III a conservava por não lhe convir que a Irmã sahisse de Portugal.

Francisco de Moraes facilmente encontrou o caminho d’aquella alma desterrada, d’aquelle coração maternal ulcerado, d’aquelle orgulho de soberana dolorida. Fallava-lhe em castelhano. Perfumava-lhe a imaginação de recordações, e o coração de consolos.

Descrevia-lhe a filha, a Infanta, então em todo o esplendor da sua altiva belleza loura, requestada por Soberanos e por Principes; narrava-lhe a existencia austera, mas de requintado lustre que ella levava nos Paços da Alcaçova Velha e nos de Santa Clara, onde a esse tempo já se reunia uma Academia douta e elegante.

A estes colloquios do Secretario portuguez assistiam ás vezes as damas da Reine Alianor, que eram para elle um motivo de constante curiosidade e lhe davam a impressão de fructos exoticos de desconhecido, mas appetecivel sabor.

Com os seus cincoenta annos ainda florescentes olhava attento aquelle feminino batalhão volante, que frequentemente tinha ensejo de observar.

É elle proprio quem o conta n’uma carta dirigida ao Conde de Linhares, D. Antonio, pae do Embaixador, datada de Melun, em 10 de Dezembro de 1541.

São d’essa carta os seguintes periodos que transcrevemos, conservando-lhes a redacção original para não tirar o sabor á descripção do jogo da pella (partida de lawn-tennis ou foot-ball), a que assistiu nos jardins de Fontainebleau:

«Antontem, que foram oito d’este mez, se partio el-rey de Fontenableo, e foy dormir a hua vila d’aly tres leguas, que chama Valença, e nam levou as damas comsigo que he maior milagre… No mesmo dia depois del-rey partido, se sairam ao campo a Delfyna, madama Marguaryta filha del-rey, madama de Etampes, a duqueza de Monpensé, que he nova e das famosas d’esta terra, sobrinha del-rey, filha de hua sua irmãa, e tambem dizem que avó, por sobeja amizade que tem com Monsior d’Orlyens. Na verdade cousas d’esta calydade sam quaa tam desacostumadas que se non deve de crer; sairam mais Mamsy, que é a mimosa del-rey, e madama de Latranja e outras da mesma banda, e metidas em hum cerco de cordas grandes que mandaram fazer repartidas em deus bandos, em vasquinhas de tafetaa curtas e manguas de camisa, porque os dias n’este tempo sam quaa quentes, jugaram a péla huas contra outras, e duas ou tres por muito destras davam d’arras juguar sempre co pee; pode vossa senhoria crer que aas vezes tomavam o voléo mais alto do que era necessario pera lhe ficarem cubertos os artelhos, e ainda que se fiassem nas calças que chegavam tee o gyolho, tambem afirmo a vossa senhoria que tinham ruim fiador. Eu me achey presente a esta festa, que aquele dia por mandado do senhor D. Francisco fuy a Fontenableo a negocio, crendo que el-rey e a corte estavam ali e sey que quaa pareceo muy bem e tambem sei que em nossa terra nam parecera asy. E pera que os brincos tivessem mais graça acercando-se da banda de fóra do cerco hum padre theologo da ordem de Sam Domingos que agora prega todo o avento á Raynha, e não sey se de muyto servidor se de namorado começou servyr de fóra do cerco as pélas que vinham perdidas de dentro. No principio ainda parecia que ho fazia com menos despejo, mas como a cousa começou a andar, deu cõ abyto no campo, e se o jogo durara muyto, parece-me que assy como se despejou do abyto de cima, se despira de todo para ficar mays desenvolto. Afirmo a vossa senhoria que foy um dos mays destros juguadores de péla que nunca vy. Acabado de perder huma das partes aquelas princezas e senhoras se foram daly tee o paço, que seria doze tiros de bésta juguando o aleo e saltando huas por cima das outras; tambem aqui avya aas vezes saltar mal e cayr cos focinhos pera baixo, mas ynda que as novas sejam pera o senhor Marquez, como a carta é pera vossa senhoria, não posso dizer tudo, senam que o padre pera nam ver desonestydades remetya as que cahiam e cobertas cõ manto as ajudava a levantar; duas cousas lhe vy em extremo mavyoso e ligeiro o que eu nam cuydey que avia n’eles, que de conversaveis já he manqueira veelha que lhe ha-de durar tee morte.

