I.

Não basta que os contos populares deleitem: é mister que, ao mesmo tempo que deleitam, ensinem.

Este que vou contar não sei se satisfará á primeira condição; a segunda porém, ha de por certo preenchel-a, por isso que o leitor, que o levar a cabo, ficará sabendo quem era o Preste João das Indias, do qual todos fallam, e pouquissimos são os que o conhecem, a não ser de nome.

Pois, senhores, havia nas Indias um rei mui poderoso, cujo unico successor directo era uma filha de tres ou quatro annos. Como o monarcha se sentisse muito mal, chamou todos os grandes do reino, e fallou-lhes do seguinte modo:

—Ando tão adoentado, ha tempos a esta parte, que milagre será não esticar a canella antes de oito dias, e confesso que essa partida tão repentina para o outro mundo, me penalisa em extremo, por quanto desejava deixar casada a minha augusta filha; e no emtanto S. A. não passa por ora d’um comecilho. Asseguro-vos que pouco me importa morrer, porque para morrer todos nós nascemos, e demais, tanto faz morrer hoje como amanhã; porém o que eu não queria era que a pequena se casasse para ahi qualquer dia, em virtude de altas razões d’estado, com um principe, que não fosse muito do seu agrado.

—Senhor, lhe tornou um dos homens politicos mais importantes do reino, faz V. M. muito mal em estar a affligir-se com essas coisas. Quando a princeza chegar á edade de tomar estado, ha de casar-se com o principe, que fôr mais do seu gosto; e se houver no reino quem se atreva a querer oppôr-se á liberrima escolha de S. A., esteja V. M. certo de que tem que se haver comnosco.

—Ora, ora! Então cuidas tu que eu engulo essas patranhas? replicou o rei, traduzindo a sua incredulidade n’uma estrepitosa gargalhada. Nem que eu não soubesse o que são os partidos politicos! Aquelle que então estiver no poder apresentará a minha filha o seu candidato, e a pobre pequena terá de se aguentar, não com o marido que mais fôr do seu gosto, mas sim com aquelle que mais convier aos seus ministros, os quaes, só por satisfazerem mesquinhos interesses de partido, serão capazes de a obrigar a casar ainda que seja com o moiro Musa.

—Mas, senhor, V. M. deve lembrar-se de que este paiz é um paiz essencialmente monarchico…

—Isso é bom de dizer! Não estamos nós vendo, todos os dias, homens politicos, que nos concedem, a nós os reis, até o direito divino, e que, se um bello dia lhe não agradamos, nos chegam, inclusivamente, a negar o direito de pessoas decentes!

—De accôrdo, mas é que esses são uns vilões que nunca deveram ter parte na luta dos partidos.

—Mas o grande caso é que a têm no goso dos direitos constitucionaes.

—Em summa, ordene V. M. o que lhe aprouver, e eu lhe assevero, que póde marchar tranquillo para o outro mundo, e sem o menor receio de que deixemos de cumprir rigorosamente as suas ordens.

—Pois bem, n’esse caso escutae-me: quando minha augusta filha estiver em edade do tomar estado (e isso é coisa, que facilmente se conhece), deveis dar-lh’o a saber, tendo em vista todo aquelle recato com que se deve fallar d’essas coisas a uma donzella; em seguida fareis apregoar por todas as nações do mundo, que a vossa rainha e senhora resolveu casar-se, e dará a sua mão ao principe, que mais fôr do seu agrado.

—Até ahi estamos bem; mas V. M. sabe que o mundo se divide principalmente em tres religiões, a saber: a religião christã, a mahometana e a judaica. Devo portanto suppôr que V. M. terá já formado o seu juizo, ácerca da religião a que deve de pertencer o seu augusto genro.

—Homem, francamente, ainda nem tal coisa me passou pela cabeça.

—Ah! pois isso é coisa muito séria!

—Vae-te d’ahi com esses teus escrupulos de freira! Vós todos sabeis que no meu reino não ha religião alguma. A fallar a verdade, já por vezes tenho pensado sobre se conviria ou não que a houvesse, porque ha muito quem diga, que não póde haver sociedade sem o freio da religião; porém, no fim de contas, tenho acabado sempre por dizer cá para os meus botões: «deixar correr; quem me manda a mim metter a redemptor? Que religião póde haver n’um paiz tão desmoralisado como este, onde todos os dias se manda gente á forca?! Vá uma pessoa introduzir aqui, por exemplo, a religião christã, segundo a qual todos os homens são eguaes: haviam de marchar bem as coisas, desde o momento em que os escravos, que tiram os coches, soubessem que valem tanto como os senhores, que vão dentro d’elles, mui repimpados!»

