Arcades ambo!

Está certo do que affirma? Veja lá!… A policia não gosta de representar papeis tristes, e um erro nas circumstancias actuaes póde ter consequencias… Repita! Viu os homens? Sabe o seu intento?…

―Vi, sim senhor! Largava a falua quando eu cheguei, e por um triz me não apanham!… Sempre curti um medo! A gente não ganha para sustos…

―Está bom! E como soube que vinham para a revolução, que os inimigos de sua magestade o imperador e rei tramaram para ámanhã durante a procissão do corpo de Deus? Olhe bem! Não se allucine…

―Não ha engano, não senhor. Aqui trago quem ouviu tudo. Gaspar, chega-te! S. ex.ª dá licença. Dize para ahi o que saccaste do bucho ao alarve do Paulo Penedo, e o que ouviste na Ponte da Asseca.

―Ah! Este homem ouviu?!… Bem! Então que fale.

O dialogo, que estamos escutando, tinha-se travado, como o leitor já percebeu de certo, entre o intendente Lagarde, o sargento Cabrinha, e o seu assessor Gaspar Preto.

Os honrados malsins, farejando a denuncia lucrativa, corriam de Villa Franca, aonde se haviam transportado a cavallo, e traziam nos alforges nada menos do que uma boa conspiração para attrahir sobre si a chuva de ouro, com que o ministro francez costumava recompensar os serviços relevantes dos seus agentes.

Ainda que o sargento desempenhasse o papel principal, manda a verdade que se diga, que a gloria do descobrimento pertencia de direito ás longas e afiadas orelhas do seu digno assessor. Fôra o Sapo, apezar de meio homiziado depois da prisão de Paulo de Azevedo, devida, como sabemos, á sua traiçoeira actividade, quem, espreitando os passos do Antonio da Cruz e do João da Ventosa, e as idas e voltas nocturnas dos embuçados, que frequentavam a casa arruinada da Ponte da Asseca, principiára a desconfiar de que as ruidosas cavalhadas das almas do outro mundo nas salas desertas do palacio encobriam planos politicos.

Para melhor se certificar, provou Gaspar, que não roubára a alcunha por que era conhecido.

Cozeu-se, como o Sapo, com as pedras caídas, que do lado da porta do João da Ventosa pegavam com o tapume, por onde elle introduzia as visitas, segundo vimos atraz, nos quartos do primeiro andar, penou frios e fomes, tiritou de mêdo mais de cem vezes, mas por fim conseguiu o seu fim.

Seis dias antes da festa do Corpo de Deus, ás onze horas da noite, por um luar esplendido, colheu em flagrante tres dos fantasmas, que tanto desejava avistar, e teve a rara felicidade de os conhecer a todos.

Viu-os entrar. Ficou firme no seu posto. A divindade protectora dos mexericos segredava-lhe que se os olhos tinham alcançado muito, os ouvidos ainda podiam obter mais. A sua paciencia merecia premio, e o demonio, cujo era, não lh’o negou.

Quando se ía já sentindo quasi inteiricado de jazer enroscado, como a serpente, os conspiradores saíram. Principiava a aclarar a madrugada. Um d’elles, o capitão de milicias de Rio Maior, dotado de uma voz de baixo profundo, voltando-se para os outros, disse-lhes:

―Façam-me uma fogueira bem vistosa lá pelos sitios de Leiria, e assem-me n’ella esses hereges e jacobinos, que os de aqui ficam por minha conta! Não havemos de ser menos que os de Bragança e Villa Real! Viva o principe regente, nosso senhor!

Os poderes do orgão vocal do herculeo capitão eram tão extensos, que este desafogo innocente do seu patriotismo seria assaz perigoso, se a solidão e a noite o não cubrissem. Entretanto os amigos, menos intrepidos, recommendaram-lhe prudencia, e o gigante, docil como uma creança, submetteu-se, encolhendo os hombros, a estes conselhos timidos. O morgado de Penin e outro cavalheiro apartaram-se então um pouco. Quiz o acaso que fosse para o lado, justamente, em que o virtuoso Gaspar se occultava; e o terror do malsim subiu tal ponto, que esteve um instante para o trahir!

Vendo de repente o Antonio da Cruz, o João da Ventosa, e o Manuel da Aramanha, o resurgido, tão proximos do seu covil, que bastaria um d’elles extender o braço para o agarrar, não foi senhor de si. Vinham atraz dos personagens principaes, e tudo inculcava que não vinham por curiosos. O Sapo, frio de neve, e todo um calafrio de medo, ennovellou-se n’uma bola para occupar menos espaço, e fez a Nossa Senhora da Saude a promessa solemne de uma missa e de uma perna de cêra se permittisse, que nenhum dos cinco désse com elle alapado n’aquella toca, seguro de que, se escapasse por milagre ao alentado varapau do ex-assassinado fazendeiro, a bala da espingarda, que o moleiro trazia ao hombro, não o erraria de certo em nenhum caso.

