SUMMARIO

Os dois filhos de D. João II—Idyllio do Principe D. Affonso—O bastardo D. Jorge—A posse dos mestrados—Projectos de seu Pae—Morte de D. João II—Viagem de El-Rei D. Manoel a Castella—A Perigosa—Enxame de poetas, e adoradores. Casamento do Senhor Dom Jorge—O drama de D. Guiomar, filha do Conde de Marialva—Viuvez de D. Jorge—Paixão senil—D. Maria Manoel.

Encontrámos já por vezes, no decurso d’estas palestras, ou seja nas Donas de tempos idos ou na Gente d’Algo, a figura curiosa, embora apagada, do Senhor D. Jorge, Duque de Coimbra, Mestre de Santiago e de Aviz, nascido do idyllio de D. João II com D. Anna de Mendoça, nos bosques de Sernache do Bomjardim.

Mas, se o leitor sentir o inexplicavel antojo de acompanhar-nos em mais esta jornada, recordaremos juntos algumas occorrencias, e a aventura amorosa d’esse personagem, que esteve para ser Rei de Portugal, pelo desapparecimento do filho legitimo, o Principe D. Affonso, quando este, no areal de Almeirim, depois de arrastado pelo cavallo, se deixou morrer entre a noivazinha que a politica lhe dera, e a Rainha D. Leonor, sua mãe, que com esse filho via sumir-se a maior affeição que lhe tomava a alma.

D. Affonso e D. Jorge—os dois filhos do Principe Perfeito—tiveram destinos oppostos na esphera sentimental.

Ao passo que o herdeiro, condemnado por mofina parca a uma morte prematura, esboça precocemente com uma D. Branca o ephemero romance de amor, que teve a passageira duração de um sorriso e de uma lagrima, o Senhor D. Jorge só foi arpoado pela grande paixão da sua vida quando ia no declinar.

Segundo suppõe, e com bons fundamentos, o Sr. Anselmo Braancamp Freire, no seu livro «Critica e Historia», aquella Dona Branca, por quem se sentiu preso o primogenito de D. João II, era filha de Vasco Fernandes Coutinho, e portanto sobrinha do Conde de Marialva.

Captivou ella o coração do moço Principe, a ponto de ficar esse pequeno episodio amoroso celebrado nos versos do Prior de Santa Cruz, de D. João, camareiro-mór, de Pedr’Ome, de Nuno Pereira, e d’outros poetas aulicos, que em trovas dolentes o consagraram.

O «Cancioneiro Geral», de Garcia de Resende, deixa adivinhar a tristura dos dous namorados nas cantigas que têm como rubrica: «… pelo principe D. Affonso, quando casou D. Branca, com quem elle andava d’amores».

Começam assim:

«Lloran mys ojos

y my coraçon

Y con mucha razon.»

«Lloran my pena,

my mal non fengydo,

my dicha no buena,

tan lexos d’olvido

Morio my sentido

de biva passyon

con mucha razon.»

Depois Nuno Pereira accode, dizendo sobre o mesmo assumpto:

«Lloran dos vidas

con grande agonya,

la vuestra y la mya,

por seren partidas.»

Sente-se que houve uma mão de ferro a desunir os dous amantes, pois lá o diz Dom Martinho da Silveira nas trovas que fez «quando casou dona Branca Coutinho»:

«e pois vemos não poderdes

resistir ás opressões

com que casastes,

dó na côrte pelo serdes

tomaram mil corações,

que vós quebrastes.»

Entre esses mil corações enternecidos contava-se o do Principe D. Affonso que, segundo o pintam as chronicas era «muito cheio de branduras e prezava-se muito da sua gentileza.»

A rapariga, como era natural, tambem prezava a gentileza d’esse ephebo real que:

«Por sua gran formusura

foi no mundo nomeado

angelica creatura.»

e que «se vestia sempre de tabardos com martas ao pescoço forradas de setim e guarnecidas de ouro.»

Ora os requebros do Principe D. Affonso e de D. Branca desagradavam de certo ao aspero D. João II, a quem não convinha nem uma ligação clandestina, da qual podia provir um rebento indesejavel, nem um casamento que lhe desmancharia o taboleiro politico. Agastava-se com a indole branda e macia do filho, «mais inclinado ás cousas d’El-Rei D. Affonso V, seu avô, que ás suas.»

Censurava-o muitas vezes por tentar transgredir a ordenança que prohibia sedas e brocados, chaparias e canotilhos, e increpava-o por não trazer capas abertas nem espada. Vendo-o preferir a companhia de homens delicados á dos rudes homens d’armas, reprehendia-o e amoestava-o com mau modo. Mas… não podia tirar-lhe o seu natural.

A antithese entre os dous caracteres era tão profunda como fôra entre a de seu pae cavalheiroso, idealista, sonhador, e a sua de homem de Estado, intransigente, frio e positivo.

Agora á antinomia dos animos juntava-se a dos corações! O Principe D. Affonso era um amoroso, D. João II um politico.

Aquelle deixára-se enfeitiçar pela rapariguinha namoradeira que era o «Ai Jesus» da roda cortezã. Este sentia o perigo das frioleiras sentimentaes. E, com a implacavel decisão com que sempre resolvia os negocios de Estado, determinára desunir os dous pombos arrulhadores.

Assim, a encantadora sobrinha do Conde de Marialva, a seductora Branca dos Porquês de Setubal, a Coutinha dos Serões do Paço, onde as palavras coutinhas eram equivalentes de galanteio, foi levada a casar com Jorge de Mello por alcunha o Lageo, capitão, e anadel-mór de besteiros.

O Principe, esse, pouco depois, e ainda todo enleiado nas recordações do seu entretenimento amoroso, estava destinado a cumprir o estipulado por seu pae com os Reis Catholicos, Fernando e Izabel, consorciando-se com a Infanta sua prima filha d’estes.

Tinham os dous passado parte da infancia juntos, em Moura, quando foi das terçarias, á guarda da Infanta D. Beatriz.

Conheciam-se. Estimavam-se. Attrahia-os mesmo uma reciproca sympathia. E como ao tempo que a Infanta veiu de Castella, já D. Branca tinha sido afastada da Côrte, havia mezes, com o seu Lageo, a primeira entrevista começava a ser appetecida pelo Principe.

Ao encontro da noiva vieram a Extremoz o Pae e o Filho, incognitos, trazidos pela curiosidade.

