Bem, eu declaro, que ali está um par de galochas,” disse o vigia. “Com certeza, eles pertencem ao tenente que mora no andar de cima. Elas estavam bem perto da porta da casa dele.” O bom homem teria feito questão de tocar a campainha, e as teria entregue, pois um lampião ainda estava queimando, mas ele não queria incomodar as outras pessoas da casa, portanto, deixou que eles dormissem. “Isto deve manter os pés muito quentes,” disse ele, “elas são feitas de couro macio e de boa qualidade.” Então ele as vestiu, e elas couberam certinho em seus pés. “Ora,” disse ele, “como são engraçadas as coisas neste mundo! Aqui vemos aquele homem que pode se deitar em sua cama quentinha, mas não está fazendo isso. Lá vai ele andando para cima e para baixo dentro do quarto. Ele deve ser um homem feliz. Ele não tem nem esposa, nem filhos, e ele sai acompanhado todas as noites. Oh, como gostaria de ser ele, então eu seria um homem feliz.”

Assim que ele enunciou este desejo, as galochas que ele tinha colocado começaram a fazer efeito, e o vigia imediatamente se tornou o tenente. Lá ficou ele em seu quarto, segurando um pequeno pedaço de papel cor de rosa entre os dedos, no qual havia um poema, — um poema escrito pelo próprio tenente. Quem nunca teve, pelo menos uma vez em sua vida, um momento de inspiração poética? Os versos seguintes estavam escritos sobre o papel cor de rosa:—

“Oh se eu fosse rico!

“Oh se eu fosse rico! Quantas vezes, nos tempos da minha bela juventude,

Quando as alegrias de jovem afugentavam as preocupações,

Sonhava com riquezas e com a conquista de poder,

Usando a espada, a pluma e um uniforme!

As riquezas e as honras vinham para mim;

No entanto a pobreza era minha maior riqueza:

Ah, me ajudai e tende piedade de mim!

“Uma vez, nos dias de minha juventude, que eram alegres e livres,

Uma jovem me amou; e seus doces beijos,

Ricos em ternura, amor e pureza,

Me ensinaram muito, ó que infortúnio! sobre a felicidade terrestre.

Pobre garota! Ela só pensava na alegria juvenil;

Ela não amava a riqueza, apenas os contos de fada e a mim.

Ficai sabendo: ah, e tende piedade de mim!

“Oh se eu fosse rico! e para isso volto a rezar:

Aquela menina é agora uma mulher, livre e bela,

Como bons e belos são os anjos.

Oh, se eu fosse rico na poesia dos que amam,

Para contar meu conto de fadas, conceito mais puro de amor!

Mas não; devo ficar em silêncio — porque sou pobre.

Ah, tende piedade de mim?

“Oh se eu fosse rico na verdade e na paz,

Não precisaria ficar lamentando a pobreza.

A ti dedico as linhas desta dor;

Porventura, conseguirás entender este conto triste?

Uma folha onde relato os meus pesares —

Uma história sombria, de uma noite mais sombria do destino.

Ah, abençoai-me e tende piedade de mim!”

“É assim mesmo, as pessoas escrevem poemas quando estão apaixonadas, mas uma pessoa sábia jamais irá imprimí-las. Um tenente apaixonado e pobre. Este é um triângulo, ou, falando de modo mais apropriado, metade do dado da sorte de uma felicidade incompleta.” O tenente sentia isso de modo muito profundo, e, portanto, apoiou sua cabeça contra a estrutura da janela, e suspirou profundamente. “O pobre vigia da rua,” disse ele, é muito mais feliz que eu. Ele não sabe o que eu chamo de pobreza. Ele tem um lar, uma esposa e filhos, que choram a sua tristeza e se regozijam com a sua felicdade. Oh, como eu seria muito mais feliz se eu pudesse trocar a minha situação pela dele, e passar a vida com suas humildes expectativas e esperanças” Sim, de fato, ele é mais feliz do que eu.”

Neste instante, o vigia voltou a ser vigia, depois de ter vivido como tenente, com as galochas da felicidade, e ficou menos satisfeito do que esperava, pois preferia sua condição anterior, e desejou ser de novo um vigia. “Esse foi um sonho ruim,” disse ele, “mas muito estranho. Me pareceu como se eu fosse o tenente lá de cima, mas eu não era feliz. Sentia falta de minha esposa e dos meus filhos, que estão sempre alegres, e me sufocam com seus beijos.” Ele voltou a sentar e balançou a cabeça, mas não conseguia tirar os sonhos da cabeça, e ainda tinha as galochas nos pés. Uma estrela cadente reluzente atravessava os céus naquele instante.

