Por uma tarde calmosa de estio passeava eu distrahidamente á beira-mar, sorvendo o doce aroma, que emanava das auras celeres e vaporosas, compondo milhares de prismas seductores e phantasticos, ao som lúgubre das vagas altisonantes, que se escoavam languidas por sobre a fulva, resplandecente areia,–quando, inopinadamente, vi surgir do seio do oceano um longo objecto, informe e opaco. Aproximei-me da superficie do mar, esperando que este, no seu incessante impeto, o arrojasse á praia. Effectivamente, dentro de pouco tempo, examinava nas minhas mãos uma enorme garrafa, de amplo bôjo, que, a todos os respeitos, me parecera ter sido um echo disperso de algum naufragio recente. E não me enganei, com effeito. Abri-a, com todo o cuidado, e lá encontrei o curioso manuscripto, que vou hoje reproduzir textualmente, por o julgar digno d’isso.

É a vida d’um homem audacioso, encerrada no verbo da ambição, e sanctificada no prestigio da gloria!…

É possivel, minha mãe, que tenha esquecido o seu querido Ernesto? Dar-se-ha o caso, por ventura, que haja apagado na sua memoria a imagem da loura criancinha, que a fazia sorrir tão docemente n’aquellas horas de profunda tristeza, quando, cheia de virginal ternura e temeroso receio, pranteava na solidão a morte de meu chorado, bondoso pae?…

Oh!… não, não é possivel, mil vezes não!…

Pois bem, se assim é, se ainda vives, meiga visão da minha alma, ouve pela derradeira vez as palavras de teu desditoso filho, que de certo terá deixado de existir ao tempo em que receberes estas linhas, e sanctifica a sua desventura, n’este mundo, com a prece angustiada do teu coração atribulado.

Nada mais te peço, nem tão pouco ambiciono!

Desfolhou-se a ultima, sentida saudade da minha existencia: acolhe-a em teu seio; aquece-a muitas e repetidas vezes junto de teu peito, e acceita na pobre florinha emmurchecida o triste Evangelho da minha vida desventurada!…

 

I.

Ambição! é um sonho, uma phantasia, um enthusiasmo, uma centelha divina!…

Sonho de gloria, phantasia. povoada de innumeras chimeras, enthusiasmo heroico e magnanimo, centelha do céo, que prende os homens ás grandes emprezas, e arrojados commettimentos, arco-íris deslumbrante, no mundo das idéas e dos factos, tudo emfim!…

Ambição e gloria são os dois elos extremos d’essa cadeia indissoluvel chamada humanidade.

A mocidade é uma ambição sem limites.

Ter ambição é aspirar: um aspirar de continuo para a luz, para a vida, para o amor, para a virtude!…

Era dominado por estes e outros pensamentos, que eu muitas vezes sentia o vacuo da minha acanhada existencia; espraiava então, com avidez incalculavel, meus olhos inconstantes por sobre uma extensa clareira, que orlava um vastissimo pinhal, e lá, muito ao longe, por entre o verde negro da sua espessa ramada, descobria o quer que era de vago e reflexivo, que me seduzia instinctivamente.

Era o meu sonho quotidiano!

E tantas vezes se repetiram estas illusões, tornou-se tão frequente este somnambulismo das minhas faculdades, que prestes reconheci a necessidade de obedecer-lhe cega e fatalmente.

Cortar o espaço e o tempo,–voar, voar e voar muito!–tal era a idéa, que me dominava!

Em meio, porem, d’este magnetismo attrahente, vertiginoso, indizivel, languido, vaporoso, sentia eu um fio dourado, que me prendia á terra, um echo longinquo e salutar, que tentava acordar-me á realidade do mundo.

Era a doce voz de Therezinha, que me chamava,–era o anjo do amor, que estendia sobre mim suas candidas e mirificas azas de velludo.

Indescriptivel collisão! fadado momento!

Sem embargo, a minha aurora resplandecia-me no horisonte do futuro; acenava-me de longe a estrella do Senhor. Era necessario partir.

 

II.

Eu amava a liberdade; precisava de escolher um paiz livre!

A republica era o meu ideal!

A ave, que se agita nos ares, é livre em face do Creador Omnipotente; o homem pode e deve ser livre perante a lei,–imagem da justiça divina, lançada ao meio das sociedades actualmente existentes.