O Rei desejando saber se a promettida Nóra que vinha de Castella teria as qualidades que as suas ambições requeriam. O Principe avaliar as mudanças que o tempo, esse grande esculptor, operára na esthetica e na plastica d’aquella creaturinha que, havia dous annos, elle deixára franzina, pallida, esmaiada, nas fraguras da insalubre villa alemtejana.

Apparecia-lhe ella agora n’um scenario de sonho, entre as suas nove Damas, cardeaes, nobreza de Castella, numerosos cavalleiros, ao som de musicas festivas, entre bandeiras das suas cores e armas, que no alto das torres e muros tremulavam, e acompanhada por folias de homens e moças que, nas ruas armadas de tapeçarias, bailavam sobre os ramos de espadanas. E vinha tão linda, que o proprio Duque de Beja (o futuro Rei D. Manoel) que a fôra esperar, sentira subitamente a faísca, que havia de incendiar-lhe no animo a paixão pela noiva de seu Primo.

Este chegára a Extremoz com o seu Pae., ambos «vestidos de caminho». Dirigiram-se logo para a casa junto do Castello onde habitava a Princeza, que n’esse momento jantava com a sua comitiva, e que tão alvoroçada ficou que, interrompendo o banquete, veiu ao topo da escada esperal-os, e alli ajoelhou commovida.

O Rei fez-lhe um discurso. O Principe, porém, ficou calado, suspenso, encantado com a transformação. E é de crêr que n’essa hora se desvanecesse por completo na sua memoria a imagem de D. Branca, que a esse tempo déra já descendencia ao marido, Capitão-mór de Mazagão.

Dos sentimentos do Principe dá conta, e em termos expressivos, o chronista Garcia de Resende no seguinte trecho que tem o sabor especial da sua prosa:

«E á sexta-feira e ao sabbado esteve a Princeza no dito mosteiro (Nossa Senhora do Espinheiro), onde d’El-Rei e do Principe por suas pessoas foi sempre visitada. E segundo fama antes d’ella entrar na cidade, alli nas casas do mosteiro, onde pousava, teve o Principe ajuntamento com ella, o que de muitos foi estranhado por ser em casa de Nossa Senhora, e de tanta devoção. E affirmou-se por mui certo que n’aquella noite cahiu da parede da igreja uma ameia junto da camara d’onde jouveram, a qual ameia até hoje não foi concertada, e está assim por memoria que os frades d’isso fizeram.»

Os bons dos monges resmungaram, ao que se vê, pela supposta irreverencia, mas os dois Principes amorosos já haviam a esse tempo, um pouco prematuramente, mas com legitimo direito, saccado uma somma de caricias, que ambicionavam, por essa innocente lettra de cambio, talvez presentindo que o futuro lhe reservava pouca duração na felicidade.

Effectivamente logo oito mezes depois das pomposas festas d’Evora rebentava a tragedia de Almeirim.

Na cabana do pescador do Alfange, junto ao Tejo, o Principe ia agonizando. O silencio pavido da Rainha e da Princeza recem-casada, contrastava com o alarido dos prantos e com as desvairadas manifestações da assistencia afflicta «dando todos em si muitas bofetadas, depenando muitas e honradas barbas e cabellos e as mulheres desfazendo com suas unhas e mãos a formosura dos seus rostos que lhes corriam em sangue.»

Acompanhando a Rainha e a Princeza, primeiro a pé desatinadamente, e depois em mulas emprestadas, viera tambem, e agora assistia recolhidamente ao passamento do irmão, o Senhor D. Jorge, mocito de pouco mais de nove annos que, havia pouco andava na Côrte.

Perante a certeza da morte do herdeiro do throno, logo alli se levantaram em muitas imaginações, entre lamentos e queixumes extravagantes, as duvidas sobre a futura successão.

A Rainha em 1483 estivera á morte com um movito que a inhabilitara a dar ao Rei outro herdeiro.

Restavam dois: D. Manoel Duque de Beja, irmão da Rainha, que a essa hora fôra já chamado de Thomar; e o Senhor Dom Jorge a quem D. João II, seu pae, queria tanto ou mais que ao moribundo.

É que o bastardo, aquelle pequenote que agora estava alli junto ao catre, mal ageitado n’uma aljubeta, saccudido por soluços, fôra o filho dos seus amores. Sentia correr n’elle o proprio sangue. Achava-lhe (talvez com illusões de pae), qualidades que lhe lisongeiavam o orgulho, emquanto que ao Duque seu primo e cunhado, todo affecto aos Braganças, se não o odiava nem perseguia, repugnava-lhe comtudo pensar que por elle essa familia, inimiga e rebelde, havia de apossar-se do seu espolio politico, usufruir as vantagens da faina rude em que se empenhara para engrandecer o poder real.

O Sr. D. Jorge, que nascera em, ia breve entrar na puberdade.

Fôra educado em Aveiro por sua tia a Princeza D. Joanna, filha de D. Affonso V, até que, por morte d’ella viera para a Côrte, trazido por seu pae, a quem a Rainha D. Leonor nobremente, e com uma dignidade que o orgulho nativo fazia realçar, prometteu ao marido que d’elle cuidaria ella propria como se fosse seu.

Cumpriu-o… até á morte do herdeiro.

Durante os treze mezes que esteve no Paço, D. Jorge foi tratado como um segundo filho.

Depois… Depois seguiu-se o drama violento que as chronicas deixam claramente entrever, e a que D. Antonio Caetano de Sousa chama na Historia Genealogica—domesticos dissabores—e que nós a mais de quatrocentos annos de distancia concebemos, recompomos, e scenographamos conforme a nossa imaginativa e os elementos que conhecemos.

Esses elementos, nascidos da humana condição de cada um dos personagens, e gerados na profundeza dos seus animos, são, conforme as indoles e caracteres dos figurantes: em D. Leonor um mixto de ciumes retrospectivos, agora assanhados com a ferida aberta no seu coração de mãe, a repugnancia em ver o lugar do seu proprio filho occupado pelo bastardo, o amor proprio de Rainha, que não podia resignar-se a ver que D. Anna de Mendoça, havia tempo commendadeira era Santos-o-Novo, viesse a ser mãe do Rei; em D. João II era a voz do sangue clamando em favor do proprio filho, era a razão de Estado que se afigurava lucrar mais collocando D. Jorge no throno, era a sua phobia brigantina, era a sua alma tempestuosa exarcebada pela desgraça; em D. Manoel, simples Duque de Beja, era a natural ambição, era a visão das grandezas, a corôa de Rei, o interesse da familia e, já no fundo, bem no fundo do coração, a miragem da posse da Princeza, agora viuva, que desde a primeira vista o seduzira, e que d’ahi a poucos annos veiu a ser a primeira das suas trez mulheres.