—Visto isso, entende V. M. que a melhor religião… é não ter religião nenhuma, não é verdade?

—Não digo isso, homem; nem tanto ao mar, nem tanto á terra. O que eu te digo é que não tenho querido quebrar demasiado a cabeça, pensando em coisas tão delicadas. Que escolha, minha augusta filha, marido do seu gosto, e ainda mesmo que seja pêrro judeu…

Assim terminou a conferencia do rei com os próceres da republica, e avisado andou S. M. em não a deixar para o dia seguinte, porque n’aquella mesma noite teve um ataque tão forte, que esticou a canella, sem ter tempo sequer para dizer «Jesus».

 

II.

Como era natural, apenas o rei morreu, levantou-se a questão da escolha d’uma regencia, que devia tomar as rédeas do governo, durante a menoridade de sua excelsa filha, e então é que foram ellas!

Sobre se a regencia devia ser de tres, ou d’um unico estadista, e se este deveria ser Pedro ou Paulo, levantou-se tamanha tempestade, que ia tudo pelos ares. Por ultimo optaram pela regencia una, e por então terminou a contenda; porém os partidos politicos, para os quaes vêr os seus contrarios no poleiro e vêr o diabo é tudo uma e a mesma coisa, começaram novamente a tecer os pausinhos. Era o regente um soldado destemido e honrado d’uma vez; porém como homem d’estado não passava d’um simplorio, que entendia tanto de governo como eu entendo de lagares d’azeite; os seus inimigos, aproveitando-se da inepcia com que elle dirigia a politica, não descançaram em quanto lhe não deram um pontapé, e o expulsaram do palacio.

Nomeou-se novo regente. Este então era um passaro que cantava na mão, porém ao mesmo tempo, tão medroso, que apenas ouvia um tiro, era capaz de se metter cem braças pela terra abaixo; d’ahi resultava que cada dia havia um pronunciamento.

Por effeito de um d’esses pronunciamentos, caíu o regente, e organisou-se então uma regencia composta de tres magnates.

Até ali era um só a crear nichos para empregar os seus amigalhotes, um só a querer enriquecer á custa da nação, um só a monopolisar os favores da joven princeza, e um só a governar mal; multipliquem agora esse um por tres, e imaginem a poeira, que se levantou com a tal regencia trina!

Conheceu finalmente a princeza que estava em edade de casar-se, e correu voz, por todas as nações, de que ella punha a sua mão a concurso e a daria ao principe, que mais lhe agradasse.

Os primeiros, que acudiram ao reclame, foram os judeus, os quaes trajavam rica e vistosamente, e tinham o cuidado de fazer tinir bem o dinheiro diante da princeza, suppondo talvez, que o vil metal teria para ella tantos attractivos como para elles; e, emquanto os que iam á mostra faziam sua côrte á princeza, andavam os rabinos pelos cêrros pedindo a Deus, que désse a algum dos da sua casta aquella boa pequena, que tão bello partido era.

Chegaram em seguida os mahometanos, e era muito para se vêr, tantos moiros montados em cavallos, mais ligeiros que o vento, escaramuçando e jogando canas, a vêr se, assim, engodavam a princeza.

Afinal appareceram os christãos, que, com suas justas e torneios, e o seu porte cheio de garbo e gentileza, sabiam encantar o coração das donzellas.

—Então, em qual das tres religiões escolhe V. M. marido? perguntou o presidente do conselho de ministros á rainha.

—Homem, nem sei o que te diga, respondeu a rainha. Bem se diz que quem tem que escolher tem que fazer. Se queres que te falle verdade, gosto de todos.

—Vamos, mas V. M. precisa decidir-se por um.

—Asseguro-te que sinto realmente devéras não poder decidir-me, sequer ao menos, por tres. Olha, que entre os christãos ha alguns rapazes bem guapos!… mas entre os judeus e os moiros… não te digo nada!…

—Em summa, disse o presidente do conselho, isto não é sangria desatada; deixe-os V. M. penar, uns e outros, por espaço d’alguns mezes, e depois, então, poderá V. M. escolher, com perfeito conhecimento de causa; isto de escolha de marido é, para as raparigas, operação muito delicada…

O presidente do conselho teve a honra de que S. M. seguisse o seu parecer, e christãos, mahometanos e judeus, continuarem a fazer as suas zumbaias á real moça, cuja mão ambicionavam.