Os conspiradores estavam longe de se supporem espiados, e traziam outros cuidados.

Voltando-se para Antonio da Cruz, o morgado disse-lhe:

―Já sabes! No dia de Corpo de Deus has-de estar em Lisboa. És lá preciso!

―Se meu amo mandar!

―De certo. Mas sei que manda. O Paulo Penedo não tarda com as ordens… E você, sôr João da Ventosa, deixa-se ficar por cá, ou acompanha tambem o Antonio á côrte?

―Eu, sôr morgado, lá por ir, ia; mas assim sem saber o que a gente lá vae fazer?!…

―Ora! Vae dar um passeio, vêr a procissão, que se despovoam aldêas e logares para accudir a ella… e depois!… Adivinha-me este dedo, que o seu cajado talvez não fique por lá parado!… Gosta dos francezes?…

―Como o diabo da cruz, senhor! Pelo amor que lhes eu tenho… e o bem que me fizeram!…

―Pois vá, homem, que póde ser que não perca o seu tempo. Ás vezes d’onde menos se espreita sae coelho…

―V. s.a que diz isso!… Está bom. Não é preciso mais. Senhor mandar, preto obedecer!… E tu, Antonio Simões, estás ahi sem atar nem desatar? Porque não vens com o Antonio e commigo á festa? Tens medo dos francezes, homem?

―Salva tal logar, sôr compadre! Mas que quer você que eu vá fazer á côrte pregado no meio das ruas como uma estaca? Com mil cobras? Se por lá bispasse o alma ruin do sargento, ou aquelle excommungado Sapo, ainda, ainda; mas qual! sumiu-se a terra com elles!…

―Qual sumiu! Aposto um almude dobrado contra duas canadas singelas em como as duas osgas estão pegadas em alguma parede de Lisboa…

―Veja lá, sôr compadre! Se tem palpite n’isso é outra cousa: pernas a caminho. N’um sopro deito o albardão á égua… Não morro quieto se não racho de meio a meio aquelles dois patifes.

―O Sapo fica por minha conta, atalhou o moleiro. Prometti-lh’o e hei de cumprir. Você, sôr João, que me diz da figueira de José Lopes, alli em cima, no alto do logar?

―Ora essa! Que é boa arvore. Porque?…

―Pois juro-lhe que dá figos de enforcado para o anno. Antonio me não chame eu se não pendurar do pescoço em um dos ramos o judas do Gaspar Preto antes do dia do natal!…

―Você sempre tem cousas, sôr Antonio!

―Vá com o que lhe digo. De mais, pouco ha de viver quem o não vir.

―Então, rapazes? atalhou o morgado, que estivera conversando a meia voz durante o colloquio dos tres. Quem vae a Lisboa?…

―Saberá v. s.a que nós todos tres!

―Ora assim é que é. Gosto de os vêr de feição. Bebam por lá um copo, ou dois, de vinho á minha saude, e outro á do principe regente, nosso senhor, o qual, querendo Deus, muito cedo teremos n’estes reinos para gloria da patria e da santa religião!…

E o morgado, assim como o E o morgado, assim como os ouvintes, desbarretaram-se com toda a reverencia como bons catholicos e vassallos fieis e respeitosos.

―Adeus, Antonio, proseguiu. Recados a teu amo! Diz-lhe que nós cá estamos, e que o que fêr soará. Sôr João! Volte depressa. A caldeira está ao lume, ha de ferver, e póde ser necessaria a casa…

―Quando v. s.a mandar, sôr morgado.

―Olhe! Se no meio da procissão, ou depois, houver algum barulho, não me metta as mãos nas algibeiras. Dê-lhes com alma, desanque-me os jacobinos moa-m’os como farinha, hein?…

―Vá v. s.a descançado.

―Vou! Vou! Vocês não deixam mal o Ribatejo. Até á volta. São horas.

Os tres de fóra foram buscar os cavallos, e d’ahi a pouco desappareciam a galope pela Ponte da Asseca. O lavrador e os seus amigos recolheram-se tambem logo. D’ahi a instantes resonavam a somno solto.

Quem não tinha vontade de dormir era o Sapo, o qual, arrastando-se do esconderijo, fulo de terror, respirava a custo, estirando os braços, mais morto do que vivo.