“Ela foi embora!” disse ele. “No entanto, restam muitas ainda, eu gostaria de examinar estes objetos mais de perto, especialmente a lua, pois ela não conseguiria escapar de nossas mãos. O estudante, para quem minha esposa lava roupas, diz que quando a gente morre, nós ficamos viajando de uma estrela para outra. Se isso fosse verdade, isso seria muito maravilhoso, mas não acho que isso seja possível. Gostaria de poder dar um pulo até lá em cima agora, enquanto meu corpo ficaria deitado aqui nos degraus desta escada.”

Há certas coisas no mundo que devemos anunciar com muito cuidado, principalmente, quando aquele que fala estão com os seus pés dentro das galochas da felicidade. Vamos saber agora o que aconteceu com o vigia.

Quase todo mundo está familiarizado com o grande poder do vapor, e provamos isso com a velocidade com que conseguimos viajar, tanto sobre trilhos como num barco atravessando os mares. Mas esta velocidade é como os movimentos da preguiça, ou como a lenta caminhada de um caracol, quando comparados com a rapidez que a luz viaja, a luz viaja dezenove milhões mais veloz que o cavalo de corrida mais rápido, e a eletricidade é ainda mais veloz. A morte é um choque elétrico que recebemos em nossos corações, e nas asas da eletricidade as almas libertas voam para a eternidade muito rapidamente, a luz do sol viaja até a nossa terra noventa e cinco milhões de milhas[5] em oito minutos e alguns segundos, mas nas asas da eletricidade a mente requer somente um segundo para realizar a mesma distância. O espaço entre os corpos celestiais é, para o pensamento, não muito maior que a distância que nós temos de percorrer da casa de um amigo até uma outra na mesma cidade, no entanto, este choque elétrico nos obriga a usar nossos corpos aqui embaixo, a menos que, assim como o vigia, tenhamos as galochas da felicidade.

Em questão de pouquíssimos segundos o vigia viajou mais de duzentas milhas até a lua, que é formada por uma material mais leve que o da nossa terra, e pode se dizer que seja tão macio como a neve que acabou de cair aqui agora. Ele esteve numa dessas faixas circulares de montanhas que podemos ver representadas num grande mapa da lua do Dr. Madler. O interior tinha o aspecto de um imenso buraco, com o formato de uma tigela, com uma profundidade aproximada de meia milha a partir da borda. Dentro deste buraco havia uma grande cidade, podemos ter alguma ideia de sua aparência jogando a clara de um ovo dentro de um copo de água. Os materiais de que ela era feita parecia tão macio, e formavam torres nebulosas e terraços com formatos de velas de navios totalmente transparentes, e que flutuavam no ar diáfano. A nossa terra pairava sobre a sua cabeça como uma grande bola vermelha escura.

Na verdade, ele descobriu alguns seres, que certamente poderiam ser chamados de homens, mas que eram muito diferentes de nós mesmos. Uma imaginação mais fantástica que a de Herschel deve ter descoberto isto. Se eles tivessem sido agrupados, e pintados, poderia se dizer: “Que folhagem maravilhosa!” Eles tinham também uma linguagem própria. Ninguém poderia esperar que o espírito do vigia pudesse entendê-la, e no entanto, ele a entendia, pois as nossas almas possuem capacidades muito superiores as que estamos inclinados a acreditar. Não revelamos algumas vezes em nossos sonhos um fantástico talento dramático? Cada um dos nossos conhecidos aparece então diante de nós em seu próprio personagem, e usando a própria voz, ninguém conseguiria imitá-los em suas horas de vigília.