Chegou noticia a Roma do que se passava nas Indias, e o Padre Santo ordenou que se fizessem preces, para que Deus inspirasse a rainha afim de que casasse com um christão, coisa que redundaria em gloria e augmento da christandade.

Havia n’aquelle tempo em Roma um Preste ou sacerdote, ainda moço, conhecido pelo nome de Preste João, o qual era a admiração de toda a gente, em rasão do seu saber e virtudes, zelo religioso e galhardia.

O Preste João apresentou-se ao Padre Santo, e disse-lhe:

—Santissimo Padre, o que se está passando nas Indias é, quanto a mim, coisa mais seria, do que parece, á primeira vista. Aquillo é um paiz desgraçado, onde ninguem crê em Deus, nem em Santa Maria; onde todos são impios e atheus. Se a rainha se casa com algum pêrro judio, estamos bem aviados; vae tudo para o diabo. Se porém a rainha dér a mão de esposa a um christão, corto a cabeça, se todos os indios, dentro em poucos annos, não forem tão christãos como nós. Posto isto, vou pedir uma graça a Vossa Santidade.

—Se fôr coisa que eu possa conceder-te…

—Que V. S. me deixe ir ás Indias, para ver se faço entrar aquella gente no bom caminho.

—Estás servido, filho; pódes partir quando quizeres.

—Pois, n’esse caso, vou immediatamente tirar passaporte.

—Toma cuidado, filho; vê lá que esses infieis te não preguem alguma peça… particularmente os judeus…

—Isso não me mette medo, que por muito que saibam, sempre hei de saber mais do que elles.

—Pois vae na graça de Deus, e leva comtigo a minha benção paternal.

—Graças, Santissimo Padre!

Foi dito e feito; o Preste João, acompanhado d’um luzidissimo séquito de sacerdotes, em cujo numero se contavam os melhores cantores de Roma, e munido de riquissimos paramentos e decorações d’egreja, inclusive um orgão, que era o melhor que, até então, se tinha visto n’aquelle genero, tomou o caminho das Indias.

Felizmente os inglezes não eram, n’aquella época, tão philantropicos, como o são agora, do contrario não teriam deixado de lhe armar alguma ratoeira, na idêa em que estão, de que, para civilisar os cypaios, são mais eloquentes os seus canhões, carregados de metralha, do que os hyssopes dos missionarios catholicos, ensopados em agua benta.

 

III.

Os judeus e os moiros souberam que o Preste João se dirigia para as Indias, e estavam atrapalhados da sua vida, porque havia muito tempo que a fama trombeteira lhes tinha levado noticia do saber, da virtude, do zelo religioso, e da extremada galhardia do Preste João.

Chegou este, a final, com o seu séquito, e a rainha ficou enamorada da graciosa dignidade, com que elle a saudou, a ponto de não poder ter mão em si, que não dissesse, baixinho, ao presidente do conselho:

—Olha que este christão não é nenhuma asneira!…

Vendo o Preste João a rainha mui bem disposta em seu favor, aproximou-se de S. M., e disse-lhe:

—Senhora, vejo que V. M. vacilla sobre se ha de casar-se com um christão, com um moiro, ou com um judeu. Creia V. M. que a religião de Christo é a unica verdadeira, grande e salvadora, e que as outras são umas religiõesitas de tres ao vintem, que nem com cem varas chegariam ao ceu, d’onde procede, e onde apoia sua augusta fronte o christianismo. E se V. M. se quer certificar de que isto que lhe digo é a pura verdade, não tem mais que ordenar, que nos reunamos, na sua presença, judeus, mahometanos, e christãos, a fim de discutirmos qual das tres religiões é a melhor, e, sobre tudo, qual é aquella, que mais favorece as mulheres, pois essa é a grande questão, nas circumstancias actuaes.

—Com muito gosto; não tenho a menor duvida em acceder aos teus desejos, respondeu a rainha. Amanhã apresentar-vos-heis todos diante de mim, e veremos, então, quem é que leva a melhor.

Com effeito, no dia seguinte, estava a rainha sentada no seu throno, e as tres religiões, representadas pelo Preste João, e pelos judeus e mahometanos mais sabios, dispostos a discutir na sua presença.