Aa noute coatro ou cinquo d’estas senhoras em que entrou Tampes, Latranja, Mansy, madama de Monpensé, e despidas em calças e camisa com frauta e tamboril vyeram em mascara a casa da raynha onde contrafizeram volteadores e sempre muito mal; soo o pino acertou de ter graça n’ele madama de Mansy. A raynha parece que nam lhe pareceu tam bem a festa e porque nam ousou dizel-o mandou despejal a casa porque não podesse ser vista de muytos…»

Esta narrativa tão cheia de vida é feita com uma segurança de processos, que revela a penna habil de um romancista, o lapis de um humorista, e a ironia de um observador de costumes.

O observador, porém (pobre d’elle!) era homem, era um meridional impressionavel, era um portuguez de coração sensivel.

A atmosphera da côrte embriagava-o. A desenvoltura das ageis jogadoras de pella espicaçava-lhe os sentidos. As serenadas com frauta e tamboril boliam-lhe como cocegas na epiderme. E as vasquinhas curtas de tafetá, que não encobriam tudo, davam-lhe volta ao juizo.

Com o seu antiquado pelote de brocado á usança portugueza, tão querido de D. João III, e que tanto destoava das modas francezas, que os amaneirados e dengosos Valois iam introduzindo, sentia-se quasi um anachronismo, desageitado e levemente rustico, entre os requintes das provocantes bellezas das mimosas d’El-Rei.

Essas que elle encontrava na camara da Rainha Leonor, quando era recebido pela virtuosa senhora, interessavam-n’o por motivos varios.

Alli via por vezes a Princeza Margarida filha do Rei e futura Duqueza de Saboya—a mãe do povo—casta e séria no meio da côrte frivola e licenciosa. É esta que Francisco de Moraes, no seu romance, faz figurar com o nome de Gratiamar (filha do rei Arnedos) dôce anagrama de Margarita, da qual Brantôme dizia: «elle eut le coeur grand et haut».

Alli encontrava tambem aquella a que chama a Delfyna, nem mais nem menos que Catharina de Medicis, a esse tempo já casada com o futuro Henrique II.

Conheceu tambem a Duqueza de Montpensier, «que é nova e das famosas d’esta terra».

N’esta palavra famosa ha reticencias, e intenções de interpretação que ficam á responsabilidade de Moraes, bem como no parentesco que lhe attribue, e com o qual deixa transparecer alguns dos maliciosos ruge-ruges, que apodavam como sobeja a amizade d’esta Princeza com o Duque d’Orléans.

Outras muitas attrahiam os olhares do cortezão portuguez, avido de sensações novas, e attrahido pelo espectaculo deslumbrante d’essa sociedade, onde brilhavam como lantejoulas todos os vicios, todas as graças e todas as qualidades da Renascença.

Quatro d’ellas, porém, lhe prenderam os sentidos. E uma os sentidos e o coração.

As trez primeiras apparecem-nos recentemente identificadas com mais ou menos felicidade e segurança pelo escriptor inglez a que já alludimos. Mansi—Telensi—e Latranja, que figuram no romance, parece serem a representação phonetica de nomes de senhoras francezas, que a pronuncia de um portuguez fazia soar assim.

Mansi, portanto, seria Mademoiselle Macy, depois Madame de Pont de la Haute de Magdelaine, que n’um banquete d’esse anno (1541) figurou á esquerda de Francisco I. com Diana de Poitiers, a Duquesa d’Etampes e a Condessa de Vertus. Era «amada e servida por El-Rei, com o que se ennobrecia muito».

Telensi devia ser aquella «gracieuse Damoyselle de Teligny», de que falla Billon, referindo-se á elegancia agradavel da sua distincta personalidade.