Como nos lembramos com tanta clareza de pessoas que não vemos há tantos anos, elas aparecem de repente para os olhos da mente com todas as particularidades, como realidades vivas. Na verdade, esta memória da alma é uma coisa assustadora, todo pecado, todo pensamento escabroso pode ser trazido de volta, e podemos querer saber como é que conseguiremos dar conta “de toda palavra ociosa” que possa ter sido sussurrada no coração ou pronunciada com os lábios. O espírito do vigia, portanto, entendia muito bem a linguagem dos habitantes da lua[6]. Eles estavam discutindo sobre a nossa Terra, e duvidavam que ela podia ser habitada. A atmosfera, diziam eles, era muito densa para que qualquer habitante da lua pudesse viver lá. Eles acreditavam que apenas a lua poderia ser habitada, e era realmente o corpo celeste onde os povos do velho mundo viviam. Eles também gostavam de falar sobre política.

Mas agora, nós vamos descer até a Rua Oriental, e ver o que aconteceu com o corpo do vigia. Ele estava sentado sem vida nos degraus. Alguns objetos haviam caído de suas mãos, e seus olhos estavam voltados para a Lua, na qual vagava sua alma sincera.

“Que horas são, seu vigia?” perguntou um transeunte. Mas não houve resposta do vigia.

O homem então, puxou o seu nariz suavemente, o que fez com que ele perdesse o equilíbrio. O corpo caiu para a frente, e ficou deitado no chão de comprido como se fosse morto.

Todos os seus companheiros ficaram muito assustados, porque ele parecia estar totalmente morto, eles ainda deixaram que ele permanecesse daquele jeito, depois de terem espalhado a notícia sobre o que tinha acontecido, e ao amanhecer, o corpo foi levado para o hospital. Poderíamos imaginar que não seria uma coisa engraçada se o espírito do homem voltasse para ele repentinamente, pois, provavelmente ele procuraria o corpo na Rua Oriental, não sendo possível encontrá-lo. Poderíamos imaginar o espírito perguntando à polícia, ou no endereço do escritório, ou entre as prestações que faltam para o pagamento, e então, finalmente, encontrando-o no hospital. Mas podemos ficar tranquilos com a certeza de que a alma, ao atuar sobre os nossos impulsos, é mais sábia do que nós, é o corpo que a torna estúpida.

Como já dissemos, o corpo do vigia tinha sido levado para o hospital, e ali ele foi colocado num quarto para ser lavado. Naturalmente, a primeira coisa a ser feita aqui seria a retiradas das galochas, e então a alma seria obrigada a retornar instantaneamente, e ela tomaria o caminho direto até o corpo imediatamente, e em alguns segundos a vida do homem retornaria para ele. Ele declarou, quando ele se recuperou totalmente, que esta tinha sido a noite mais assustadora de sua vida, nem por uma centena de libras ele voltaria a experimentar tais sentimentos novamente. Todavia, tudo já havia acabado.

No mesmo dia ele recebeu alta, mas as galochas permaneceram no hospital.

O momento mais importante — uma viagem por demais singular

Todo habitante de Copenhagen sabe como é a entrada do Hospital Frederico[7], mas, como muito provavelmente, a maioria dos que lêem esta história podem não residir em Copenhagen, faremos uma pequena descrição dele.

O hospital fica separado da rua por uma grade de ferro, onde as barras de ferro estão tão longe separadas uma da outra, que dizem, que alguns pacientes muito elegantes se espremem através delas, e vão fazer algumas visitas até a cidade. A parte mais difícil do corpo a ser atravessada era a cabeça, e neste caso, como frequentemente acontece por toda parte, aqueles que tem cabeças pequenas são os mais felizes. Isto servirá como introdução suficiente para a nossa história. Um dos jovens voluntários, de quem, falando fisicamente, poder-se-ia dizer que tinha uma cabeça grande, estava de vigia naquela noite no hospital. A chuva caía torrenciamente, todavia, apesar destes dois obstáculos, ele sentiu vontade de sair apenas por um quarto de hora, não valeria a pena, pensou ele, tornar o porteiro seu confidente, já que ele poderia passar facilmente pelas grades de ferro.

Ali estavam as galochas, que o vigia havia esquecido. Jamais teria ocorrido a ele que se tratava das galochas da felicidade. Elas seriam muito úteis para ele com este tempo chuvoso, então ele as colocou. E agora o problema era se ele conseguiria se espremer através das grades, ele certamente nunca havia tentado, então ele ficou parado diante delas. “Gostaria tanto que a minha cabeça conseguisse passar,” disse ele, e instantaneamente, embora a galocha fosse espessa e muito grande para ele, ele a atravessou com a maior facilidade. As galochas atenderam muito bem ao seu propósito, mas o seu corpo tinha que acompanhar, e isto parecia impossível. “Sou muito gordo,” disse ele, “achei que a minha cabeça fosse mais difícil passar, mas não conseguirei atravessar o meu corpo, isso é certeza.”