—Está aberta a sessão, disse a rainha. E como era o Preste João quem tinha provocado aquelle certame, devia considerar-se como o primeiro, e por esse motivo que pedira a palavra, a rainha accrescentou: «Tem a palavra o Preste João.»

Os judeus e os moiros começaram logo a murmurar, accusando de parcial a augusta presidente; esta porém fel-os entrar na ordem, a poder de muitas razões, e toques de campainha.

—Senhores, disse o Preste João, trata-se de orientar a S. M. acerca d’um assumpto mui grave, qual é a escolha do homem a quem, de preferencia, deve ligar o seu futuro. Ora, o que mais interessa a S. M., é saber o que mais lhe convém, se um marido christão, se mahometano, ou judeu; quanto a mim a questão está resolvida, para S. M., desde o momento em que esta augusta senhora, ou para melhor dizer, senhorita, souber qual é das tres religiões aquella, que mais protege e favorece os fracos em geral, e a mulher, em particular.

«Comecemos pela religião judaica.

«A mulher, no povo de Israel, era escrava submissa do homem, e não sua companheira. Quasi nas primeiras paginas, nos testemunha isso o velho Testamento, pois nos diz que Abrahão, marido de Sára, recebeu Agár por mulher, ainda em vida da primeira, e logo adiante nos conta que Esaú casou, ao mesmo tempo, com duas irmãs cananêas. O Decálogo, revelado mais tarde a Moysés, no alto do Sinai, dizia: «não desejarás a mulher do teu proximo»; mas não dizia: «terás uma unica mulher», e Salomão, que era o prototypo da sabedoria hebraica, teve milhares de concubinas. Pergunto eu agora a S. M. se está disposta a soffrer que o seu futuro marido lhe dê uma, ou mais substitutas?!

—Substitutas! a mim!… exclamou a rainha indignada. Tenho bom genio para isso! Mais facil seria enterrarem-me viva!

—Pois eu continúo….

Aqui interrompem os judeus o orador, descontentes do caminho que leva a sua causa; a rainha porém fal-os entrar na ordem, á custa de repetidos toques de campainha, e com ameaça de os fazer expulsar do salão.

O orador continúa:

—Ficarei por aqui a respeito de judeus, os quaes, em verdade, me causam dó, ainda que não seja senão por os vêr condemnados a esperar o Messias, até á consummação dos seculos; com isso já não estão mal castigados por haverem crucificado a Christo, porque lá diz o rifão: «quem espera, desespera». Passemos agora aos mahometanos. Quem era o tal Mafoma?

—O propheta de Deus! exclamam os mahometanos, pondo a mão no peito, e dobrando-se reverentemente.

—Qual propheta, nem qual cabaça!…

Aqui é que foram ellas! Dizer isto o Preste João, e arrancarem os moiraços dos chanfalhos, rugindo de cólera, foi tudo obra d’um momento; a rainha porém sacudiu a campainha, mandou entrar o piquete da guarda, e graças a esta energia da presidencia, accommodaram-se os perturbadores da ordem, e o orador pôde, a final, continuar:

—Mafoma era um sugeito que passava por sabio e grande, entre os seus compatriotas, pela razão muito simples de que na terra dos cégos, quem tem um olho é rei! Um dia, disse elle com os seus botões: Como hei de eu arranjar a dominar estes barbaças, que não tratam senão de se divertir com as moças?… como?… esperem lá… já sei. Engendro-lhes uma religião baseada no grosseiro sensualismo, e metto-lhes na cabeça, que ella me foi revelada por um anjo.» E dito e feito: arranjou o tal alcorão, segundo o qual, a mulher e o cavallo vem a ser, para o homem, uma e a mesma coisa, por isso que apenas servem para o divertir; e fez acreditar aos asnos dos seus compatriotas, que, no outro mundo, haviam de encontrar moças ás duzias, e obra desenganada.

—E é que as havemos de encontrar! gritam furiosos os mahometanos.

—Deixemos-nos de lerias!… que hão de vocês encontrar?! Só se forem alguns tições, que outra coisa não podem lá achar uns barbaros como vocês, que atravessam seculos e seculos, sem dar um passo na senda do progresso! Vamos porém agora a vêr o que é a mulher, segundo a religião estupida de Mafoma.

—Lancem-se essas palavras na acta! gritam, afogados em cólera, os mahometanos.

