SUMMARIO

A sociedade portugueza de então—O Paço—A Thebaida da Ajuda—A casa de Castilho—O hotel de Rambouillet na Rua Formosa—Casa dos Ficalhos nos Caetanos—S. Carlos—O Chiado—As Camaras—A Academia—Os ataques de Ramalho—Piparotes na burguezia macaqueadora—Os vencidos—Soldado e monge.

«Celui qui n’a pas vécu en France

pendant les années qui précédèrent

la Révolution, ne sait

pas ce que c’est que la douceur

de vivre».

Isto, ou cousa semelhante, affirmava Talleyrand, Principe de Benavente, aquelle que atravessou uns poucos de regimens, sempre na primeira fila, onde melhor podia satisfazer as tendencias das suas faculdades estheticas e as exigencias do seu requintado sybaritismo.

Entre nós, outro tanto se poderá avançar de quem não tiver vivido nos ultimos decennios do seculo XIX.

Sem curar agora de esboçar um quadro synoptico da vida portugueza n’esse periodo, nem de analysar a politica, as finanças, as relações internacionaes, que absorveram a attenção de estadistas, de diplomatas e dirigentes de collectividades, demos o braço ao forasteiro que, vindo de fóra, encontrasse em Lisboa, esse conjuncto composto de algumas dezenas de pessoas, a que se convencionou chamar: a sociedade.

Não sociedade apenas no sentido restricto das listas que enchiam a secção do High-Life no Diario Illustrado, ou o Carnet mondain nas Novidades e no Tempo, mas esse organismo que funcciona em todos os agrupamentos civilisados, constituindo o seu escol, e que entre nós (sem atendermos agora a exigencias de synchronismo) vae desde a côrte, em que El-Rei D. Luiz, academico e homem de lettras traduz Shakespeare, e a Rainha D. Maria Pia, que deslumbrára as Tulherias com a sua distincção, resuscita em Ajuda galas de outros tempos; em que El-Rei D. Carlos, homem de sciencia e artista, produz os memoraveis trabalhos de oceanographia e ornithologia e concorre ás exposições com paysagens e marinhas cheias de luz e côr, e a Rainha D. Amelia funda instituições de beneficencia e emprehende com o seu lapis o catalogo de objectos de arte antiga, que se encontravam dispersos em cathedraes, conventos e museus; e em que El-Rei D. Manuel preside, ainda muito novo, á Academia Real das Sciencias e toma parte activa nas sessões; até ás festas, bailes, paradas, serões d’arte onde todas as elegancias brilham, onde ha mulheres formosas, que são intelligentes, e homens sisudos, que são mundanarios.

Tomemos o braço d’esse peregrino, extranho ao nosso mundo, mas curioso d’elle, e percorramos em sua companhia estancias várias.

Entremos de improviso na austera Thebaida da Ajuda, e alli encontraremos Alexandre Herculano escrevendo, como monge erudito, a sua Historia de Portugal, ou evocando no Monasticon figuras de intensa vida, emquanto palestram, no desfastio dos frugaes pospastos, Bulhão Pato, discipulo dilecto, e outros que já hoje se abrigam «á sombra dos cyprestes».

Mais lá adeante, alli em S. Francisco de Paula, penetremos na casa patriarchal de Castilho, o mestre do verso castigado, que, na sua cegueira luminosa, enrolando com os dedos torcidas de papel, vae iniciando na Arte o filho bem dotado, ou escuta com desvanecimento a voz harmoniosa de Thomaz Ribeiro, que lhe recita os primeiros cantos do D. Jayme, com os quaes traz uma nota inédita ao lyrismo portuguez.

Subamos depois as escadas do palacete da Rua Formosa, onde D. Maria Kruz recebe, como na sala azul d’um novo hotel de Rambouillet, a fina flôr e a nata da intellectualidade do seu tempo: Garrett, janota, disfructando a plena aura do principado das lettras e favoneiado pela sua nomeada romantica; José Estevam com a sua facundia grandiloquente, enthusiasta, exhuberante; Casal Ribeiro, de sorriso ironico, pequena estatura, grande cabeça, maior talento; Fontes, o estadista mais representativo do systema representativo; Rebello da Silva, que entrançára já na corôa de louros, ganha com os seus trabalhos historicos, a Mocidade de João V; Andrade Corvo, homem de sciencia, que interessava as leitoras de romances com o seu Anno na Côrte.