E Latranja é, sem duvida, Mademoiselle de l’Estrange, que fôra amante do Delphim Francisco, (fallecido havia poucos annos) e a quem um poeta aulico chamou n’um epigramma lisongeiro «face d’ange».

Uma, porém, enfeitiçou completamente o nosso Moraes: Claudia Blosset, dame de Torcy; a coquette Torsi «de grão valor»; Torsy a dama da Rainha, a quem Brantôme nas Dames galantes se refere significativamente, dizendo «J’ay ouy conter à Madame Fontaine Chalandry dite la belle Torcy…» Foi a ella tambem que Clement Marot, o poeta da côrte, n’uma das suas saborosas, picantes e espirituosas estrennes, disse:

«Damoyselle de Torcy,

Cest an cy

Telle estrenne vous desire,

Qu’un bon coup vous puissiez dire

Grand mercy.»

De nobre estirpe, pois que descendia da grande familia normanda dos Estouville, figura na Historia genealogica da Casa Real de França, do P.ᵉ Anselme, como filha de Jean de Blosset, Senhor de Torcy.

A nobreza de sangue dava-lhe um ar altivo, arrogante, encaprichado e desdenhoso, que quadrava bem com a sua elevada estatura. Tão alta e tão acima das outras que, quando Francisco I distribuira em 1538 velludo e setim, para que cada uma das damas da Rainha e da Princeza Margarida, fizesse dous vestidos, emquanto vinte e uma d’ellas recebiam apenas  dez váras dos preciosos estofos, a Mademoiselle de Torcy foram dadas nada menos de onze.

«Gram soberba (diz Moraes), acompanhava aquellas senhoras e a da Senhora Torsi maior que todas. De mais confiada ou mais cruel todo seu fundamento era na confiança do seu parecer e fermosura: e como de nenhuma outra cousa se quizesse ajudar, suas mostras eram acompanhadas de desdem isenção, e altiveza; e sobre isto esquecida de todos os serviços e vontade, com que lh’os faziam.»

Por estas palavras e por todas que accodem á penna de Moraes, sempre que falla, ficticiamente no romance, de Torsi a dama da Rainha Melicia, ou que se refere, na realidade, a Torsi «gram pessoa», na Desculpa de uns amores… sente-se quanto a soberba creatura o deslumbrava, e que tormentos lhe causou.

A perigosa rapariga manejava com artificio subtil a arma cruel da indifferença affectada, o que, por um phenomeno vulgar em casos de paixão morbida, excitava o temperamento naturalmente arrebatado do fogoso lusitano. «O repouso de Torsi, juntamente com o pouco caso que fez de ver que a olhavam, fizeram n’elles maior massa que nenhum dos outros.» São d’elle (no romance) estas palavras indicadoras do gráo elevado a que ascendera o seu thermometro amoroso.

Ao encanto que o avassallava juntava-se, ainda para o vencer, o cicate inquietador do ciume, farpão de amor, que ella, com a natural perversidade dos animaes felinos, explorava para seu divertimento, dispensando a outros, favores que a elle negava.

De uma vez que a Côrte se dirigia, para assistir ás Vesperas, atravez da galeria de Diana, para a sumptuosa Capella da Trinité, o Embaixador de Inglaterra que, como tantos outros, andava preso das graças da formosa Torcy, e lhe prodigalizava as suas assiduidades, offereceu-lhe o braço. E, conduzindo-a, poz n’isso tanta significação de galanteio que o pobre Moraes sentia estalar o coração vendo-os passar sorridentes e felizes.

De outra vez, entrando n’um aposento, surprehendeu o Duque de Chatillon (Monsieur de Xatillon, diz elle), «gentil homem de edade juvenil, lançado no regaço» da leviana Torcy.

Quando estes casos se davam o romanesco Francisco de Moraes, dilacerado, com o cerebro em ebulição e os nervos vibrantes, corria a encerrar-se no quarto e fazia versos. Atirava ao papel, sempre docil e fiel confidente de poetas, a expressão do seu tormento.