A existencia é a liberdade; o tumulo é o despotismo!

Livre é a flor, quando envia aos céos o aroma de suas douradas pétalas; a brisa é livre, quando beija o lyrio; é livre o passarinho, quando em haste vergada festeja o doce idyllio do crepusculo; é livre a humanidade, quando bafejada pelo sopro divinal das grandes idéas e sublimes principios!…

Por entre todas as nações do universo, a America sorria-me grandemente ditosa. Washington era para mim um planeta, aureolado de mystica luz; Franklin o seu majestoso satellite.

Um dia, quando menos o julgara, estava a milhões de passos da minha terra natal.

Singrei vastos mares.

E quantas vezes, minha mãe, veiu o teu doce anhelo contornar uma consoladora esperança em meu espirito perturbado! Oh! e quantas vezes, mimosa Therezinha, me veiu a tua imagem afagar o meu scismador enlevo! E como tu eras bella, então!…

Queres saber–nas horas da bonança, quando o nosso barco deslisava muito de mansinho, ao de leve, por sobre o crystal sempre agitado do oceano, em guisa de quem receia ser ouvido pelos milhares de espectadores, que se nos antolhavam n’aquelles raros momentos de inebriantes arrobos e mysticas harmonias,–eu imaginava ver-te entre nuvens, radiante de fulgor ingente, cingida a fronte alabastrina de rosas purpurinas, lyrios prateados, meigas violetas, opulentas camelias!

Depois vinha o desfazer das chimeras, e eu, a trasbordar de enthusiasmo, dizia de mim para mim:–«Ao menos, se um dia alcançar o que desejo, verei para sempre minha pobre mãe feliz, ao pé de mim, e Therezinha será o meu anjo custodio!

E vês tu, minha mãe, todos estes quadros se me desenhavam n’esta imaginação incendiada, quando ouvi subitamente a maruja no tombadilho levantar um brado compassivo e clamorosas imprecações.

Agitei-me violentamente, e corri ao logar do sinistro!

 

III.

É medonho, causa horror uma tempestade sobre o alto mar!

O vento sibilava, agudo e frio, por entre as enxarcias do navio. A embarcação rangia lugubremente no seu movimento vagoroso e desegual.

Era o mez de dezembro, aspero, severo, rigoroso!

Os membros confrangiam-se-nos, ao encarar tão luctuoso espectaculo; vacillava a imaginação, e a fé entibiava-se-nos poderosamente.

–Lastro ao mar!–gritava o capitão n’um tom rouquenho e cavernoso.

–Amaina, amaina essa escota!

E todos nós trabalhavamos com phrenesi espontaneo, e celeridade inaudita. A tripulação, quasi toda nua, era incansavel no seu incessante labutar. Não se ouvia uma queixa, um ruído sequer. Todos denunciavam o mais vigoroso esforço, a mais acrisolada virtude.

Apenas existia ali uma mulher com dois filhinhos achegados ao peito, que soltava de quando em quando um estridente e doloroso gemido, até que por fim cahiu de todo desfallecida. Era tamanho o perigo, que nenhum de nós ousou soccorrel-a em tão espinhosa attitude.

Pobre mãe! coitadinha!…

O vendaval abysmara-nos n’um precipicio inevitavel!

Todas as nossas diligencias sahiram frustradas; em vão foram as nossas orações!

Dois escaleres desceram ao mar; dividiu-se a gente do navio entre elles de tal modo, que cada um comportasse doze pessoas.

Depressa nos separámos uns dos outros, impellidos pelo vento, pela agua, pelo mar, pela força, emfim!…

Depois de muilo remar, muito luctar, muito soffrer, extenuados, exhaustos, sem vigor, sem alento, abordámos, finalmente, a uma ilha completamente desconhecida, que existe lá para as bandas do norte da America. Para ali nos rojámos nús sobre a fria areia, onde adormecemos poucos momentos depois: tal era a nossa debilidade!

No dia immediato, de seis companheiros, que haviamos escapado ás garras d’aquelle inquebrantavel tigre–chamado oceano,–apenas appareci eu, preso de pés e mãos, e rodeado d’um grande numero de selvagens, todos armados de settas e outras armas de egual quilate.

N’aquelle momento, receei muito pela vida; julgara-me entre gente anthropophaga!

 

IV.