Então, ele tentou recuar a cabeça novamente, mas sem sucesso, ele conseguia mover o pescoço com relativa facilidade, mas era só isso. O seu primeiro sentimento foi o de raiva, depois o seu bom humor desapareceu completamente. As galochas da fortuna o haviam colocado nesta difícil situação, e infelizmente, jamais lhe ocorreu de desejar a própria libertação. Ao invés de desejar, ele ficava se contorcendo, e não conseguia sair do lugar. A chuva caía, e não havia nenhum ser vivo na rua. A campainha para chamar o porteiro estava longe do seu alcance, e no entanto, ele precisava se libertar! Ele ficou pensando que talvez teria de ficar ali até a manhã seguinte, e então alguém traria um ferreiro para cerrarem as barras de ferro, e isso seria uma tarefa que levaria tempo.

Todas as crianças do ensino básico estariam indo para a escola naquele momento, e todos os marinheiros que moravam naquele bairro da cidade estariam ali para assistí-lo de pé no pelourinho. E que multidão não estaria ali. “Rá,” ele exclamou, “o sangue está subindo na minha cabeça, acho que vou enlouqucer. Ou melhor, acho que já estou louco, oh, como eu gostaria de sair daqui, assim todas sensações poderiam passar.” Isso era exatamente o que ele deveria ter feito desde o princípio. No exato momento em que ele expressou esse pensamento a sua cabeça se libertou. Ele recuou um pouco, totalmente aturdido com o susto que as galochas da felicidade haviam causado nele. Mas não devemos supor que tudo tenha terminado, não, de jeito nenhum, o pior ainda estava por acontecer.

A noite passou, e o dia seguinte inteirinho, mas ninguém perguntou pelas galochas. À noite, uma apresentação poética seria realizada no teatro amador de uma rua distante. A casa estava lotada, na plateia, estava o jovem voluntário do hospital, que parecia ter esquecido completamente as aventuras da noite anterior. Ele estava usando as galochas, ninguém havia procurado por elas, e como as ruas estavam muito sujas, elas estavam sendo de grande utilidade para ele. Um novo poema, intitulado “Os Óculo da Minha Avó”, estava sendo recitado. Ele descrevia os óculos como possuidores de poderes maravilhosos, se alguém os usasse numa grande assembleia, as pessoas pareceriam como se fossem cartas de baralho, e os acontecimentos futuros dos anos vindouros poderiam ser facilmente previstos para eles.

Uma ideia lhe ocorreu que ele gostaria muito de possuir tais óculos, pois, se usados corretamente, talvez eles pudessem capacitá-lo a entender o coração das pessoas, o que, segundo ele, seria mais interessante do que saber o que iria acontecer no ano seguinte, pois os eventos futuros com certeza seriam revelados, mas nunca os corações das pessoas. “Posso imaginar o que eu veria em todos os assentos de damas e cavalheiros da primeira fila, se eu pudesse ver dentro do coração deles, aquela senhora, fico imaginando, teria uma loja com artigos de moda, como os meus olhos poderiam vagar por aquela coleção!, com tantas damas aqui, com certeza encontraria uma grande loja de chapéus para senhoras.

Há uma outra que talvez esteja vazia, e que estaria precisando de uma limpeza. Pode haver alguma com bons estoques de artigos finíssimos. “Ah, sim,” ele suspirou, “conheço uma, onde tudo é de primeira, mas uma criada já se encontra ali, e esse é o único problema. Ouso dizer que já ouvi de muitos estas palavras: “Entre, por favor.” Eu simplesmente gostaria de entrar nos corações como se fosse um minúsculo pensamento.” Essa foi a palavra de ordem para as galochas. O voluntário se encolheu todo e começou a viagem mais extraordinária pelos corações dos espectadores da primeira fila.