As novellas de cavallaria tinham grande acceitação na Europa inteira. Liam-n’as com interesse não só as mulheres frivolas ou sentimentaes mas tambem espiritos sérios, almas voltadas para os horizontes da graça celestial ou da politica dos homens, que tiravam prazer de tal leitura. Santo Ignacio, Santa Thereza, Diogo Furtado de Mendonça, o proprio Imperador Carlos V, eram leitores apaixonados d’essas maravilhosas bugigangas.

Francisco I fôra educado quasi exclusivamente com a leitura de romances de cavallaria andante. Sire de Boissy dera-lhe a beber desde creança um leite capitoso, com a licção dos Amadis e quejandos, que geravam muita acção heroica e muita exaltação amorosa. A alma do complicado Valois, assim formada, encaminhou-o na vida, que para elle foi um verdadeiro romance de aventuras.

O Secretario da Embaixada portugueza, cuja phantasia era povoada tambem pelos heroes das fabulas cavalleirosas, e pelas aventuras romanescas, encontrou-se assim n’um ambiente propicio á expansão da sua actividade sentimental. Imaginou então fabricar elle proprio façanhas, descrever acções heroicas, exaltar rasgos amorosos… Emprehendeu escrever o Palmeirim de Inglaterra.

Levava-o já adeantado quando o fulminou a paixão pela formosa dama da Rainha Leonor. N’essa altura introduziu na traça do romance o episodio das quatro Senhoras. Como vingança? Como desabafo? Como homenagem? É difficil sondar á distancia de mais de trez seculos a alma do namorado poeta, e procurar nos escaninhos mais fundos do seu ser os sentimentos que dictavam os periodos em que faz figurar a bella desdenhosa. Entretanto esses dez capitulos cotejados com o escripto intitulado Desculpa de uns amores… são um valioso auxilio para o conhecimento da psychologia do auctor, e uma prova de ter sido por elle escripta primitivamente essa obra, cuja paternidade os Hespanhoes reclamaram.

Mas não é nosso intento agora entrar na controversia.

Voltemos aos quartos da Rainha Leonor, onde Francisco de Moraes encontrava a linda Torcy, seu enlevo e seu tormento.

Surprehendeu-o esse furacão quando já se julgava ao abrigo de paixões. Elle proprio o diz: «Não sei que isto foi que em idade já desviada de pensamentos ociosos cobrei um cuidado novo… Não cuidava que em tal idade amor tivesse poder, agora sei que a nenhuma não perdôa.»

Não lhe soffreu o animo callar-se. Declarou-se, ora com os olhos, á portugueza, naquella linguagem que toda a mulher entende; ora com palavras que ella não percebia, manifestando a sua paixão e esperando que fosse acceita benevolamente, ou pelo menos que lhe désse um doce engano.

«Não quiz mais enfadal-a (confessa elle) com razões, pois eram ditas em vão. Affirmei os olhos nella guiados do coração e d’alma, porque já desesperado de outro remedio aquelle me dava a vida, e chegado a casa fiz um vilancete ao mesmo proposito, e em castelhano, porque me pareceo que aquella linguagem lhe seria mais leve de entender:

«Ya que yo no se hablaros

Pongo los ojos em vos…»

Mas, depois arrependendo-se, compoz outro vilancete em portuguez, «que hei que faço injuria á minha natureza querer bem como portuguez e escrevel-o em castelhano». E dizia-lhe:

«Para se poder passar

O grande mal, quando vem

Ha-se de fiar de alguem…»

Elle confiava-o ao papel, e fazia versos. Torcy não os entendia. E que entendesse?! A maliciosa e frivola pariziense, toda entregue ás futilidades da sua vida de prazer, de festas e de dissipação mundana, era forçosamente avessa áquella furia amorosa, e toda se arripiava com as impulsivas demonstrações sentimentaes do impetuoso Portuguez.

Deixou perceber o enfado que lhe causavam.