Como a espuma do mar, impellida de praia em praia, assim se desvaneceram as minhas illusões ephemeras!

Reivindiquei para mim os direitos de homem livre, e tive a felicidade de ser bem acolhido no meio d’aquella gente inculta e rudemente educada. Eu era o monarcha d’aquellas solidões; amado, respeitado, e, mais que tudo, sinceramente incensado pelo thuribulo augusto dos mais atilados engenhos, que então nobilitavam aquellas ignotas paragens.

Um lampejo de felicidade, porem, é sempre acompanhado de atro penar e funesto mal-estar. Em redor d’um planeta faustuoso gravitam myriades de assoladoras estrellas.

Erin era um portento de formosura indiana: olhar escandecente e fatal, cinzelado por longa e avelludada pestana; o seu collo de perolas occultava-se debaixo d’uma farta e sumptuosa madeixa, que a tornava sobremodo angelica e donairosa; a cintura quasi se eclipsava, estreitada em esplendente faixa de valioso tecido; o gracioso pé, adelgaçado por eburneas sandalias, seria a inveja d’um cherubim. Dir-se-hia toda a opulencia do oriente ali profusamente derramada. E, além d’isto, animo varonil, imaginação de fogo, effervescencia de sangue nas veias; até a vegetação tropical parecera concentrar-se n’aquelle todo de luz e calor: a vida borbulhava de continuo n’aquelle pobre coração.

O vime fôra tão fragil, que não podéra ceder á violencia do tufão!

Erin amava-me com ardor. Era inextinguivel o incendio que lhe inundava a fronte, já de si escaldada pelos impetos d’uma paixão vulcanica.

A minha posição tornara-me sobretudo ridiculo. Nem sequer me occorreu um leve palliativo para attenuar aquelle manancial perenne de bons sentimentos e lisongeiro pensar.

Acima de tudo isto, porem, conservava ainda na memoria a imagem de Therezinha, os meus juramentos contrahidos, os meus protestos no porvir. Mentir assim á minha consciencia, doestar o meu pundonor, com tamanha aleivosia e escarneo da minha propria dignidade,–isso seria, além de tudo, um sacrilegio inaudito.

Conservei-me inabalavel á sinceridade das suas supplicas, aos seus rogos, ás suas lagrimas: tudo desprezei. Não havia demover-me de semelhante proposito.

 

V.

No entretanto a pyra fumegava já em larga extensão, e a hydra do ciume não tardaria de certo a levantar as suas cem igneas cabeças, para me esmagar e opprimir.

Dois annos de negro scismar e indifferente convivencia não foram ainda sufficientes para cicatrizar as ulceras d’aquelle extenuado corpinho e abençoado thesouro.

Erin tinha esperança de subjugar de vez o inimigo: melindrosa era a sua tarefa, e… quem sabe?… talvez inutil.

Após muitos e infructuosos assaltos, o baluarte conservara-se inexpugnavel. Tornara-se mister um derradeiro e definitivo recurso.

Um dia estava eu sinceramente absorto na contemplação d’uma agigantada palmeira, que se erguia altiva junto do meu silencioso casebre, procurando lêr, em cada uma d’aquellas espalmadas, longas folhas, o verbo omnipotente do Creador, e de seus esplendentes attributos,–quando vi a doce pallidez de Erin, estranhamente retratada na reverberação que produzia o sol, por entre as suas ondulações e constante sombrear. As contracções do rosto, o seu andar morbido e inconstante, o pestanejar de continuo e violento, a resolução impetuosa de seus braços,–tudo prenunciava tremenda catastrophe.

Entrou, rojou-se tragicamente a meus pés, e rompeu nas seguintes dolorosas imprecações:

–«Falle, diga-me agora aqui, porque me não ama? qual a razão por que me despreza? Ah! sim, comprehendo: sou pobre de mais, talvez, para saciar a sua medonha ambição; repugnam-lhe as minhas acções, não é assim? causa-lhe tedio olhar para mim! Oh! Coitado! Vai cessar o seu tormento; descance, jámais tentarei embargar-lhe os passos; termina, emfim, o meu aviltamento! A mulher vilipendiada vai desapparecer para sempre d’este mundo, em face de seu despotico amante! Derradeira gloria d’uma desgraçada!»