O primeiro coração que ele entrou foi o de uma senhora, mas ele achava que tinha entrado em um dos compartimentos de uma instituição ortopédica, onde moldes de plástico de membros deformados estavam pendurados nas paredes, com uma única diferença, que os moldes na instituição eram formados quando os pacientes entravam, porém, aqui os moldes eram criados e preservados depois que as pessoas iam embora. Estes eram moldes das deformidades físicas e mentais das amigas das senhoras, cuidadosamente preservados. Rapidamente ele entrou num outro coração, que tinha o aspecto de uma igreja, espaçosa e sagrada, com a pomba branca da inocência se debatendo sobre o altar. Ele teria caído de joelhos diante de um local tão sagrado, mas foi levado para um outro coração, embora ouvisse, os sons de um órgão que tocava, e sentindo que ele havia se tornado um outro homem, um pouco melhor.

O próximo coração era também um santuário, onde ele se sentia indigno de entrar, e ali havia um sótão mediano, onde estava uma mãe doente, mas o calor do sol entrava pela janela, rosas maravilhosas desabrochavam numa pequena caixa de madeira no telhado, dois pássaros azuis cantavam as alegrias infantis, e a mãe doente pedia em preces a bênção para a sua filha. Em seguida, ele entrou agachado com suas mãos e os joelhos, num açougue superlotado, havia carne, nada além de carne, onde quer que ele fosse, este era o coração de um homem rico e respeitável, cujo nome com certeza consta no coração de muitas pessoas.

Então, ele entrou no coração da esposa deste homem, era uma casa de pombos velha e caindo aos pedaços, o retrato do marido era usado como catavento, ele tinha comunicação com todas as portas, que abriam e fechavam sempre que a opinião do marido se modificava. O próximo coração era uma sala repleta de espelhos, tais como podem ser vistas no Castelo de Rosenberg.[8] Mas estes espelhos aumentavam num grau surpreendente, no centro do assoalho estava sentado, como o Grande Lama, a pessoa insignificante do proprietário, atônito com a contemplação de seus próprios recursos. Em sua próxima visita, ele imaginou ter penetrado numa estreita caixa de agulhas, cheia de agulhas pontudas: “Oh,” pensou ele, “este deve ser o coração de uma velha criada,” mas não era esse o caso, ela pertencia a um jovem oficial, que tinha sido promovido inúmeras vezes, e que dizem ter sido um homem com intelecto e sensibilidade.

O pobre voluntário saiu do último coração da fileira totalmente confuso. Ele não conseguia concatenar seus pensamentos, e imaginou que suas tolas fantasias o tivessem levado para muito longe. “Deus do céu!” ele suspirou, “eu devo ter tendência para o amolecimento do cérebro, e aqui está um calor tão excessivo que o sangue começou a subir na minha cabeça.” E então, subitamente, ele se lembrou do estranho evento da noite anterior, quando a sua cabeça tinha ficado presa entre as grades de ferro na frente do hospital. “Esta era a causa daquilo tudo!” exclamou ele, “Preciso fazer alguma coisa ainda. Um banho russo seria uma coisa muito boa para começar. Oh, como eu gostaria de estar deitado num dos compartimentos mais altos.”

Seu pedido foi atendido, lá estava ele no compartimento mais alto de um banho a vapor, ainda com suas roupas da noite, vestindo suas botas e galochas, e os vapores quentes caindo do teto sobre o seu rosto. “Oh!”, exclamou ele, saltando e correndo para um banho de mergulho. O atendente fê-lo parar com um grito alto, quando ele viu um homem vestindo todas as suas roupas. No entanto, o voluntário teve presença de espírito o bastante para sussurrar: “Isto é uma aposta,” mas a primeira coisa que ele fez, quando entrou no seu próprio quarto, foi colocar uma grande bolsa de água quente no pescoço, e outra nas costas, para que o seu acesso de loucura pudesse passar. Na manhã seguinte, suas costas estavam doloridas, e era tudo o que ele tinha conseguido com as galochas da felicidade.

A transformação do escrivão[editar]

O vigia, que naturalmente, não nos esquecemos dele, lembrou-se, depois de algum tempo, da galochas que ele tinha encontrado e levado até o hospital, então decidiu buscá-las. Porém, nem o tenente, nem qualquer pessoa na rua poderia reconhecê-las como se fossem próprias, então, ele as entregou para a polícia. “Elas se parecem exatamente como minhas próprias galochas,” disse um dos escrivães, examinando os artigos que desconhecia, pois elas estavam ao lado das suas. “Seria necessário mais que o olho de um sapateiro para diferenciar um par do outro.”