Não nos occuparemos agora das peripecias d’esse drama, nem da lucta de sentimentos entre essas trez principaes figuras.

Olhemos para a causa das divergencias—o Senhor D. Jorge,—assim chamado por não ter ainda o titulo de Duque, que depois recebeu, e não poder usar o de Principe.

O mesmo tratamento se dava ao irmão do justiçado Duque de Bragança, que foi chamado o Senhor D. Alvaro.

O filho illegitimo foi logo, desde que o Principe morreu, afastado do Paço por El-Rei, no intuito de «tirar paixão á Rainha sua mulher com a vista da Senhor D. Jorge». Entregou-o aos cuidados do Conde de Abrantes, em casa de quem esteve alguns mezes, emquanto tentava desfazer as repugnancias de sua mulher á legitimação do bastardo, e emquanto ia pedindo ao Papa Innocencio VIII Bullas que o investissem no Mestrado da Ordem de Santiago e no governo e administração da Ordem de Aviz.

Chegaram essas Bullas.

Então, no proposito de engrandecer o filho, e talvez com o designio de ir preparando o que hoje chamariamos a opinião publica, acostumando-a á ideia da sua supremacia, determinou dar toda a solemnidade á cerimonia da posse dos mestrados.

Convocou numerosa e selecta assistencia á egreja do convento de S. Domingos e alli, a 12 de Abril de 1492, com a sua presença, o que mais avolumava a pompa e magestade do acto, foi celebrada missa solemne, em seguida á qual, todos os commendadores e cavalleiros das duas Ordens deram obediencia ao novo mestre.

Novo e moço. Tinha apenas onze annos, quando n’aquelle vasto templo dominicano passaram em sua frente, prestando-lhe homenagem, guerreiros de Toro, e nobres cavalleiros, cortezãos e fidalgos, ostentando nos magnificos mantos brancos a verde cruz floreteada de Aviz, e a vermelha de Santiago.

Pequenino pela edade e por ser miudo de estatura, o Mestre D. Jorge, com uma tunica de brocado sob o manto, acceitava como devidos á sua hierarchia os preitos dos cavalleiros das Ordens, ao passo que El Rei D. João II, remirando-se no filho, ruminava no modo de o legitimar para o deixar como successor. Bastardo? Que importava?

Bastardo fôra tambem o mestre de Aviz, D. João I, seu bisavô. E João das Regras com a sabedoria que trouxera de Bolonha, demonstrara a validade dos seus direitos.

Onde se encontraria um João das Regras para D. Jorge? Á falta d’elle nomeou-lhe para aio D. Diogo Fernandes de Almeida, que logo depois foi Prior do Crato, sendo já cavalleiro da Ordem de S. João de Rhodes. Heróe d’Africa, os seus feitos gloriosos tornavam-n’o indicado para formar um homem.

O pequeno, porém, era de natureza brando, frimatico (como então se dizia).

D. Diogo não soube ou não poude fazer fermentar na sua alma quieta a levadura da ambição. Adolescente, deixou-se levar emballado na corrente da vida, fluctuando como uma flôr rara sobre as ondas movediças, que agitavam a Côrte.

Assistiu, primeiramente, impassivel (talvez até ignorando-o) ao drama que se desenrolava e de que elle era o fulcro innocente.

Acceitou depois, com boa feição e de animo complacente, a chuva de graças que sobre elle foi cahindo durante a longa mocidade.

O Pae, disistindo de proposito de fazer d’elle Rei de Portugal, recommenda no testamento a D. Manoel, a quem deixa o Reino, que «se não tiver filhos o nomeie seu successor e sempre se queira haver com elle.»

Por esse testamento assignado na Villa das Alcaçovas a 29 de Setembro de 1495, faz doação ao filho, da cidade de Coimbra em Ducado, e de tudo mais que tivera o Infante D. Pedro.

Recommenda-lhe tambem que supplique para elle ao Papa o mestrado de Christo, pelo que D. Jorge ficava mestre das trez Ordens, o que significava uma situação florescente em honras, em influencia e em riquezas.

Não contente com isto, insta no mesmo testamento, com D. Manoel, para que conceda ao novo Duque de Coimbra a mão da primeira filha que vier a ter.

Era ainda uma ancora feita de esperança, lançada no futuro a favor do filho.

Feito o testamento, D. João II, muito doente, hydropico, malenconizado, e sentindo retalhadas as entranhas pela peçonha que bebêra, havia annos, n’um pucaro junto á Fonte Coberta, partiu das Alcaçovas para Monchique, no Algarve, onde esperava encontrar allivios.

O filho acompanhou-o. Mas nem a presença d’elle o distrahia, nem as danças e luctas dos vaqueiros da Serra o alegravam, nem a corrida aos porcos lhe desenferrujava as articulações.

Tomou dois banhos com pouca cautella, bebeu agua das Caldas mais do que devêra e, peorando, resolveu regressar, indo dormir a Alvor.

D. Jorge apresentou-se em Villa Nova de Portimão, d’onde foi ver o Pae duas vezes.

Ruy de Pina dá a entender que essas visitas rapidas deram azo a conjecturas ácerca da successão.

A verdade, porém, é que já a esse tempo o Rei temia «rebates de carne», que, dias depois, quando se sentia morrer, mais ainda quiz evitar, afastando de si o filho, cuja presença lhe trazia ao espirito lembranças das faltas commettidas no passado.

A sua morte, nas casas de Alvaro de Ataide, em Alvor, remata com singella belleza o drama impressivo que foi a vida desse homem tamanho.

Emquanto transportavam o corpo de D. João II para a Sé de Silves, o filho, que completára em Agosto quatorze annos, ficou em Portimão.

Alli, recebeu todos os Senhores e Fidalgos, que então estavam no Algarve, e d’alli voltava, quando encontrou Henrique Correia (meio irmão de sua Mãe), que lhe trazia uma carta de pezames de D. Manoel, então já Rei, que se achava em Monte-mór-o-Novo.

O aio Diogo Fernandes d’Almeida levou-o logo a saudar o Soberano.

Já então D. Manoel estava seguro no throno e descançado ácerca d’aquellas «duvidosas alterações» que, nos ultimos dias de vida do primo e cunhado, lhe assaltavam o animo.

