(De Mauricio a Leonor)
Paris, 1860.
«Nem eu sei como relatar-te a minha viagem. Feliz teria ella sido, por certo, se te tivesse visto sempre a meu lado. Mas… não digo bem… a tua terna imagem acompanhou-me sempre. Na onda, que preguiçosa ia beijar a fulva areia; na estrella, que á noite scintillava nos céus; no espaço, que infinito se me antolhava; por toda a parte, emfim, meu anjo, a tua melancolica figura vinha sempre afagar a minha tetrica existencia, e contornar uns doces effluvios de amor no meu angustiado espirito.
Oh!… e quem me dera poder hoje abraçar-te, e depois n’um extasi delirante, dizer-te:–Leonor, benefica luz dos meus olhos; amo-te, adoro-te, sou teu. Mas um dia virá em que te poderei dizer desafogadamente:–agora, por toda a vida, meu amor, jámais me verás longe de ti!
Louco, que eu sou, na verdade! Insensato!… a dispôr do futuro, como se meu já fora. Embora! Deus é bom! Não sejamos incredulos! Elle, que na sua infinita bondade não esquece o desgraçado agonisante no leito da dôr, por certo não consentirá que uma negra nuvem venha toldar o puro azul do nosso céu.
Leonor, por quem és, envia-me o balsamo para as saudades que me opprimem o coração.–Mauricio.
CARTA 2.ª
(Resposta de Leonor)
Bemfica, 1860.
«A tua carta veio encontrar-me agonisando nas vascas d’uma paixão febricitante.
Um dia sorriu-me o oasis mimoso no deserto da vida, acerquei-me d’elle extenuada de fadiga, e com o meu pobre coração dilacerado por uma lucta gigante, que me fôra impossivel evitar. Julgava ser aquelle o alento para proseguir na minha espinhosa tarefa!… Illusão!… Sinto-me fraca, e não sei se terei forças para resistir ás agitações febris que hoje me dominam.
Pede a Deus, meu bom amigo, me prolongue os dias da existencia, para poder abraçar-te mais uma vez ao menos, e morrer depois com a consolação derradeira do moribundo, que vê junto do seu leito o vulto venerando do presbytero, amenisando-lhe a algidez do sepulchro com a uncção da sua divina prece.
Lembra-te sempre da tua amiga, que, ao longe, vela por ti dia e noite.–Leonor.»
CARTA 3.ª
(De Mauricio a Leonor)
Paris, 1860.
«Não sei como communicar-te o temor violento, que se apoderou da minha debilitada existencia ao ler e reler a tua carta. Aquellas linhas, dictadas pela fatalidade poderosa do amor, e escriptas por tua angelica mão, que tantas vezes beijei com o anceio de largas esperanças no futuro, compungiram-me profundamente.
Justamente, quando o meu espirito allucinado procurava o calix da ventura para docemente o libar, veiu a desdita sentar-se ao lado, e involver-me no luto de medonha desesperança.
Meu Deus! meu Deus! Quanto a vida é cruel, sem uma esperança fagueira que nos alimente os sonhos radiosos do porvir! Quão duro é de tragar o absintho d’esta existencia ephemera!
Porque será que o espirito do homem é tão possante librando-se nos vôos d’uma phantasia ardente; e cahe depois prostrado pela vertigem das paixões no mais temeroso de todos os precipicios?
Insondaveis são os arcanos do Creador!
A esperança vivifica; o amor martyrisa!
Podesse ao menos o holocausto do meu doloroso soffrer resgatar os dias sanctificados de Leonor, e eu satisfeito deporia a minha cruz, orvalhada pelas lagrimas de eterna saudade.
A ventura é um anceio febril em espiritos privilegiados. Mas a ventura é uma vaidade, uma chimera, entrecortada, apenas, pelas alternativas radiantes de melhores horisontes!
Feliz o homem que tem fé; porque a fé, para almas bem formadas, é a agua redemptora do seu baptismo.
Porém o homem, que sente o gêlo da descrença no seu coração; o homem, que não pode evitar a peçonha corrosiva do cynismo e da perversidade; esse homem é um desgraçado, um miseravel, como muitos, que a sociedade escolhe para instrumento da sua implacavel vingança, e opprobrio da humanidade!!
E quem me permitte ajuizar da minha virtude?…
Só Deus o sabe, meu anjo, quanto é leal e verdadeiro o pranto acerbo, que derramei ao saber da tua sentida doença.
Possa, emfim, o Senhor ouvir a sinceridade da minha supplica, e fazer descer sobre ti o anjo da felicidade e do amor.–Mauricio.»
CARTA ULTIMA
(De Leonor a Mauricio)
Bemfica, 1860.
«Apezar da expressa prohibição dos medicos de me evitarem tudo o que possa prejudicar o meu estado melindroso de saude: não pude, ainda assim, furtar-me a um desejo imperioso de me associar ao teu pezar, mitigando-o, no caminho espinhoso do meu Golgotha.
É uma expiação, que a mim propria imponho, sem outro galardão, que não seja a retribuição do teu entranhado affecto.
As lagrimas têm um condão mysterioso. Adoçam a adversidade terrestre, com a consolação extrema d’um futuro incerto. Assim eu podesse encontrar n’ellas o topico provavel para a medonha enfermidade moral que hoje me devora.
Tudo creio impossivel.
Só a tua presença me poderia ser, talvez, refrigerio momentaneo para o meu aturado martyrio, e doloroso esquecimento.