“Senhor escrivão, disse um funcionário entrando com alguns documentos. O escrivão se virou e falou com o homem, mas depois que terminou, ele se voltou para olhar as galochas novamente, e nesse instante ele sentiu uma dúvida muito grande se era o par da direita ou o da esquerda que pertencia a ele. “Aquelas que estiverem molhadas devem ser as minhas,” pensou ele, “mas ele pensou errado, era exatamento o contrário. As galochas da felicidade eram o par molhado, e, além do mais, porque um escrivão de polícia não deveria se enganar algumas vezes? Então ele as colocou, enfiou os documentos dentro do bolso, colocou alguns manuscritos debaixo do braço, os quais ele precisava levar consigo, para tomar decisões em casa, “Uma caminhada até o Monte Frederico me fará bem:” então para lá se dirigiu.

Não poderia existir jovem mais tranquilo e mais sossegado do que este escrivão. Não vamos ficar com ciúmes dele neste pequeno passeio, e isso era exatamente o que ele precisava fazer depois de ficar sentado tanto tempo. A princípio, ele andava como um simples autômato, sem pensar nem desejar nada, de modo que as galochas não tinham a chance de mostrar seus poderes mágicos. Na avenida, ele encontrou um conhecido, um de nossos jovens poetas, que disse para ele que pretendia iniciar no dia seguinte um passeio de verão. “Você tem mesmo certeza de viajar tão cedo?” perguntou o escrivão. “Que homem livre e feliz você é. Você poderá ir para onde quiser, enquanto nós ficaremos atados sob nossos pés.”

“Mas você estará preso ao pé de fruta-pão,” respondeu o poeta. Você não precisa ficar preocupado com o dia de amanhã, e você ficar velho, haverá uma pensão para tua tranquilidade.”

“Ah, sim, mas você ficou com o melhor,” disse o escrivão, “deve ser tão delicioso ficar sentado e escrever poesias. O mundo inteiro torna-se agradável para você, e depois, você é dono de si mesmo. Você deveria experimentar uma vez e ficar ouvindo todas essas coisas triviais que acontecem dentro de uma corte de justiça.” O poeta balançou a cabeça, e o escrivão também fez o mesmo, cada um ficou com a própria opinião, e depois partiram. “Os poetas são pessoas estranhas,” pensou o escrivão, “eu gostaria de experimentar o que é ter uma veia poética, e me tornar um poeta. Tenho certeza que não criaria versos tão tristes como eles se parecem. Hoje está um dia esplêndido de primavera para um poeta, o ar está extraordinariamente claro, as nuvens estão tão lindas, e a relva verde tem um cheiro tão suave. Há muitos anos que não me sinto deste jeito como agora.”

Foi por aí que percebemos que ele havia se tornado um poeta. Para a maioria dos poetas o que ele disse seria considerado um fato comum, ou como os alemães costumam dizer “uma coisa insípida.” Seria uma fantasia tola considerar os poetas como sendo diferentes das outras pessoas. Há muitos que podem ser considerados mais poetas por natureza do que aqueles que se professam como tais. A diferença é que, a memória intelectual do poeta é melhor, e toma posse de uma ideia ou sentimento, até que consiga corporificá-lo, de maneira clara e transparente em palavras, o que os outros não conseguem fazer. Mas as transição de um personagem da vida cotidiana para outra mais talentosa por natureza é uma grande transição, e desse modo o escrivão teve ciência dessa transformação depois de um certo tempo. “Que perfume delicioso,” disse ele, “faz-me lembrar das violetas na cada da minha tia Lora.”

Ah, isso foi quando eu era um garotinho. Meu Deus, quanto tempo já se passou desde aqueles dias! Ela era uma boa e velha senhora! Ela morava alí atrás da Bolsa de Valores. Ela sempre conservava um raminho ou alguns botões dentro da água, por mais rigoroso que fosse o inverno. Eu poderia sentir o cheiro de violetas, mesmo quando eu estava colocando algumas moedas aquecidas contra as vidraças congeladas para fazer buraquinhos na neve para ficar espiando, e a mais bela paisagem era aquela que eu espiava. Lá longe no rio ficavam os navios, presos pelo gelo, e abandonados pela tripulação, um corvo barulhento era a única criatura viva a bordo. Mas, quando as brisas da primavera chegavam, tudo se transformava em vida. Por entre gritos e saudações os navios eram pichados e equipados, e então podiam navegar para terras distantes.”