—Não é da minha real vontade! responde a rainha. Prosiga o orador no seu discurso, que eu cá estou para lhe manter o uso da palavra.

—Pois bem, eu continúo: É para cortar o coração, e fazer caír a alma aos pés, a maneira como a mulher é tratada pelos musulmanos. Não se contentam estes senhores com ter duas ou tres mulheres; possuem centos d’ellas, encerradas em carceres, a que dão o nome de serralhos, ou haréns. Atravessa a gente as cidades mais populosas da Turquia, e não encontra uma mulher siquer para um remedio; e isto porque esses barbaros até as privam do ar e do sol, as duas coisas mais preciosas, que a natureza concede á creatura. Horror! cem vezes horror!! Negarem á mulher, esse formoso ser, todo amor e ternura, a quem todos nós temos dado o dulcissimo nome de mãe, o ar e o sol, que não negam aos mais immundos irracionaes! Maldição sobre essa lei impia, sobre o falso propheta, que a dictou, e sobre o povo barbaro e fanatico, que a segue!

—Ah! perro christão!… gritam, a um tempo, todos os musulmanos, ao ouvir a energica apostrophe do Preste João; e, rugindo de raiva, mais furiosos ainda do que da primeira vez, lançam mão dos alfanges, com ameaça de acabar tragicamente com a discussão; a rainha porém, mandou entrar novamente o piquete da guarda, que os desarmou e os metteu na ordem, a poder de muita coronhada d’armas.

Apasiguada que foi aquella rusga, continuou o Preste João o seu discurso:

—Que differença entre o que a mulher deve á religião christã, e o que deve a qualquer das duas religiões, mahometana e hebraica! Maria, em cujas entranhas encarnou o Verbo Divino, senta-se, no ceu, ao lado do Filho de Deus, e juntamente com Jesus, lhe dão os homens o dulcissimo e santo nome de mãe. A religião christã glorifica a mulher, destinando-a a esmagar a cabeça da serpente do peccado, e Jesus proclama a egualdade de todas as creaturas humanas, e diz aos meninos que se acerquem d’elle, igualando, por tal forma, a mulher ao homem, e exaltando os fracos em cujo numero se conta a mulher. É pois a religião christã a unica que favorece a mulher; é aquella que a emancipa da escravidão e do opprobrio, a que a condemnam as religiões judaica e mahometana. Tenho dito; veremos agora se ha ahi alguem, que seja capaz de me contradizer.

—Teem a palavra os judeus, disse a augusta presidente.

—A religião de Moysés, replicou um rabino, já completamente desanimado, não carece de entrar em discussões, para provar a sua superioridade sobre todas as outras.

—Ficamos inteirados! disse a rainha, e accrescentou: Teem a palavra os doutores musulmanos.

—Nós cá, os verdadeiros crentes, exclamou um turco, não discutimos senão d’alfange em punho.

—Quer isso dizer, á bruta! exclamou a rainha indignada; e erguendo-se da cadeira, accrescentou: estando já a hora mui adiantada, e não havendo mais assumptos a tratar, está levantada a sessão.

 

IV.

Ficou a rainha quasi resolvida a casar com um christão; porém, receiosa de que houvessem murmurações e commentarios que lhe fossem desagradaveis, lembrando-se de que alguem poderia dizer que ella obrára levianamente, determinou-se a tentar uma outra prova. Consistia essa prova em fazer com que os apostolos das tres religiões celebrassem, na sua presença, uma das cerimonias mais importantes dos ritos que professavam.

Christãos, musulmanos e judeus, todos, com muito gosto, acceitaram a proposta de S. M., que logo fixou o dia para as cerimonias, que deviam verificar-se no mesmo salão, onde se tinha discutido qual era das tres religiões aquella a que mais devia a mulher.

Os primeiros que saíram a terreiro foram os mahometanos, os quaes annunciaram que iam executar a Zala.

Tinha a rainha grande curiosidade de presenciar esta cerimonia, que julgava ser magnifica, e que muito a divertiria; quando porém viu que a tal Zala consistia tão sómente em cruzarem aquelles ratões as mãos no peito, e fazerem reverencias e mais reverencias, ficou mais fria que o proprio gêlo.

—Muito engraçados são os taes moirinhos! disse S. M., com riso disfructador; e ordenou, em seguida, que saíssem a campo os judeus, a vêr que tal se portavam.