Regressa, portanto, á patria, meu bom amigo. Vem engrinaldar a fronte da esposa com as flores amarellecidas do sepulchro, e prestar um derradeiro tributo áquella que te amou na terra com o fervor da virgem e pureza dos anjos.
Só Deus poderá abençoar o nosso amor!…
Não posso mais,… Mauricio… Sinto-me desfallecer sensivelmente.
Adeus… adeus, e talvez… para sempre.–Leonor.»
Inutil se tornaria aqui dizer, que Mauricio obedeceu peremptoriamente ás ordens de sua saudosa noiva, tomando bilhete para o primeiro vapor com escala por Lisboa.
Fôra, porém, intempestiva a sua viagem.
Quando chegou a Bemfica, encontrou a nudez e a solidão enthronisadas no solio, onde deveria ter existido o jubilo e a gloria de dois amantes ditosos.
Leonor havia desapparecido para sempre d’este mundo!…
O anjo da morte, extendendo suas negras azas sobre aquelle coração de pomba, arrebatou-o para sempre á humanidade.
Eclipsou-se no céu uma estrella, e da terra voou um anjo á mansão dos justos!
Mauricio libou até ás fezes o calix do infortunio.
Aquelle amigo verdadeiro e fiel; aquella intelligencia robustecida á luz da profunda meditação; aquelle coração de poeta; aquella imagem continuamente açoutada pelo tumultuar de sentimentos encontrados, onde meigamente vinha transparecer a morbidez e o desalento d’uma paixão precoce,–nunca mais transpoz o limiar da casa de Bemfica, que outr’ora pisava, sentindo a vida a rejuvenecer-lhe a cada passo.
Ainda houve quem o visse, um mez depois, com as faces pallidas, os olhos cadavericos e um semblante sepulchral.
Não era passado muito tempo, quando Cecilia recebeu uma carta de seu sobrinho, concebida nos seguintes termos:
–Minha excellente tia.–Ao deixal-a em contristante e dolorosa desolação, tendo-se associado á dôr e orphandade do espirito, como unicas companheiras, que lhe restavam no areal sombrio da vida, era mais do que dever d’um filho allivial-a, quanto em si coubesse, dos transes medonhos e caprichos da sorte, por que acaba de passar o seu bondoso coração.
Porém, minha tia, se neste mundo pode haver perdão para um desgraçado, conceda-lh’o.
Já a meus pés se abre o abysmo incommensuravel do cynismo e da descrença, que dentro em pouco me ha de absorver.
Haverá muito quem me censure, chamando-me–louco!
Louco!… porque não soube abafar a palpitação febril d’um sentimento elevado e nobre!
Louco!… porque não tive a resignação, para oppôr ao marulhar tremendo das vagas da desventura!
Louco!… porque cri na sanctidade do amor; ajoelhei perante um archanjo celeste, e senti o fogo da inspiração a enroscar-se-me voluptuosamente pelos membros!
Louco, emfim, porque soube desprezar a imbecillidade dos homens pelo gozo ineffavel d’uma ventura celeste!
O suicidio é a suprema aspiração d’uma imaginação sublimemente grandiosa, que, não podendo suster o vôo audacioso a que se arrojara, se despenha fatalmente no oceano do nada.
E a resignação o que é?…
A immobilidade physica e moral, uma profunda negação do ser humano, e uma violação flagrante dos verdadeiros sentimentos.
O homem, que vê o seu nome malbaratado, a sua honra vilipendiada; sem ter uma mão caritativa, que lhe sirva de luz por entre as fragas estereis da vida; sem mesmo um refrigerio para as chagas do seu pobre coração; sem uma esperança, ao menos, que lhe acalente os sonhos radiosos do existir durante o correr tempestuoso, que vai do berço á sepultura: esse homem, digo, descrê da Providencia; torna-se cynico; e vai buscar na ponta d’um punhal aquillo que não pôde encontrar no meio d’essa sociedade estulta e devassa.
E, ainda haverá quem condemne o suicidio?!…
Condemna-o, sim, a mediocridade, porque o não comprehende; porque lhe é mesmo impossivel conceber a lucta gigante que se trava a cada passo nos espiritos altaneiros entre a razão e a vontade,–duas faculdades de que depende toda a nossa vida e bem-estar terrestre.
Por isso, minha bondosa mãe, e deixe-me chamar-lhe assim nos ultimos instantes do meu passamento neste mundo, abençôe pela derradeira vez o seu desgraçado filho, que sem saudade abandona este theatro maldito, para ir tributar perante o throno do Altissimo o sanctuario das puras affeições e leal obediencia.
Adeus, minha desvelada mãe, e adeus para sempre. Não descreia do seu filho, e lembre-se que só no céu se poderá encontrar a remuneração condigna ás virtudes mundanas.–Mauricio.
Cecilia ficou como que petrificada, ao receber o golpe inesperado, que lhe causara a carta de Mauricio. Desvairada pelo infortunio, assaltada por uma visão sinistra e cruel, aquella extremosa mãe vendeu a sua casa em Bemfica, que lhe era recordar amargo d’uma felicidade radiante e fallaz, e recolheu-se a um convento, onde vive ainda hoje, acompanhada pela resignação, e alimentada pela virtude esperançosa de que um dia se irá reunir no seio do Creador áquelles dois martyres bemaventurados, a quem o vulcão das paixões sorveu para sempre na sua cratera de fogo.