“Eu fico aqui, e sempre ficarei, sentado no meu lugar na delegacia de polícia, e deixando que outros tirem seus passaportes para terras distantes. Sim, este é o meu destino,” e suspirava profundamente. De repente, ele fez uma pausa. “Deus do céu, o que estará acontecendo comigo? Nunca me senti antes como me sinto agora, deve ser o ar de primavera. Ele é irresistível, mas é muito delicioso.”

Ele sentiu que em seus bolsos havia alguns papéis. “Eles me servirão para pensar em alguma coisa,” disse ele. Lançando os olhos na primeira página de um deles, ele leu: “Senhora Sigbirth, uma Tragédia original, em Cinco Atos. O que será isto? — escrito com a minha própria letra também! Será que eu escrevi esta tragédia?” Ele leu novamente, “História sobre um Passeio, ou, o Dia de Jejum. Um teatro de variedades. Mas, afinal de contas, como é que tudo isso veio parar aqui? Alguém deve tê-los colocado em meu bolso. E aqui está uma carta!” Ela pertencia ao gerente de um teatro, as peças foram recusadas, nem todas eram apresentáveis de certo modo.

“Hum, hum!” disse ele, sentando-se num banco, seus pensamentos se expandiam como elástico, e seu coração estava melancolicamente magoado. Involuntariamente, ele pegou uma das flores que estava próxima, era uma margarida pequena e delicada. E tudo que os botânicos precisavam de muitos discursos, podia-se explicar num segundo com esta pequena flor. Ela falava da glória do seu nascimento, contava sobre os esforços da luz do sol, que fazia com que suas folhas delicadas se expandissem, proporcionando a ela um perfume tão doce. As lutas da vida que despertam sensações no peito tem sua origem nas flores minúsculas. O ar e a luz são os preferidos das flores, mas a luz é a mais favorecida, porque a flor se volta em direção à luz, e somente quando a luz vai embora é que ela dobra as suas folhas, e dorme sob os abraços do ar.”

“É a luz que me enfeita,” diz a flor.

“Mas o ar te proporciona o fôlego da vida,” sussurrou o poeta.

Bem perto dele estava um garoto, espirrando água com uma vareta em uma poça pantanosa. As gotas dágua jorravam por entre os galhos verdes, e o escrivão pensou nos milhões de pequenos animálculos que eram jogados para o ar dentro de cada gota dágua, à uma altura que seria a mesma para elas como seria se fôssemos arremessados para além das nuvens. A medida que o escrivão pensava nessas coisas, e teve consciência da grande transformação de seus próprios sentimentos, ele sorriu, e disse para si mesmo, “Devo estar dormindo e sonhando, e caso esteja, como é maravilhoso que um sonho seja tão natural e real, e ao mesmo tempo termos consciência de que ele é apenas um sonho.

Espero que consiga me lembrar de tudo quando acordar amanhã. Minhas sensações parecem inexplicáveis. Tenho uma clara percepção de tudo, como se estivesse bem acordado. Tenho certeza de que se me lembrar de tudo isto amanhã, isso vai parecer extremamente ridículo e absurdo. Acho que isso já aconteceu comigo antes. As coisas inteligentes e maravilhosas que dizemos ou ouvimos nos sonhos, é como o ouro que tiramos debaixo da terra, ele é rico e lindo quando o possuímos, mas quando visto sob a luz da verdade, ele é como as pedras e as folhas murchas.”

“Ah”, suspirou ele melancolicamente, enquanto olhava para os pássaros que cantavam alegremente, ou pulavam de galho em galho, “eles são muito melhores que eu. Voar é um arte poderosa. Feliz é aquele que nasce com asas. Sim, se eu pudesse me transformar em alguma coisa eu seria uma cotovia. No mesmo instante, a cauda do seu casaco e as mangas cresceram juntos formando asas, suas roupas se transformaram em penas, e suas galochas em garras. Ele sentiu o que estava acontecendo, e riu consigo mesmo. “Bem, é evidente que devo estar sonhando, porém, eu nunca tive um sonho tão maluco como este.” E então, ele voou até os galhos verdes e cantou, porém, não havia poesia em sua canção, porque a sua natureza poética o havia deixado.