Avancemos pela calçada dos Caetanos, até casa dos Ficalhos, onde a Condessa, seguindo as tradições maternas, e o Conde, a mais completa individualidade do seu meio—homem de sciencia, homem de lettras, homem do mundo—acolhem, tempo depois Antonio de Serpa, que transita, com o espirito sempre moço, d’aquella sociedade para esta, e vem camaradar ainda com a garrula precocidade tão promettedora de Carlos Valbom; com o engenho pluriforme de Oliveira Martins; com a espiritualidade zombeteira de Eça de Queiroz; com a perspicacia diplomatica de Luiz Soveral sempre monoculisante; com o talento polytypico de Carlos Mayer; com a gloria já consagrada de Guerra Junqueiro, o poeta; com a sociabilidade communicativa de Bernardo Pindella, privilegiado da natureza e enfant gaté de todas as salas.

Caminhemos mais e paremos em S. Carlos nas noites de gala (um deslumbramento!) ou nas de simples recitas, e alli encontraremos em cada camarote nomes que significam alguma coisa.

Ouviremos recordações dos tempos de Farrobo, das festas das Larangeiras, e, por uma associação de ideias, das dos Marquezes de Vianna, de Penafiel, dos Palmellas, ou no Calhariz, com as representações da Sobrinha do Marquez, ou no Rato, com as do Marquis de Villemer… E entrando n’esse palacio do Rato percorramos o atelier da Duqueza tão inspirativo d’arte e opulento de maravilhas; e as salas onde os retratos de Lawrence sorriem acolhedores; e a casa de jantar onde as ceias em honra da Duse e de Sarah Bernhardt eram espiritualisadas pela conversação de Maria Amalia Vaz de Carvalho, de João da Camara, de Mousinho de Albuquerque, de D. Antonio de Lencastre.

Desçamos depois o Chiado em tardes alegres de inverno, quando a tafularia fervilha em busca de modas novas na Aline, ou de commoções mysticas nas conferencias religiosas dos Martyres, e emquanto grupos no seu lazer meridional, ás portas das tabacarias e livreiros, observam as mulheres que passam ou paroleiam sobre os casos do dia.

E n’esses grupos veremos Antonio Ennes depois de acabar o artigo para o Dia; Gervasio Lobato—o Labiche portuguez—; Sousa Viterbo que, apesar de erudito e investigador, aprecia o modernismo e vae á livraria Gomes buscar ferramenta litteraria; José Antonio de Freitas, culto espirito de lettrado, e fluente conversador, que informa ácerca dos ensaios, em D. Maria, da sua traducção do Hamlet; e Alberto Braga, que justifica a sua reputação de cavaqueador inegualavel.

Passemos depois na Avenida entre as olaias em flôr quando pela tarde se cruzam equipagens de luxo, e cavalleiros em puros-sangues acompanham amazonas irreprehensiveis, que por vezes são a Rainha D. Amelia, a Condessa de Paris, a Princeza Helena, futura Duqueza d’Aosta.

Avancemos até ao Campo Pequeno e alli podemos ainda assistir a algumas touradas vistosas, das que fazem lembrar as do Castello Melhor e as do Vimioso.

Retrocedamos agora e vamos ao Parlamento. Nos Deputados discursa, manejando cifras com a clareza de um professor e a habilidade de um algebrista, Marianno de Carvalho, mathematico e politico.

Na dos Pares escutaremos, n’um assombro, a voz de Antonio Candido, que dá á tribuna portugueza a magestade da eloquencia atheniense.

Vamos depois alli perto a Jesus, á Academia Real das Sciencias, onde authenticos Principes de Sangue confraternizam com os Principes da Sciencia e das Lettras que são Latino Coelho, Thomaz de Carvalho, Pinheiro Chagas o Conde de Ficalho. E, se atravessarmos as ruas da Baixa, talvez vejamos maravilhados passar alguns d’aquelles cortejos deslumbrantes em que os coches de D. João V, bamboleando-se suspensos em corrêas, ou as lindas carruagens amarellas de gala á ingleza, transportam Soberanos, Princezas formosas e as suas Damas emplumadas…

Sem pretendermos alongar este escolio e sobrecarregar demasiadamente a nomenclatura, recordemos que n’essa sociedade dos ultimos sessenta annos, havia grandeza, intellectualidade, elegancia, brilho, movimento, tudo o que seduz, e attrahe e encanta, tudo o que causa la douceur de vivre.