Elle então lançou mão de um expediente que poderá surprehender o leitor de hoje. Mas se recordarmos os livros de cavallaria andante, e até mesmo o D. Quixote, tão ingenuamente desastrado em muitos lances amorosos, não estranharemos ver Francisco de Moraes cahir de joelhos aos pés da bella Torcy em plena sala da Rainha de França…

A mais genuina expressão da Cavallaria é o culto da Mulher.

Pela sua Dama combatiam os cavalleiros. Usavam d’ella as côres e as emprezas, punham nos escudos as iniciaes dos seus nomes, morriam contentes na liça sob o seu olhar, ou corriam mundos em cata de occasiões para a defender. O culto enternecido que a Cavallaria medieval prestou á Virgem Maria tinha por motivo ser Ella a Mulher entre as Mulheres.

Á ideia de Cavallaria ligavam-se todos os sentimentos nobres, levantados, intransigentes em pontos de honra, incondicionalmente submissos ao predominio da Mulher.

E Francisco de Moraes, que viveu o seu Palmeirim e na sua vida é retintamente cavalleiro, e impenitentemente namorado, não hesita nem recúa perante o que hoje achariamos ridiculo. Ajoelha-se deante da mulher que o captivou, e desabafa enternecidamente.

«Na camara da Rainha, á vista d’ella e de suas damas, ajoelhado em terra, comecei com palavras mui compostas trovadas do acatamento de sua pessoa e presença antes de confessar a culpa a pedir perdão d’ella. Não sei se de ufana de si mesma, se do lugar onde estava, se enfadada de me não entender me disse que não era contente que a amasse tanto, mandando-me que o não fizesse d’alli por diante.»

A romanesca alma de Francisco de Moraes defrontava-se assim com a gelida ironia de uma coquette de raça, apenas occupada na adoração da sua pessoa.

N’uma tal ou qual ingenuidade nativa, no seu idealismo poetico e apaixonado, o enternecido portuguez é um verdadeiro precursor de D. Quixote.

E, guardadas as devidas proporções, a bella Torcy, insensivel ao calor das inflammadas palavras de Moraes, lembra, não sei por que, a Dulcinéa, assediada com as declarações do heróe manchego.

Uma na Côrte requintada de Francisco I impertinente e zombeteira, a outra boçal, rustica, asselvajada na sua aldêa de Toboso, são ambas o typo do eterno feminino divinizando-se e esquivando-se ás adorações dos seus devotos, e são um exemplo do fundamental contraste entre a poetica phantasia dos apaixonados e a prosaica indifferença das naturezas imperturbaveis e frias.

Para a Torcy zombeteira e artificiosamente esquiva, o poeta portuguez alli ajoelhado era apenas um joguete, um motivo de galhofa, era mais uma pella do torneio com as companheiras que assistiam á scena entre frouxos de riso. Obrigou-o a repetir as queixas e desculpas amorosas em portuguez e castelhano, e, triumphante conquistadora, orgulhosa voltava-se para as outras escarninhas, commentando com malicia com as contorsões da sua victima. Elle, então, escreve no seu caderno:

«Estas palavras me entendeo mal, mas parece que lhe soaram bem (ingenua illusão!) que me mandou duas ou tres vezes que lh’as tornasse a dizer, e porque no portuguez mas entendia peior, quis que as dissesse em castelhano, e virando o rosto para uma dama que estava da outra parte, me deixou, e praticou com ella, parece-me a mim que á minha custa…»

Esta confissão tão sincera não acarreta sobre o pobre apaixonado nem uma leve sombra de ridiculo, como podia suppor-se, imaginando o amorudo quinquagenario, de joelhos, na roda das raparigas, maliciosas, desfructadoras, trocando umas com as outras sorrisos zombeteiros, emquanto escutavam a aravia, para ellas inintelligivel, do romantico declamador.