Recebeu, por isso, com boa avença o rapazelho, que agora definitivamente deixava de ser um temivel obstaculo ás suas ambições, e escutou com favoravel disposição o discurso em que o velho aio o recommendava á sua generosidade.

Não era necessaria tanta eloquencia. O Rei D. Manoel logo satisfez o pedido, outorgando fartos beneficios ao pequeno primo.

O Bispo D. Jeronymo Osorio no seu livro «De rebus Emmanuelis», transpõe em linguagem de Tacito a falla do ancião. Alli se vê que a grandiloquencia de D. Diogo arrancou lagrimas ao benigno Soberano (adeo fuit Emmanuellis maeror excitatus). A ventura (e elle foi o Rei venturoso) dispõe o animo para a magnanimidade.

Passaram annos.

A vida corria serena para o moço Duque. De indole bonachã, torna-se bem acceito do Rei e da Rainha, que já fôra sua cunhada durante aquelles mezes em que estivera casada com seu meio irmão, o Principe D. Affonso.

Encontravam-se agora como primos, e ella renovava ao Duque de Coimbra, já quasi um homem, a amizade um tudo nada protectora, que havia annos concedera ao pequeno Senhor D. Jorge.

Em 1498, quando foi da viagem solemne dos Reis de Portugal a Castella, para serem jurados herdeiros d’aquella Corôa, foi resolvido que o Senhor D. Jorge, Duque de Coimbra, os acompanhasse n’esse passeio triumphal.

Com D. Manoel—o Sátrapa do occidente—que já sonhava collocar na cabeça a corôa imperial da Peninsula—Portugal, Castella, Aragão, Leão—e tambem a da Sicilia, iam os nomes mais illustres: Dom Diniz irmão do Duque de Bragança, o Senhor D. Alvaro, D. Francisco de Almeida, Tristão da Cunha, João Fogaça e muitos outros.

Ao chegarem a meia legua de Toledo, El-Rei D. Manoel destacou D. Jorge, Duque de Coimbra, com alguns do sequito, para irem áquella cidade saudar os Reis Catholicos, seus sogros.

Caminhava a vistosa cavalgada, levando á frente D. Jorge, de figura menineira, mas de porte airoso e nobre, e seguia pela estrada arida e amarellenta, que leva á antiga capital wisigothica, quando, quasi ás portas da cidade, o veiu receber, com todas as honras, Fernando, o Catholico.

Promptamente se apearam o Duque de Coimbra e os seus para lhe beijarem a mão. Mas era tal a multidão curiosa, e tão miudinha a estatura do Duque, apezar dos seus dezesete annos, que se sumiria no aperto se não o erguessem, tomando-o nos braços, D. João de Menezes, mordomo-mór, e o esforçado D. Fernando Martins Mascarenhas, capitão de ginetes. O Rei D. Fernando, ao ver assim levantada aos hombros de dois cortezãos, a figurinha delicada de um rapaz imberbe, perguntou surpreso, quem era, que assim lhe apresentavam.

Apenas ouviu nomear o filho de D. João II, descobriu-se reverente, com uma grande cortezia e mandou-o montar a cavallo, levando-o á sua direita, e dispensando-lhe d’ahi em diante as maiores deferencias.

Sobre a cabeça do feliz Duque iam sempre cahindo honrarias e benesses.

Pouco tempo depois de voltarem ao Reino, fez-lhe El-Rei doação das Villas de Montemor-o-Velho, de Penella, de Torres Novas com seus termos e o Reguengo de Campores, com muitas terras e Padroados.

E como a esse tempo ainda não tinha filha casadoira com que o juntasse, cumprindo o que em testamento lhe recommendára D. João II, procurou nos circulos de escol quem pela categoria, situação e belleza pudesse vir a dar uma duquezinha de Coimbra capaz de figurar no esplendor da Côrte manoelina.

Andava então na roda do Paço, e fazia as delicias dos Serões, uma senhora, parenta proxima de El-Rei, cortejada por todos os poetas e versejadores, e de formusura tão rara que em trovas e motes a cantavam, dando-lhe o sobrenome significativo de a Perigosa.

E perigosa era decerto D. Brites ou Beatriz de Vilhena, pois que, se facilmente se apaixonavam por ella todos os homens, difficilmente podia pertencer a algum, visto que era filha do Sr. D. Alvaro, irmão do Duque de Bragança, e portanto muito chegada ao throno.

Este Sr. D. Alvaro era alguem. Sem appellido, pois o não tinham os filhos dos Duques de Bragança, batalhara valentemente em Toro, achara-se no cerco de Samora, e fôra perseguido, como todos os Braganças, por D. João II que, primeiramente, o empurrou para fóra do Reino e depois lhe confiscou a casa e bens.

Recolhido com carinho por Fernando e Izabel de Castella, para alli mandou ir a mulher e os filhos. D. João II, porém, fizera constar ao Conde de Olivença, sogro do Sr. D. Alvaro, que desejava ficasse no Reino uma filha do desterrado a quem daria toda a casa e fazenda do pae.

Entregue á rainha D. Leonor, ficou vivendo no Paço, D. Beatriz, que tomou o appellido de Vilhena.

Tornando-se assim senhora de uma grande fortuna, e brilhando na Côrte com uma rara formosura, era deveras perigosa a altiva Beatriz, em torno da qual enxameavam, chamuscando as azas, numerosos poetas e adoradores.

Foi D. Diogo, filho do Marquez de Villa Real, quem lhe deu a alcunha com o celebre rifão:

«Nam s’espera outro rremedio

de quem vyr a periguosa

se nam vida douidosa.»

Accorreram á chamada numerosos versejadores e poetas palacianos que, em cantigas de louvor com mais ou menos metro, lhe exaltavam a belleza, lhe censuravam a altivez, ou se queixavam do seu rigor.

D. Nuno da Cunha referindo-se aos signaes que lhe apimentavam o rosto diz com intenção:

As duuidas, que nos days

cada ora em nossas vidas

eu as tinha bem sabidas,

senhora, em vossos ssynaes

Em vossos sinaes mortaes,

em que nam vi douidosa

minha vida periguosa.

Ao passo que D. Nuno, como vemos, era inspirado pelos provocantes lunares do rosto da Perigosa, João Fogaça, Védor da Casa d’El-Rei, exclamava com mais enthusiasmo que estro e que grammatica:

«Quem loouar e quem disser

muy grande verdade dys,

y nam se enguana,

que nam a hy ygoal molher

a senhora dona Briatys

de Vylhana

Polo qual nam ha rremedio

a cousa tam periguosa

nem ha molher tam fermosa.»