Neste ponto Erin, n’um acto de inabalavel resolução, descobriu seu ávido seio com a feroz menção de n’elle cravar um agudo punhal, que conservava energicamente apertado em sua pequenina mão.

Cresceu de ponto o meu denodo, que até ali havia permanecido impassivel ás suas palavras e lagrimas represas. Consegui arrancar-lhe o punhal das mãos e abrandar-lhe a sanha, que a devorava. Ella, vendo assim frustrados os seus esforços, cahiu em dolorosa prostração, sem dar accôrdo de si.

 

VI.

A mulher, que, esteiada na propria natureza, não pode captivar, recorre, por ultimo, ao artificio, como meio mais proprio e decoroso de attingir o seu fim.

Erin não podera abafar as luctas intimas do espirito. Devia de ser bem penoso o seu tormento! Ver esphacelar-se uma a uma as fibras mais intimas do coração; sentir o gottejar acerbo do gêlo da descrença e da iniquidade; viver tanto tempo atrelada ao pelourinho da ignominia, sem outro apêgo ás cousas d’este mundo, que não fosse um amor honesto, virtuoso, sublime,… contemplar, por longos annos, a lividez do proprio cadaver, arquejante, nervosa, moribunda!–que triste e grandioso luctar! que doloroso soffrimento!…

Como todas as mulheres, quando não vêem o seu amor egualmente correspondido, a joven indiana tocou o auge do desespero, da raiva, do odio, da vingança!

Estava preparada a victima; restava apenas o sacrificio!

No meio da minha virtuosa indifferença, mal julgara eu a dura sorte, que me estava reservada no futuro.

Erin aproveitou logo a occasião, que se lhe deparou mais opportuna, a fim de melhor e mais satisfactoriamente pôr em pratica um trama cavillosamente urdido e astuciosamente antecipado.

Sem dar treguas á sanha, que a dominava, entrou uma noite em minha casa, offegante, colérica, e nimiamente impaciente. Procurou mais uma vez convencer-me do seu amor, almejou ferir-me com o punhal da sua tyrannia, e tudo foi baldado: por ultimo quiz ver se despertava em mim a sensualidade pelos seus artificios, meneios e donairosos requebros, pela voluptuosidade do seu olhar ardente e libidinoso, resumindo, em fim, n’uma palavra, por tudo aquillo, de que uma mulher é capaz para excitar um amante profundamente amortecido, e glacialmente cynico.

Assim, pois, reconhecida e evidenciada a inutilidade de seus esforços, tomou ella uma derradeira deliberação, em nada somenos áquellas já por si anteriormente experimentadas. Com os cabellos desgrenhados, as faces afogueadas em colérico desespero, em andrajos, quasi núa, alucinada, doida, perdida, deu um pulo para fóra da porta, e começou a uivar, como uma fera, implorando soccorro, declarando-se deshonrada, para d’este modo provocar a morte d’um innocente, occultando a fealdade do seu crime!

 

VII.

Erin fôra evidentemente feliz no seu audacioso plano. Indiciado no crime, que foi geralmente acreditado, reuniram-se immediatamente os magnates da terra para deliberarem em commum sobre qual fosse a pena, que me deveria ser applicada.

Eu, encerrado na minha choupana, apenas sentia o borborinho d’aquella multidão selvagem, já de ha muito conglobada em redor da minha habitação, com sinistro intento e feroz vozear.

Ao cabo de algumas horas fui manietado e cautelosamente conduzido a um largo terreiro, onde costumavam suppliciar-se os inimigos, atando-os a um vetusto tronco, que expressamente ali existia para esse fim, e lançando-se-lhes depois as chammas aos corpos; as proprias cinzas eram arremessadas ao rio.

Comprehendi, desde logo, todo o alcance da minha injusta condemnação, e senti o gelido suor da campa a trespassar-me vagarosamente os membros do corpo. As lagrimas escaldaram-me as faces crestadas pelo ardôr da indignação; o desalento surgia a meus olhos com toda a hediondez de suas negras côres.

A Providencia, porem, houve por bem fazer-me a justiça de que era merecedor, enviando-me sagazmente o meu anjo custodio, o libertador das minhas agonias e soffrimentos.