Pensando que a victima é uma das mais lidimas glorias da litteratura quinhentista, um escriptor de grande engenho, que a paixão trazia tresloucado, perdido, caminhando n’um sonho, aquillo que a leitura do episodio nos inspira é uma irresistivel sympathia pelo auctor do Palmeirim de Inglaterra, e uma inevitavel malquerença contra as levianas encarnicadeiras que assim manteavam o poeta, com a mesma desenvoltura com que os moços da venda hespanhola, se divertiam fazendo saltar Sancho Pança sobre o cobertor.

Não deixou Francisco de Moraes de se sentir, e attribuindo grande parte do seu desfavor a enredos fomentados pela inveja de alguns dos cortezãos francezes, dá largas na sua narrativa ao rancor que lhes dedica, pintando-os constantemente vencidos.

Uma vez é Brecião de Rocafort (Rochefort) que soffre um revez e «fica corrido de fazer tão pouco»; outra vez é Rober Roselim (Ruper) que cahe no chão, abrindo-se-lhe as feridas e soltando-se-lhe as veias; ainda outra vez é o Conde de Brialto (Brialte) levando um braço quebrado, ou o Conde Gisar tirado do campo quasi sem vida.

E sempre os Francezes são apresentados com inferioridade.

Este desforço havia de trazer ao romancista amoroso, e despeitado, consequencias nefastas, como vamos ver.

Entretanto, ia elle terminando o seu admiravel romance.

Leria alguns dos capitulos do seu livro á Rainha Leonor?

É possivel. E não custa a crêr que ella transmitisse a expressão do seu agrado á filha, a Infanta D. Maria, que em Lisboa era o fulcro brilhante da culta Academia.

A esta Princeza deu certamente Francisco de Moraes conhecimento directo dos seus trabalhos. E não só isso, mas até lhe dedicou a novella, quando ella era noiva do Duque de Orléans.

Na douta biographia d’esta Princeza, traça D. Carolina Michaëlis um formoso quadro phantaziando a impressão que a leitura do Palmeirim causaria no cenaculo feminino, composto pelas damas e donzellas da intelligente filha de El-Rei D. Manoel.

«Durante semanas (escreve a erudita academica), as aventuras tanto do fidalgo e poeta namorado, que havia sustentado lá fóra a fama do typo nacional, como os feitos de D. Duardos e D. Florendos, e a esquivez de Miraguarda alimentavam decerto a imaginação do cenaculo. Reunidas na bibliotheca ou na sala de lavor, emquanto a Infanta e as suas damas bordavam custosos paramentos, dando côr e vida ás linhas traçadas por Francisco de Hollanda, as latinas Luiza e Joanna e as musicas Angela e Paula revezavam-se na leitura do Palmeirim. Acabado um capitulo, começava a discussão das bellezas litterarias».

Este romance acabara-o em Pariz, o imaginario poeta e ao passo que ia remoendo a paixão pela endiabrada franceza.

Os ultimos mezes passados em França foi-os arrastando, ora no palacio do Embaixador, ajudando D. Francisco de Noronha no seu labor diplomatico, ora na Camara da Rainha, cujo coração, magoado pelas infidelidades do Rei, se condoía com os tormentos do infortunado Secretario, ora nas galerias de Fontainebleau, onde via passar ás vezes Francisco I, já a esse tempo comballido pelos effeitos da mysteriosa vingança do marido da bella Ferronière.

Junto da Rainha, que delicadamente sabia lastimal-o, sentia Francisco de Moraes o conforto nascido na piedade tão feminilmente consoladora. Do Rei recebia provas de consideração, pois o intelligente monarcha sabia quanto o Palmeirim era notavel. Nos cortezãos, que frequentavam o Palacio, advinhava, sob a contrafeita deferencia, um sentimento mesclado de emulação e de imperceptivel motejo, que as suas infelicidades sentimentaes porventura provocavam.

Quando terminou a Embaixada e o Secretario encofrou nas arcas das bagagens os gibões de velludo, as gargantilhas de renda, que ostentava na côrte, os papeis do Estado, os manuscriptos da sua novella, e, de mistura, as illusões que lhe haviam enfeitado o espirito, experimentou certamente um allivio.