D. Affonso de Ataide, Senhor d’Atouguia, esse então, indo-se-lhe os sentidos só de encaral-a, dizia:

«Mas olhos y coraçam,

nesta vida duvidosa,

escolhem a mays periguosa!»

Tambem não faltou Garcia de Resende que lhe diz:

Quem na vyr, nam pode ver

se nam de ssy maao pesar,

poys tem çerto o padeçer,

y a pagua do perder

soo com ve-la se paguar.

Mas goay de quem ss’afastar

de ver cousa tam fremosa,

que seja tam periguosa!

D. Joanna de Mendoça, que supponho ser a futura Duqueza de Bragança, celebre pela formosura, entrou tambem com a sua cantiga:

«Por acudir ao rrifam

nam sey cousa que nam faça,

até confessar na praça

tudo o que nele vos dam.

E pareçe-me rrezam,

que poys soys tam periguosa,

nam sejays despiadosa.»

Fizeram tambem versos á perturbadora creatura Jorge Barreto, o Conde de Alcoutim, o Conde de Portalegre, o Barão d’Avito, D. Luiz de Menezes, etc.

Mas o que parece mais exaltadamente apaixonado é D. Diogo, filho do Marquez de Villa Real. Este tem no Cancioneiro uma longa poesia em oitavas na qual «se aqueixa comsigo mesmo» e que termina assim:

«meu tormento tam estranho,

que nam ha hy mal tamanho

que não s’acabe ou m’acabe.»

Logo a seguir n’umas trovas «A huma guedelha de cabellos que viu ha Senhora D. Beatriz de Vilhena» exclama:

«Cabelos de fremosura,

que me tanto namoraram,

ditosa minha ventura,

que sereys a sepultura

dos olhos que vos olharam.»

Foi esta rapariga, que á força de encantos se tornava perigosa, quem El-Rei D. Manoel e sua irmã a Rainha D. Leonor destinaram ao Duque de Coimbra.

Irão os leitores talvez conjecturar que, assim casada, ella veiu a dar n’uma das muitas malmaridadas de que rezam as chronicas coscuvilheiras. E imaginarão talvez que teve uma vida matrimonial tormentosa o consorte d’esta Duqueza tão rodeada de galanteios e paixões.

Mas, porque a natural altivez a defendesse, ou porque não fosse facilmente accessivel o seu coração, ou porque sinceramente gostou do marido que, embora de pequena estatura, era bem talhado, a verdade é que o Duque, que não lhe fizera versos, apesar de ter sido discipulo de Cataldo Siculo, e que não a assediára com declamações sentimentaes teve a sorte inesperada de ser querido pela appetecida de tantos, pela admirada de todos.

E a vida continuou a correr desannuviada para o Mestre de Santiago.

Administrava com cuidado a sua grande casa, e governava com tino as ordens militares o que não era uma sinecura, pois reunia com frequencia Capitulos, fazia ordenar Estados e definitorias (que ficaram conhecidos com o titulo de Estatutos do Mestre D. Jorge) e correspondia-se com a Curia para obter privilegios e regalias em favor dos Freires.

Ora em Lisboa, ora em Setubal, ora em Palmella, os Duques de Coimbra ostentavam grande estado, e gozavam de poderosa influencia.

Em 1508, quando El-Rei D. Manoel determinou ir soccorrer Arzilla, achava-se o Duque em Setubal. Apenas soube da intenção do soberano, aprestou numerosos navios, e, levando gente sua, correu a Tavira a juntar-se ás tropas reaes.

Não se realizou a expedição. Mas d’este caso resultou uma vistosa parada das forças de que dispunha o Duque.

Não foi maninha a formosa D. Beatriz. Deu ao marido oito filhos dos quaes o primogenito foi D. João de Lancastre, 1.º Duque de Aveiro e Marquez de Torres Novas de romantica memoria, que mais adiante encontraremos.

Foi tambem seu filho D. Affonso de Lancastre que veiu a ser pae do 3.º Duque de Aveiro.

E outros teve, entre os quaes D. Jayme Bispo de Ceuta que vieram a representar um papel curioso na opposição aos amores de seu pae.

Emquanto viveu El-Rei D. Manoel foi o Duque de Coimbra amimado constantemente com provas de affavel generosidade, e carinho.

Se adoecia, logo o Rei o visitava pessoalmente, o que era testemunho de grande consideração. E tão alta era reputada essa honra que a primeira vez que o Duque adoeceu depois da morte de D. Manoel, seu filho El-Rei D. João III reuniu Conselho para resolver se o devia visitar.

Os do Conselho approvaram, mas o Duque resentiu-se com a idéa da consulta.

No dia em que D. João III se apeiou á porta do palacio do Senhor D. Jorge estava este convalescente. El-Rei sem demonstrar apressurado zelo, atravessou as salas de espera, as do estado e deixando de lado a sala do Throno, dirigiu-se directamente aos aposentos particulares do Duque. Estava este ennovelado n’um ferragoulo de velludo escuro, quasi sumido entre os braços de uma cadeira de couro com pregaria amarella, e assistia interessado a uma partida de xadrez, que dois creados jogavam, para o divertirem, quando El-Rei entrou. Este, vendo retirar a mesa e taboleiro, perguntou ao Duque se gostava de vêr jogar. Respondeu este logo, sublinhando as phrases:

—«Senhor! Quando El-Rei vosso pae, que santa gloria haja me honrava com sua presença, por me divertir nas doenças, elle mesmo com summa benignidade se punha a jogar por me divertir.»

Este remoque levava a intenção de mostrar o desgosto que tivera com o saber que El-Rei, consultara o conselho para o visitar, o que contrastava com as intimidades recebidas de El-Rei D. Manoel.

Os Reis desadoram que lhes joguem biscas. D. João III, mais arguto do que muitos julgam, sentiu o alcance da picuinha e enguliu em secco. Abreviada a visita retirou-se carrancudo.

Este caso não os desuniu. Mas o que é certo é que nunca houve d’este Rei para com D. Jorge aquelle carinho que elle merecera aos dois predecessores.

Bem se mostrou quando foi do conhecido escandalo provocado pelo Marquez de Torres Novas.

Recordemol-o de passagem, visto que d’elle foi protagonista um filho do Senhor Dom Jorge.