Poucos dias antes de tão estranho successo, acontecera ter ancorado, defronte d’aquella ilha, por falta de munições, um navio inglez, que se destinava para os portos da America do Norte. O capitão, homem corajoso e profundamente temerario, sabendo, casualmente, que a minha proxima execução ia ter logar, não duvidou assaltar a ilhota, durante a noite, para me livrar das mãos dos meus detestaveis algozes.

Travou-se uma encarniçada peleja. Houve muitas mortes, e ferimentos de parte a parte. O capitão alcançou a palma da victoria, no meio d’um esplendido triumpho, e eu recuperei a minha liberdade, sendo levado para bordo do navio.

No dia seguinte a embarcação levantou ferro; e nós, propiciados por fresca viração, seguimos viagem para New-York.

 

VIII.

O acaso, o destino ou a fatalidade, levaram-me, finalmente, ao paiz da minha predilecção. Após longos annos de pacifico luctar e de evangelica resignação, foi-me dado livre ingresso nas terras do Colombo. Julgara ter attingido o zenith da felicidade e do bem-estar. Affigurou-se-me a entrada no paraizo, com as suas mil venturas, e delicias sem conto. Tal era a loucura, que me dominava!

As apparencias podem illudir o homem, por algum tempo; e feliz d’aquelle que as puder conservar. A realidade é negra como a noite. O desfolhar das illusões, o emmurchecer d’esse pequeno numero de florinhas solitarias, que, raras vezes, vegetam em redor da nossa alma, marca para a humanidade a crise mais tempestuosa e violenta,–o tremendo contraste entre a saudade e a esperança,–o sorrir da mocidade e as convulsões da velhice!

Suprema e eterna verdade!

O coração da juventude é um formoso, esplendido ninho, majestosamente entretecido de mil variegadas côres, onde se acoitam as mais ternas avesinhas do céo. A senectude, por seu turno, apresenta esse ninho desfiado, solto, disperso, e os passarinhos voando alegremente em cata de mais inspiradoras paragens. O mancebo, vivificado pelos raios da aurora, contempla o porvir, cheio de gaudio ingente; o velho, por entre as lagrimas da sua edade, olha o passado e entristece-se lugubremente… A primavera sorri-nos no berço infantil; o outomno vem, ainda mais, denegrir a algidez tumular!

A minha vida agitava-se alternadamente entre estes dois pólos distinctos e independentes. Cheguei a New-York, radiante de bellas aspirações e fulgurantes idéas. Procurei empregar-me honestamente: tudo consegui, sem difficuldade. O meu genio voluvel, porem, impellia-me constantemente para fóra d’aquella esphera, onde o trabalho se remunerava tarde e mal.

Dentro de pouco tempo, agrilhoado por uma ambição sem limites, e, mais que tudo, profundamente vulnerado pelo demonio do egoismo, tinha eu roubado o meu senhor, fugindo logo, espavorido e temeroso, para uma selva distante, onde procurei refugio entre uma quadrilha de bandidos, que, desde muito, ali haviam assentado a sua tenda de pilhagem e de nocturno assassinato.

 

IX.

Por muitos e longos annos durou a minha nefanda peregrinação n’aquelle terrivel deserto, onde não penetrava sequer um raio do sol. Occultos, durante o dia pela espessura do arvoredo,–aguardavamos tristemente o silencio da noite para dar largas á nossa voracidade famelica. Então, não passava pessoa alguma, por aquellas solidões tenebrosas, em quem não procurassemos, desde logo, embeber a esponja corrosiva do veneno e da maldição,–o cutello do algoz e do malvado.

Aviltante e funesta condição a minha! A principio o remorso levantava-se irado contra tamanhas torpezas e monstruosas infamias. Mais tarde a minha alma, já de si callejada no erro e no crime, nada mais quiz ouvir; empallideceu terrivelmente nas trévas, e nunca até hoje tornou a guiar os passos incertos da minha vida depravada.

Nada mais pungente e superiormente bestial do que locupletar-se um individuo qualquer com o ouro roubado aos seus semelhantes. O trabalho honesto nobilita o seu auctor. Procurar illicitamente um interesse, que nos não pertence, isso, além de ignominiosamente villão, toca ainda as balizas da perfidia.–Não ha necessidade que só de per si possa abonar satisfactoriamente semelhante corrupção e baixeza d’animo!

A despeito de tudo isto, porém, não duvidei iniciar os dias da minha vida social em tão rude aprendizagem e degradante profissão. E bem cruel me foi esse engano!