O grande rabino, com o seu barrete enterrado até ás orelhas, como usam os seus correligionarios, sacou d’um livro, e immediatamente appareceram todos os judeus com os seus ripanços nas mãos. Ora, os taes livros seriam muito edificantes, mas tinham tanta côdea, que só com uma tenaz se lhes poderia pegar. O rabino principiou a entoar um psalmo, e todos os judeus o acompanharam; cantavam porém tão desentoadamente, e davam tão insoffriveis bérros, que a pobre da rainha não teve outro remedio senão tapar os ouvidos, e mandar a toda a pressa que cessasse tamanha algaravia.

Cessou com effeito, e os christãos dispuzeram-se, por ultimo, a celebrar o santo sacrificio da missa, para o que o Preste João tinha tudo perfeitamente ordenado.

Collocaram no salão um magnifico altar, accenderam uma grande quantidade de tochas, que faziam bellissima vista; puzeram o orgão n’um sitio, que tinha excellentes condições acusticas, tossiram e aguçaram o pigarro os cantores que haviam de officiar a missa, e que, como em principio dissemos, eram os melhores de Roma; e, e seguida, subiu o Preste João ao altar, magnificamente revestido, bem como os dois acólitos, que o acompanhavam. A missa foi solemnissima, e tanto os celebrantes, como os cantores e o organista fizeram prodigios, que deixaram de bôcca aberta a rainha e a sua côrte.

Os mahometanos e os judeus olharam uns para os outros, e disseram por entre os dentes:

—Derrotaram-nos em tudo e por tudo estes perros christãos!

E na verdade não se enganaram, porque a rainha chamou, pouco depois, o Preste João, e disse-lhe:

—Decididamente caso com um christão.

—Louvado seja o Senhor! exclamou o Preste João, cheio de santa alegia. Agora só falta que V. M. escolha o christão, que deve ter a ventura de occupar o thalamo de tão formosa princeza.

—Já está escolhido, disse a rainha das Indias, fazendo-se córada como uma romã.

—E quem é esse feliz mortal?

—Tu.

—Eu!… V. M. não está em seu juiso!

—Então! faz-te agora de manto de seda!…

—Não, senhora; porém não sabe V. M. que eu sou padre, e que os padres catholicos não podem casar?…

—Que me dizes, homem?

—Digo-lhe isto, real senhora!

—Pois, amigo; partiste-me o coração!

—Então, porque?

—Porque estou apaixonada por ti, e se não casar comtigo, não caso com ninguem.

—Mas, senhora, entre os meus correligionarios ha moços mais bem parecidos do que eu.

—Asseguro-te que nenhum me póde agradar tanto como tu.

—Sinto isso bem; mas eu é que não posso casar.

—Visto isso, não terei outro remedio, senão dar a mão d’esposa a algum d’esses moiros… que… diga-se a verdade, entre elles ha rapazes bem tirados das canellas, e o que me não agrada n’elles é apenas a religião, que professam…

Quando o Preste João ouviu estas palavras, tremeu dos pés á cabeça, pensando, e com razão, que, pelo facto de a rainha casar com um mahometano, todas as Indias, povoadas de milhões e milhões de habitantes, abraçariam a seita detestavel de Mafoma, ao passo que, se casasse com um christão, toda aquella gente seguiria a religião de Christo.

—Senhora, disse elle, por fim, á rainha, póde ser que consigamos harmonisar tudo. O Papa, que é o Vigario de Christo na terra, é o unico que póde auctorisar-me a casar com V. M. Vou já escrever-lhe, pelo correio d’hoje, pedindo-lhe a competente licença.

—Oh! que feliz idêa! exclamou a rainha; e riam-se-lhe os olhos, de contente. Bem digo eu que és um rapaz de muitos recursos!

O Preste João poz logo mãos á obra; escreveu ao Papa, contando-lhe, muito pelo miudo, o que se passava, e, na volta do correio, recebeu de Sua Santidade a dispensa para casar com a rainha das Indias.

Celebraram-se, pouco tempo depois, as vôdas, com grandes festas e muito regosijo (bem entendido, depois da rainha se ter feito christã) e, passados annos, recebiam o baptismo todos esses milhões de milhões de indios, que os inglezes, nos nossos dias, se fartaram de metralhar, sem dó, nem piedade.

Eis-ahi a historia do Preste João das Indias. Outros a contarão com mais graça do que eu, porém com melhor intenção por certo que ninguem a conta.