Foi esse o meio que Ramalho veiu encontrar em Lisboa, que logo captivou as suas tendencias e em que foi acolhido com agrado.

O seu espirito apetrechado para a critica dos costumes com uma intelligencia sã, um grande poder de ironia, um engenho independente, uma luneta de vidros ampliadores, e uma mochila recheiada de factos, de phrases incisivas, de piparotes petulantes, de dardos ligeiros, e beliscões travessos, não se voltou contra essa sociedade, frondeur ou juvenalesco, como muitos querem assacar-lhe, vendo nas suas obras contradicções e incoherencias.

Não! O que elle atacou de frente foi outra classe, que junto a esta vivia, por um phenomeno de superfetação social. Ridicularisou as rodas em que meninas olheirentas e homens casposos, de unhas sujas, arremedavam os grandes modelos romanticos, deformando-os com sentimentalismo réles: deu palmadas nos ventres venerados de personalidades balofas; troçou da burguezia macaqueadora das raças velhas, de quem usurpára corôas e brazões; espetou com alfinete escarninho os balões assoprados pelo charlatanismo indigena; caricaturou graves personagens conselheiraes, e envolveu n’uma surriada devastadora tudo o que era postiço, falto de valor moral e de sinceridade.

A par d’isto prégou hygiene a uma geração que a ignorava. Ensinou a ensaboar muitos corpos faltos de limpeza. E, com aquelle poder de suggestão, que era uma das qualidades do seu talento, quantos banhos frios elle fez tomar no pino do inverno a pobres rheumaticos, que depois da leitura das Farpas, obedecendo submissos aos mandamentos do apostolo, iam tiritantes, sacrificar-se sob a chuva de douches matinaes!

Quanto fato talhado á ingleza appareceu, com o seu exemplo, substituindo janotismos pretenciosos em corpos de peralvilhos!

E a quantos pés atormentados em escarpes e botas afiambradas o seu andar, pisando bem, ensinou a calçar sapatos folgados de sola grossa!

Pôs á moda ser lavado e ser alegre. O seu rir tinha mais de Rabelais que de Voltaire.

Poz isso o trabalho demolidor de Ramalho não foi dirigido contra o edificio do Portugal antigo (então ainda de pé) cujas linhas architectonicas de magestosa grandeza a sua alma de artista enternecidamente amava.

Os projecteis, feitos de critica, que as catapultas da sua prosa arremessavam eram sobretudo destinados ás camadas de mediocres, que mascaravam, com jactancia pedantesca a fachada do monumento lusitano.

Estudando a distancia a sua obra descobre-se melhor a flexuosidade regular das linhas, a pureza dos contornos, a harmonia do conjuncto.

Ha mais unidade entre as primeiras e as ultimas palavras de Ramalho, que nas obras de muitos, que se affligem com as suas contradicções apparentes.

Se por vezes os tiros disparados no calor da refrega iam ferir homens ou corporações, que a sangue frio preferiria poupar, logo, com a lealdade dos fortes e das consciencias limpas, tratava de encontrar remedio para o desprazer causado.

Não se chama a isto incoherencia, chama-se honradez de processos.

As duas feições que melhor caracterisam a personalidade de Ramalho Ortigão, mais que a sua philosophia, mais que a viveza dos seus apodos e a crueza dos seus sarcasmos, eram: a sensibilidade do artista e a sua envergadura moral.

A melodia cantante e a limpidez espelhada da sua prosa; a cadencia dos periodos nas demonstrações eloquentes; a luz e a côr que iluminam as suas paysagens; a potencia visual nas descripções; o geito com que ductilisa a syntaxe por vezes hirta da lingua portugueza; a vibratilidade perante os aspectos do mundo externo e a força virtual na transmissão de impressões; a capacidade de captar com delicia todas as manifestações da arte e da natureza, e a faculdade de as transformar em obras-primas de graça no dizer, são qualidades que fazem de Ramalho um dos mais perfeitos cultores do verbo portuguez.

Mas a par d’estes predicados, e sobranceiramente a elles, avultam as linhas nobremente simples do seu caracter integro.

Por isso sentia a alegria de viver, revelada n’uma perfeita saúde de alma independente, sempre alheia a intrigas de partidos, a bisbilhotices de conventiculos, a enredos de facções, a parcialidades de seitas, a invejas de corrilhos.