D. Francisco Coutinho, 4.º Conde de Marialva, e Meirinho-mór do Reino, era, no primeiro quartel do seculo XVI, um dos mais notaveis fidalgos da Peninsula. Os seus annos (andava pelos setenta quando a tempestade estalou), os seus serviços (já fôra Alferes-mór de El-Rei D. Affonso V, e batalhára em Castella e em Africa), a sua fortuna (pois a casa Marialva era reputada das mais ricas) tornavam-n’o respeitado por todos, gozando de uma grande reputação e auctoridade.

Tinha uma filha unica, D. Guiomar, que «pela pessoa e riqueza era considerada o maior casamento que então havia em Hespanha».

O velho Conde, embora nobre e rico, ambicionava para a cabeça da filha uma corôa fechada, e não lhe desagradava a idéa de que ella trocasse as suas armas por um escudo com banco de pinchar. Queria vel-a Infanta de Portugal. Não se atreveu a aspirar ao herdeiro do throno. Mas como El-Rei D. Manoel tinha mais filhos pretendera que este a acceitasse para o Infante D. Fernando então ainda creança.

O Rei Venturoso não era indifferente á seducção do oiro. Accedeu aos desejos do Conde, por lhe parecer (escreveu elle) cousa proveitosa para o Infante e para o Reino.

Morrendo entrementes D. Manoel, seu filho, D. João III, não se demorou em dar cumprimento ao ajustado e, na casa do Conde de Marialva, em Março de 1522, fizeram-se as capitulações para se effectuar o casamento logo que o Infante chegasse aos dezesete annos.

Estavam as cousas n’este ponto, quando um dia surje no Paço o velho Conde de Marialva, allucinado, afflicto, fóra de si, e deita-se aos pés d’El-Rei clamando justiça.

Era o caso que D. João de Lancastre, Marquez de Torres Novas, filho da Senhor D. Jorge, Duque de Coimbra, com um atrevimento inaudito, viera oppôr-se ao matrimonio de D. Guiomar, allegando «que muito antes do contracto com o Infante Dom Fernando era elle casado clandestinamente com a filha do Conde, e determinára pôr este caso em juizo».

—«Era uma affronta á sua velhice (gritava o velho), era uma injuria ás suas cãs. Era tambem para El-Rei um insulto, pois que, fiado na pouca edade do soberano, o Marquez esperára a morte d’El-Rei D. Manoel, julgando que a inexperiencia do successor lhe facilitaria a empresa.»

D. João III ouviu attentamente o velho Conde…

Cá fóra, nas ante-camaras do Paço, segredava-se o acontecimento. Pode bem imaginar-se o alvoroço que levantou. Começavam a esboçar-se partidos. Uns, a favor do Conde, lamentavam vel-o assim desconsiderado, n’uma edade que não podia desforçar-se.

Outros, baixinho, accusavam-n’o de ambicioso, verdugo da filha, sacrificando á sua ambição os sentimentos d’ella.

Na côrte, na cidade, em toda a parte, por onde a nova ia alastrando, os commentarios ferviam ao sabôr das paixões. Cada qual interessava-se por um dos personagens, e todos se interrogavam sobre a decisão d’El-Rei.

Este fôra prudente. Levou o pleito ao Conselho. Entretanto mandava prender no Castello de Lisboa o Marquez de Torres Novas, e desterrava para fóra da côrte o Duque de Coimbra, pae d’este.

A prisão não atemorizou o indomito Marquez, que depois já no Castello barafustava, e que, proseguindo na demanda, mandou intimar o Conde de Marialva a que lhe entregasse a filha.

O caso aggravava-se.

Os Infantes D. Luiz e D. Fernando mexiam-se proclamando a justiça do Conde e verberando asperamente o procedimento do atrevido pretendente.

Por seu lado, já em Setubal, para onde se exilára, o Duque de Coimbra punha em campo a sua influencia.

Ao Rei, seria licito, usando do poder absoluto, decidir a contenda desde logo. Mas havia pontos duvidosos, e a consciencia não lhe permittia n’uma coisa «tam secreta como esta antremetter-se em fazer nem impedir casamentos».

Deixou correr no juizo ecclesiastico a demanda, que se foi arrastando durante nove mezes. O tempo na sua acção esmoedora ia desfazendo arestas. Morreu o Velho Conde. D. Guiomar interrogada por lettrados canonistas e theologos sobre se era casada com o Marquez, negou peremptoriamente.

O tribunal em vista de, pelo processo «não se provar bastantemente o contrario», decidiu o litigio em favor do Infante que já andava enfadado e desgostoso.

As bodas effectuaram-se. O Infante D. Fernando e sua mulher foram viver para Abrantes.

Pairava, porém, não sei que sinistro e agourento destino sobre o casal. Poucos annos depois de unidos, achando-se o Infante na villa de Azinhaga, referiu a alguns fidalgos, seus intimos, que sonhára n’essa noite ter visto sahir de sua casa em Abrantes, trez tumbas cobertas de negro. Não fez caso. Mas no dia seguinte recebeu recado de ter morrido n’aquella villa a filha unica que lhe restava. E partindo para alli a consolar sua mulher, morreu em Novembro, e ella em Dezembro.

Estava cumprido o sonho. Os fados tinham vingado o Marquez de Torres Novas.

Qual a verdade sobre os factos e sentimentos dos auctores d’este drama?

Qual o segredo do coração de D. Guiomar?

Um leve manto de mysterio ficou sempre entrecobrindo a romanesca historia. E a phantasia, tão propria de cerebros peninsulares, foi bordando sobre o assumpto lendas sentimentaes.

Ainda no meiado do seculo passado, Camillo Castello Branco n’um drama ultra-romantico, intitulado o Marquez de Torres Novas, (por signal bem inferior ao seu talento) architecta uma inverosimil acção eivada de erros historicos e de aleijões nos caracteres.

A versão official, que os chronistas estamparam, dá a entender que o Marquez, por ser muito novo e mal aconselhado urdiu aquelle enredo sem que na realidade tivesse havido união clandestina.

Elle proprio alguns annos depois, movido talvez por um sentimento cavalheiroso, escrevia á Rainha D. Catharina:

«Fui prezo e depois degredado da côrte por culpas que se offereceram, o que eu não confesso, nem Deus tal queira, eram alheias e não minhas nem de Sua Alteza por nossa edade, e d’isto porque não pareça que allego com testemunhas mortas, ainda poderei mostrar papeis ou papel, em que mostraria minha innocencia contra quem me culpasse.»