A ameaça do Antonio da Cruz soava-lhe nos ouvidos como um dobre funebre, e por vezes sentia já em imaginação os gorgomillos tão apertados como se lh’os estreitasse a promettida e fatal corda!

A reputação merecida do moleiro de não quebrar palavra dada fazia-o de mil côres, e a voz da consciencia, que só o susto tinha o condão de accordar de véras, advertia-lhe, que provocára, não uma, porém cem vezes, o castigo.

Não vendêra elle ao sargento o segredo do asylo em que se homiziava Paulo de Azevedo, abusando da hospitalidade de Antonio da Cruz, o qual, tendo-o poupado, o julgára grato? Não fôra causa da prisão do Cavalheiro de Mafra, da magoa de Leonor, e do desespero de Manuel Coutinho? Agora mesmo, não colhêra um segredo, que podia custar a vida e a liberdade a tantas pessoas?

Gaspar era logico. Convencido de que a sentença proferida era irrevogavel, tractou de se eximir aos seus rigores pelos meios usuaes, isto é, accumulando novas traições. Coxeando e rastejando partiu para a villa, aonde amanheceu á porta do sargento, cuja cholera exacerbada pela certeza de ter servido de alvo á irrisão na famosa noite dos fantasmas, soube artificiosamente exaltar. O Sapo acabou de o petrificar, narrando-lhe as ameaças do Antonio Simões da Aramanha, e o plano, interceptado por elle, de grandes tumultos em Lisboa durante, ou depois da procissão do Corpo de Deus.

A noticia valia o seu pezo em ouro, e Cabrinha decidiu-se a ser em pessoa o portador d’ella.

A chegada de Paulo Penedo, emissario de Manuel Coutinho para chamar o moleiro em seu nome á capital, confirmou as informações do agente. Gaspar, a troco de pão, queijo, vinho, arrancou sem difficuldade ao camponez boçal quanto elle vira e ouvira do patrão em Lisboa. Separou-se, deixando-o convencido de que o amante de Leonor de Azevedo não tinha mais leal amigo.

Depois d’esta ultima proeza, os dois malsins começaram a jornada até Villa Franca, aonde haviam de embarcar, o sargento ardendo em impaciencia de cingir na fronte os louros, e de sepultar no bolso as peças de 7$500, que Lagarde não cisava aos que o serviam zelosamente: o Sapo, cujas vigilias eram cada noite mais tormentosas, acompanhando o patrono a Lisboa, primeiro para se afastar o mais possivel da figueira do alto do Valle, depois, para ter o gosto de vêr mettidos na enxovia do Limoeiro, graças á sua honrada lingua, o Antonio da Cruz, o João da Ventosa, e o Antonio Simões.

Já os ouvimos confessar ao intendente da policia, que por um instante não caíram na bôcca do lobo em Villa Franca, e encontrando-os no gabinete do ministro, no exercicio de suas funcções, convem notarmos, que tinham sido activos no desempenho da sua missão, como homens fieis aos interesses proprios, e devotos da causa que abraçavam.

Lagarde escutára com attenção o depoimento lucido e conciso, que o Sapo, sem trepidar, lhe recitou, como licção aprendida de cór, admirando a prodigalidade, com que a natureza favorecêra este ente quasi disforme e rachitico, que, encarado á primeira vista, não promettia, senão fraqueza e estulticia.

Depois de tomar algumas notas, consultando um, ou dois papeis, e tornando-os a encerrar nas gavetas do bofete, o intendente conservou-se silencioso por momentos, scismando profundamente.

―A conspiração existe, dizia elle comsigo. Aqui estão as provas d’ella; mas quem ha de persuadir o duque, e vencer o seu amor proprio? A leitura d’aquelle maldito plano atrazou-nos!… Não importa. Deixal-os rir! A mim compete-me velar para que riam sem perigo.

Virando-se depois para os agentes, que aguardavam calados as suas ordens, acrescentou:

―Sargento! Estamos na pista de um trama complicado. Fique em Lisboa com este homem, e procure hoje de tarde o meu secretario Loisy. Elle lhe dirá o que ha de fazer.

Estas palavras, e o gesto do ministro avisaram os dois, de que a audiencia estava terminada. Saíram logo, mas ainda Lagarde não tinha tido tempo de percorrer com os olhos um papel, que acabavam de lhe entregar, abriu-se uma porta particular, e entrou no escriptorio um mancebo, de rosto jovial, vinte oito annos de edade, e figura esbelta, realçada pelo uniforme de official de cavallaria, trajado com garbo. Era seu sobrinho Armand de Aubry.