Recordando amarguras e displicencias passadas, e o desprazer de ter vegetado com tão ingrata sorte na atmosphera artificial d’aquella estufa parisiense, bem diversa da distante e saudosa Lísboa, appellava no seu animo para a recepção que lhe estaria reservada na patria.

E não o trahiu essa esperança.

Quando chegou a Portugal já o seu romance tinha corrido de mão em mão, inflamando todas as imaginações femininas e exaltando os animos cavalleirosos.

O proprio Rei D. João III, embora n’essa quadra andasse dorido ainda com a morte de seu filho natural D. Duarte, pelo qual em signal de lucto, tomou um capuz (tão ostensiva foi a sua mágua!…), pelote e carapuça de arbim cardado, não deixou de attender á belleza da obra e aos meritos litterarios do seu engenhoso auctor. Concedeu-lhe logo, bem como a seus descendentes a graça de usarem o appellido de Moraes Palmeirim.

É sem duvida o mais lindo titulo a que um homem de lettras póde aspirar:—usar o nome da sua obra-prima!

Sentiu então a gloria bafejal-o com meiguice, compensando-o de antigos dissabores. E o acolhimento que recebeu da Infanta D. Maria, a quem dedicou a obra, foi dos melhores balsamos para cicatrizar antigas feridas no seu orgulho.

Escutava-o quando elle lhe fallava da mãe, e lhe referia os casos da Côrte franceza. Animou-o, louvou-lhe a novella… Que efficaz unguento é o applauso para alguns espiritos!

O lisonjeiro ambiente, que lhe acariciou o amor-proprio, foi sarando as chagas do amor-paixão.

Esqueceu a Torcy, e nem talvez tomasse cuidado quando em França pelos annos de 1553 ella casou com Luiz de Montberon, Senhor de Fontaines Chalendray.

Entretanto os annos iam correndo e as phantasias do coração assentavam pouco a pouco, como poeira no fundo de frasco tranquillo. Então Francisco de Moraes pensou em casar tambem, como aposentação sentimental.

Não mencionam as biographias os dotes physicos ou as qualidades d’aquella que o acompanhou no outomno da vida.

Formosa? Intelligente? Bondosa?

Ignoramol-o.

Mas Barbara Madeira, sua mulher, (não sei porque este nome indica uma matrona virtuosa e fecunda) deu-lhe effectivamente numerosa descendencia, d’onde proveiu gente illustre, entre a qual o talentoso Padre Balthazar Telles, da Companhia de Jesus.

As honras tambem o aureolaram. Foi commendador da Ordem de Christo. Teve um cargo no Paço. Era universalmente considerado.

Quando já passava bastante dos 70, indo uma vez, a entrar, já de noite, no rocio de Evora, cahiu varado pelo golpe de um punhal, que mysterioso embuçado lhe vibrou.

Quem seria? Que motivo haveria para assassinar o velho e glorioso novellista?

Alguns escriptores attribuem esta morte a manejos da Inquisição. Mas o terrivel tribunal, se quizesse castigal-o, tinha outros meios ao seu dispôr:—os carceres—os tormentos—os autos de fé.

Attribuiram tambem alguns o crime á sanha dos Jesuitas. Foi moda durante certo tempo, entre historiadores e homens de lettras, imputar todos os attentados praticados na sombra, ás forças occultas da famosa Companhia.

A verdade, porém, é que não se acham motivos para que os Jesuitas lucrassem em supprimir o escriptor.

Outros, porém, e talvez com o faro mais apurado, querem imputar a morte do auctor do Palmeirim de Inglaterra a algum d’aquelles cavalleiros francezes, que tinham sido maltratados no romance.

Levara muitos annos a vingança em fermentação.

Mas n’aquella epocha os livros circulavam morosamente, e os despeitos e os odios conservavam durante muito tempo a força do rancor. Se a suspeita é certa, como parece, Francisco de Moraes teria morrido victima do seu coração que muito tinha amado a formosa Torcy, e victima do proprio talento, com que tão certeiramente alvejou os rivaes, que o tinham supplantado!