O chronista-mór, Francisco de Andrade, que viveu poucos annos depois dos acontecimentos acaba o capitulo em que os refere com estas palavras:

«A apressada morte de ambos (D. Guiomar e D. Fernando) e dos filhos que d’elles nasceram e a ruina da casa Marialva que tambem se apagou de todo foi occasião de haver no reino alguns juizos sobre este casamento e não faltou quem houvesse n’este caso por justa a sentença do céo.»

Juizes do Deus!

E a Duqueza de Coimbra D. Brites de Vilhena?

Essa, que, emquanto rapariga moça, tantas paixões levantou, foi durante os 30 annos de casamento a mais devotada companheira do mestre D. Jorge. Com elle esteve sempre no desterro em Setubal, e, entregando-se a obras piedosas, fundou juntamente com o marido o mosteiro de S. João d’aquella villa, onde entraram trez filhas suas, e onde se mandou sepultar.

Para a sua morte, que succedeu pelos annos de 1580, não contribuiram pouco os desgostos causados pelo escandalo levantado pelo filho, e o desterro d’este.

Nenhum dos Poetas que celebraram a sua formosura entoou endechas á sua morte. A Perigosa deixára de o ser e ia esquecendo…

O Duque que lhe sobreviveu muitos annos procurou consolações.

De uma, ou de mais que uma innominada (passageiros amores!) ficaram trez filhos todos D. Jorges, e todos clerigos, e ainda uma filha D. Joanna de Lancastre que foi recolhida no Mosteiro de Santos-o-Novo.

N’esse Mosteiro era commendadeira, já quasi octogenaria, e muito envelhecida, D. Anna de Mendoça, antiga amante de D. João II, e mãe do Senhor D. Jorge, Duque de Coimbra.

Levava vida exemplar.

O Duque, ou por ver sua mãe, ou para tratar da administração da Ordem de Santiago, a que o convento pertencia, vinha ás vezes de Setubal a Lisboa, aposentando-se n’uns quartos junto ao real Mosteiro.

D’alli fazia repetidas visitas ao Paço, desde a reconciliação com os Soberanos.

N’esse anno de mil quinhentos e quarenta e tantos, a estada em Lisboa foi prolongando-se. As sahidas succediam-se cada vez mais a miudo, comprazendo-se o mestre em frequentar principalmente a casa da Rainha D. Catharina.

Em torno da Soberana enxameava por esse tempo um bando de damas, algumas formosissimas, outras de graça encantadora, e quasi todas de espirito scintillante.

D. Jorge, habil no galanteio, doneador e bom cortezão, embora já serodio, deleitava-se na pratica do regio gyneceu, e deliciava com os seus ditos aquelle esquadrão volante das Donas e Donzellas da Camara.

Entre estas ultimas havia uma de dezeseis annos, que lhe prendia mais a attenção. Era D. Maria Manoel, filha de D. Francisco de Lima, já fallecido, e de D. Francisca de Vilhena, que fôra dama da Rainha.

O Duque, em tempo, fizera á mãe uma pontinha de côrte.

Esboçára mesmo um idyllio, que pouco passára dos prolegomenos, e que, tendo ephemera duração, deixou comtudo nos dois uma recordação amavel.

O chronista Francisco de Andrade, fallando ácerca d’este episodio, diz assim: «com quem, andando no Paço o mestre travara outros amores».

Seriam amores. Mas não foi amor. Não passaria, talvez, de uma amizade amorosa que, por uma reacção exotica de chimica sentimental, se transformou primeiramente n’um interesse accentuado pela rapariguinha filha d’aquella com quem flirtára. E o interesse que pouco a pouco foi crescendo em intensidade, e sempre n’um movimento ascencional a pouco trecho desabrochou n’uma paixão violenta.

Um caso de transubstanciação psychica.

A Rainha, que ao principio, não fizera reparo maior nas assiduidades de D. Jorge, cuja edade lhe parecia garantia para a seriedade da sua Casa, quando se inteirou do encantamento de que fôra tomado o primo, determinou dar providencias.

O mundo feminino do Paço agitou-se. D. Maria Manoel sentiu em volta de si condensarem-se nuvens ameaçadoras de borrasca.

Mas… deixava-se adorar…

Não estava ainda inventada a palavra snobismo. Comtudo, o sentimento que o vocabulo traduz na sua graduação variadissima, e nos infinitos cambiantes não é só d’este ou d’aquelle tempo, é fundamentalmente humano. Vaidade lisongeada, ambição de honrarias, ostentação de intimidade com os poderosos da terra, seducção pelas grandezas, desejo de brilhar com luz alheia, são modalidades da alma humana, que vem com pequenas differenças ab initio.

A nossa Mãe Eva, tal como a descrevem na famosa scena, seduzida pela serpente, que lhe accena com grandezas e lhe desvenda mundos desconhecidos, é já rudimentarmente snob e profundamente feminina.

Como não o seria D. Maria Manoel, Dama da Rainha D. Catharina, perante a miragem d’uma corôa de Duqueza, promettida por um homem que, para attenuar as devastações da edade, tinha ainda attractivos proprios, e um grande prestigio pessoal?

Deixava-se adorar…

Mas a Rainha, cuja austeridade em materia de amores chegou a tocar no desabrimento e aspereza, inspirando até, ao que parece, a Camões desterrado a celebre ode que diz:

«Oh crua esquiva e fera

Duro peito cruel e empedernido;»

a Rainha, que os amores do Senhor Dom Jorge contrariavam, interveiu severa, impedindo a continuação das entrevistas.

Então o Duque, como se fosse namorado imberbe, entrou a escrever bilhetes e a mandar recados á Dama da Rainha, por creados ou terceiras pessoas, com pouca cautela e recato.

Amigos e parentes censuravam-n’o inutilmente.

A paixão desenfreada do Duque não conhecia barreiras. Queria forçosamente casar com a rapariguinha, désse por onde désse.

E ella ia-se deixando adorar…

Então o filho do Senhor D. Jorge, o Marquez de Torres Novas, agora já Duque de Aveiro, que tão contrariado fôra nas suas pretensões á mão de D. Guiomar Coutinho, foi quem se levantou com mais sanha, oppondo-se ao casamento do pae. Ajudava-o n’essa empreza D. Jayme, seu irmão, Bispo de Ceuta, que, por ser creatura muito affecta á Rainha, que o fez Capellão-mór, contribuia para crear todos os obstaculos ao casamento do Duque, dando-se então a estranha situação de se ver um Prelado, um Bispo, um Principe da Egreja oppor embaraços ás amorosas pretensões do seu progenitor.