Dentro em poucos dias, do esterquilinio do vicio e da maldição havia eu passado, rapida e insensivelmente, para o fundo de medonha enxovia. A justiça humana, no seu incessante vôo, não despegara a vista do desgraçado cadaver, que, ainda no recondito de arida floresta, lampejava chispas de fogo amedrontador.

E tudo foi bem assim!

Ao vêr cerrar-se sobre mim a solitaria porta do carcere, que rangia lugubremente nos seus enormes gonzos de ferro, senti um movimento involuntario e repulsivo, e tive o pavor de quem vê seu peito ferozmente esmagado pelo duro pé do inimigo victorioso!

Então veiu a sacratissima imagem de minha mãe dulcificar-me o amargor da desventura. Lembrei-me de Therezinha. Erin, a bella indiana, de quem nunca mais tivera noticias, calou-me no espirito não sei que indefinivel sentimento, que me fazia antever uma felicidade duradoura, se, por acaso, não houvesse desprezado o seu immenso amor para comigo.

 

X.

Ao penetrar na escuridão do ergastulo julgara ter encontrado o meu epitaphio, assignalado, com letras de bronze, sobre a lousa sepulchral, que se me antolhava n’aquelle extenso e terrivel horizonte. Illudira-me, porém, o meu juizo. Havia-me Deus predestinado neste mundo para grandes e temerarias emprezas.

Por mero acaso, acontecera um dia ter eu lançado as mãos a um varão de ferro, que me interceptava a passagem para um longo claustro, por onde se me tornava facil a sahida para a rua. Recobrei alento, e não foram frustradas as minhas esperanças.

Coadjuvado por antigos companheiros, que haviam escapado milagrosamente ás garras da humana justiça, e com quem eu continuava ainda a nutrir relações de camaradagem,–púde aproveitar o silencio d’uma longa e tempestuosa noite de inverno para os fins a que me propunha.

Fui feliz no meu arrojado commettimento. Ás occultas consegui embarcar em um navio inglez, que se fazia de véla para a Europa.

Assim, no espaço de pouco tempo, abandonei o paiz dos meus sonhos tristemente desfolhados aos ventos do infortunio e de medonhas calamidades. E o certo é que, se não vinha tão rico, como de principio o havia imaginado, pelo menos trazia meios sufficientes para viver em Portugal, como capitalista de modesta apparencia.

Tudo isso se desfez, porém, ante a maxima desventura, que, neste instante, me aguarda terrivelmente.

A nossa embarcação jaz nas alturas da ilha de S. Vicente. O estado do mar é deveras assolador; não ha meio de resistir-lhe. Naufragio inevitavel! Estão talhadas as nossas mortalhas. Já a morte nos sorri satanicamente por entre a negra agitação do oceano. Lucta infernal! Que diabolico tufão! Meu Deus! meu Deus! Angustiadas lagrimas, sentidos suspiros, supplicas sinceras, fervorosas orações!… tudo em vão!… Não ha duvida: seremos devorados irremessivelmente pela sanha do mar! Que profundo abysmo nos espera! Como a esperança nos é ainda meigo amparo nesta hora extrema e funebre! E como estamos todos profundamente unidos pelo mesmo pensamento, pelo mesmo amor! Oh! Só Deus é infinitamente justo e bom! Emfim, estão lavradas as nossas sentenças! A redempção do céu, essa, só de ti a poderei supplicar, que decerto não deixarás de interceder na terra pelo descanço de teu desditoso filho. E adeus,… adeus,… para todo o sempre!… Uma sentida saudade para Therezinha, o anjo immaculado dos meus sonhos!… adeus… adeus!…

Eis o conteúdo d’este interessante manuscripto, no fim do qual estava assignado Ernesto, e era dirigido laconicamente a Maria dos Anjos, moradora no Porto, aos Clerigos. Após longas e infructuosas pesquizas, consegui saber que Maria dos Anjos era fallecida, tendo instituido por universal herdeira de seus bens a Therezinha, hoje noviça no convento de Arouca. Para lá foi remettida esta preciosa reliquia, e com ella a infeliz herança de seu esperançoso noivado. Por certo não faltariam lagrimas de bem viva saudade a orvalhar aquelle extremo legado d’um coração diluido nas grandes luctas d’um amor infindo e de constante tenacidade!

Antes assim!