Orgulhoso da sua penna, manejava-a com a elegancia d’um mosqueteiro seiscentista de capa e espada, ostentando no sombreiro de aba larga a pluma tremulante de generosas illusões, nascidas na sua perenne mocidade.

De uma das vezes que um grupo de amigos a que Ramalho pertencia, e que se reunia periodicamente, ora no Hotel Bragança, onde a garrafeira era famosa, ora debaixo das latadas verdejantes da «Perna de Pau», uma horta afamada dos suburbios de Lisboa, e durante um dos repastos, cujo fim principal era cultivar a planta rara de uma camaradagem isempta de outros interesses que não fossem o convivio espiritual e o despretencioso commercio de ideias, trocadas á medida que iam borbulhando nas nascentes, sem preoccupação de litteratice ou emphasis academica, Oliveira Martins, por quem então a aza da politica ainda não tinha roçado, conservava-se callado e alheio á palrice geral.

Era assim ás vezes o Philosopho, como amigavelmente os do grupo lhe chamavam, admirando-o e venerando-o como Sabio na dupla acepção d’esta palavra, isto é: homem de Sciencia e possuidor de Sabedoria.

Se os seus silencios eram acatados, a sua palavra era escutada com carinhosa attenção. N’esse dia, despertado por um pendor da conversação, começou a discorrer ácerca da intoxicação das almas pelos venenos distillados com a faina excitante da vida moderna, toda cheia de luctas de interesses, de combates de opinião, de ancias de subir, de struggleforlifismo.

E depois, com aquelle inclinar de cabeça que lhe era proprio, ia demonstrando como a Egreja Catholica, sempre previdente em armazenar confortos espirituaes, soubera encontrar o remedio para retemperar cerebros e vigorar animos atacados da nevrose da vida agitada; aconselhando o isolamento individual, ou collectivo na contemplação e contacto directo com a natureza.

E então, entre sério e risonho, suggeria, que, semelhantemente, como prophylaxia moral para o grupo, e tonico efficaz para cada um dos seus membros, realisassemos um retiro espiritual laico na solidão da serra da Arrabida.

A alma de poeta de Oliveira Martins, o seu mysticismo sonhador, o seu desdem pelo vulgo e pela Deusa Banalidade, davam-lhe a faculdade de considerar realisavel este projecto, embora proposto com sorridente falta de confiança na vocação dos eleitos. Com o leve pessimismo que melancholisava a sua concepção da existencia, trazia desde já para designar a comunidade aquella formula então para alguns inexplicada—Os vencidos da vida.

Esta proposta da fundação de um novo Port Royal, ainda que nas deliciosas sombras que envolvem o palacio do Calhariz (que seria pedido aos seus proprietarios); este projecto de vida monastica embora laical e ephemera, apresentado assim em circumstancias tão avessas á sua realisação, encontrou um acolhimento de natureza reservada em todo o grupo, sendo recebido, conforme os temperamentos respectivos, entre o ligeiro franzir de sobrolhos exclamativo, e o sorriso quasi zombeteiro dos mais irreverentes.

Um, porem, o encarou a sério com a sinceridade que punha em todas as manifestações da sua alma. Foi o mais alegre de todos nós, o mais são de espirito, aquelle de quem Carlos Mayer, na sua pittoresca linguagem, vendo-o chegar, alto, aprumado, exhuberante de vida, bem assente na existencia dizia: «Lá vem elle com a sua Ramalhal figura.»

Ha dias recordei este episodio, lendo n’um jornal aquella admiravel auto-biographia legada a seu filho, em que, com uma tão elevada simplicidade e tanta grandeza de animo, Ramalho diz: «Fiquei para todo o sempre—intimamente o reconheço—um tanto frade e um tanto soldado. Ficaram-me de pequeno indestructiveis gostos de ordem, de disciplina, de solidão.»

E mais adeante accrescenta:

«O acaso fez de mim um critico. Foi um desvio de inclinação a que me conservei fiel. O meu fundo é de poeta lyrico.»

E é verdade! Aos seus instinctos, (por mais parodoxal que isso pareça), não repugnava a disciplina doutrinaria, nem ao seu espirito a ideia da completa absorpção de todo o ser no seio de Deus.

Sentia-se um soldado e um monge.

Mas na realidade era essencialmente um poeta lyrico.