Elle e o Duque de Aveiro dirigiram-se ao pae, expondo-lhe respeitosamente, mas com firmeza, os inconvenientes do casamento.

Não negavam virtude a D. Maria Manoel. Mas a rapariga tinha dezasseis annos e o Duque quasi setenta…!

(Corvisart havia de dizer trezentos annos depois: «Aos setenta ha sempre filhos». Os dois Lancastres, menos cynicamente e com mais respeito, apropriavam-se do espirito d’esta formula.)

Com este enlace, diziam, corriam risco a saude e a vida do pae; era ameaçada a fazenda da sua Casa; e não seria decoroso dar-lhes por mãe quem podia ser filha de qualquer d’elles.

O Duque repelliu bruscamente a monitoria dos filhos. Havia de casar por força. Era uma paixão indomita, devastadora.

Disse-se então á bocca pequena que, de uma vez que D. Maria sahiu do Paço para ir a casa da mãe, o Duque a recebêra por mulher e lhe mandára depois ao Paço um escripto confirmando este acto.

E D. Maria ia-se sempre deixando adorar…

Mas agora já sentia tambem o amor proprio golpeado pelos enredos contra ella preparados.

Além d’isso a sua propria familia incitava-a a concluir o casamento.

Estavam as coisas n’este estado, e a intriga continuava fervilhando quando surgiu uma circumstancia que até ahi não occorrera á mente de ninguem—os dois noivos eram parentes em terceiro grau! Grande satisfação no partido do Duque de Aveiro que a esse tempo já estava casado com D. Juliana de Lara, filha do Marquez de Villa Real.

Enorme desprazer na familia da noiva que via assim retardado o almejado enlace.

O Duque porém não esmoreceu. Pelo contrario! Mostrou-se mais tenaz em proseguir no intento.

Então, pelos fins de Março, D. João III, que via o caso ir ganhando importancia e avinagrando-se, chamou-o á sua presença. Fallou-lhe como parente que prezava a dignidade da familia, e como Rei a quem cumpria zelar a boa ordem da Côrte, e o decoro nos seus principaes. Terminando, emprazou o mestre de Santiago a que desistisse da sua louca pretenção.

O arguido curvou a cabeça; agradeceu os conselhos e chegou mesmo a fazer promessas. Promessas com restricções mentaes (entenda-se) que depois havia de invocar para não obedecer. Tinha a attitude de um rapaz leviano na presença minaz de um pae severo. Mas… passados dias esquecia promessas e protestos e, levado pela impetuosidade do sentimento, declarava publicamente que já era casado com D. Maria por palavras de presente, e que mandára pedir ao Nuncio dispensa da affinidade.

Novo sobresalto do Duque filho.

Indignado El-Rei mandou chamar outra vez o Senhor D. Jorge. Reprehendeu-o severamente. E como as respostas d’este fossem confusas, ordenou-lhe que se retirasse para Setubal.

O velho apaixonado, roendo o freio, teve que ceder.

De lá, vencido, mas não convencido mandou, em Outubro, um recado a El-Rei.

Da linguagem embuçada d’esse papel, que se encontra nas «Provas da Historia Genealogica», e não póde deixar de ser authentico, de tal modo n’elle transparece o sentir do Duque, deduz-se que houvera realmente casamento.

Affirma mesmo esse papel que fôra em Janeiro.

N’elle se queixa do filho, que, com a opposição que fazia lhe ia encurtando a vida. E então, melhor seria, (dizia elle), morrer por ter casado, do que por motivo dos desgostos causados pelo Duque seu filho.

Casuistica amorosa!

Todo este documento, aliás curioso, e feito com raciocinio de apaixonado, é digno de figurar n’um curso de psychiatria.

Á Rainha escreveu o Senhor D. Jorge tambem, implorando que interviesse junto de El-Rei D. João III. E no paroxismo da paixão chegava a dizer, que quanto mais o contrariassem, mais esbanjaria a fazenda de sua Casa. (Esta ameaça era dirigida contra os dois filhos que sabia patrocinados pela Rainha.)

O Rei mandou responder-lhe em Novembro. Entre outras coisas dizia-lhe que «não póde chamar-se casado quem não tem faculdade para isso pelo gráo de parentesco sem dispensa.»

Para terminar dava-lhe o golpe de misericordia.

Annunciava-lhe que o Papa e o Nuncio tinham negado a licença!!!

Era o desmoronar de todos os castellos que a sua imaginação romanesca construira! Os dois annos que lhe restaram de vida levou-os a consumir-se… e a distillar illusões.

Quando em 1550, pouco antes de morrer, fez testamento, a paixão estava já como que volatilizada pela temperatura elevadissima que lhe abrazára o coração durante o periodo em que viveu caminhando no seu sonho exaltado.

N’uma verba d’esse testamento diz em palavras que, embora frias na apparencia, encerram ainda uma prova de affecto:

«Deixo a D. Maria Manoel, pela obrigação que lhe tenho em lhe prometter de casar com ella se o Santo Padre dispensar, mil cruzados da terça do dote que minha filha D. Elena me ha de levar e assim lhe deixo um Alvará do Duque meu filho em que me promette a valia de cem mil réis de renda para minhas obrigações em vida de sua pessoa para assim e na maneira que se no dito alvará contém que quero que haja non cazando ella, e casando, se distribuir em obras como acima digo.»

D. Antonio Caetano de Sousa na «Historia Genealogica» entende que este dizer é uma prova de que o Duque não tinha casado.

Salvo melhor interpretação, parece-nos que o Duque escreveria assim, prevendo que, se lhe chamasse sua mulher, os herdeiros se prevaleceriam da nullidade por não ter havido dispensa, e lhe negariam o legado.

«Que quero que haja non cazando ella.» Dizia o Duque no testamento.

Ella, porém, poucos annos passados, ajustou-se a casar com um parente viuvo, D. Manoel de Sousa e Silva, aposentador-mór da Casa de El-Rei D. Sebastião.

O parentesco entre os dois era apertado e tornava-se necessaria uma dispensa de Roma.

Eram demorados n’esse tempo os tramites para resolução d’estes negocios. E os noivos impacientavam-se com as longuras.

Que fazer?

D. Manoel de Sousa resolveu partir para Roma na empreza de facilitar a concessão. Obtida a desejada licença, regressou triumphante a Lisboa.

D. Maria Manoel tinha morrido entretanto!

E assim o Duque de Aveiro não teve que pagar o legado áquella que seu pae tão loucamente adorára.