As galochas, como todas as pessoas que desejam realizar completamente um sonho, podiam atender somente um pedido de cada vez. Ele desejava ser poeta, e ele se tornou poeta. Depois, ele quis ser um passarinho, e com esta transformação ele perdeu as características da anterior. “Bem,” pensou ele, “isto é encantador, de dia eu fico sentado na delegacia de polícia, no meio daqueles entediantes documentos legais, e a noite posso sonhar que sou uma cotovia, e voar pelos jardins de Fredericksburg. Realmente, uma comédia completa poderia ser escrita sobre esse tema.” Então, ele voou sobre a relva, virava a cabeça para todos os lados, e batia com o bico sobre as camadas flexíveis de grama, que, proporcionalmente ao seu tamanho, parecia para ele tão longa como as folhas de palmeiras do norte da África.

Num certo momento, tudo ficou escuro ao seu redor. Parecia que algo imenso havia sido lançado em cima dele. Um jovem marinheiro havia lançado seu enorme boné sobre o passarinho, e uma mão veio por baixo e pegou o escrivão pelas costas e asas de maneira tão rude que ele chiou, e depois começou a gritar fazendo alarme, “Seu patife insolente, eu sou o escrivão da delegacia de polícia!” mas isso soava para o jovem como se fossem “tuit, tuit”, então ele bateu no bico do passarinho, e foi embora com ele. Na avenida ele encontrou dois estudantes, que pareciam pertencer à melhor classe da sociedade, mas cujas habilidades inferiores colocava-os na classe mais baixa da escola. Este garotos compraram o pássaro por oito pences, e assim o escrivão voltou para Copenhagen.

“Ainda bem que eu estou sonhando”, pensou ele, “caso contrário eu poderia ficar realmente zangado. Primeiro eu era um poeta, e agora sou uma cotovia. Deve ter sido a natureza poética que me transformou nesta pequena criatura. É uma história infeliz, eu sei, principalmente agora que caí nas mãos destes garotos. Já fico imaginando qual será o final dela.” Os garotos o levaram até um lugar muito elegante, onde uma senhora robusta e com boa aparência os recebeu, mas ela não ficou nada satisfeira ao descobrir que eles haviam trazido uma cotovia — um “pássaro de campo” comum, como ela costumava chamá-lo. Todavia, ela permitiu por um dia que eles colocassem o pássaro numa gaiola vazia, que ficava perto da janela. “Talvez a Polly vá ficar contente com ele,” disse ela, rindo para um papagaio enorme e cinzento, que orgulhosamente ficava balançando em cima de um anel dentro de uma belíssima gaiola de bronze. “É o aniversário do Polly,” ela acrescentou com um sorriso forçado, “e o pequeno pássaro de campo veio para lhe dar os parabéns.”

Polly não respondeu uma única palavra, ele continuou a balançar orgulhosamente para lá e para cá, mas um lindo canário, que havia sido trazido de sua terra natal quente e perfumada, no verão passado, começou a cantar tão alto quanto podia.

“Seu pássaro barulhento!” disse a senhora, lançando um lenço branco sobre a gaiola.

“Tuit, tuit,” suspirava ele, “que tempestade de neve assustadora!” e depois voltou a ficar em silêncio.

O escrivão, ou como a senhora o chamava o pássaro de campo, foi colocado numa pequena gaiola perto do canário, e não muito longe do papagaio. A única fala humana que Polly sabia pronunciar, e que ele algumas vezes tagarelava de maneira muito engraçada, era “Agora, sejamos homens.” Tudo além disso eram gritos, tão ininteligíveis quanto o trinado do pássaro canário, com exceção do escrivão, que sendo agora um pássaro, poderia entender seus companheiros também.

“Voei para debaixo das palmeiras verdes, e entre as amendoeiras florescentes,” cantava o canário. “Voei com meus irmãos e irmãs por cima de lindas flores, e atravessei o mar claro e brilante, que refletia a folhagem ondulante em suas profundezas cintilantes, e eu vi muitos papagaios alegres, que sabiam contar histórias longas e deliciosas.”

“Eles eram pássaros selvagens,” respondeu o papagaio, “e totalmente mal educados. Agora, sejamos homens. Porque você não ri? Se a senhora e seus visitantes podem rir quando falo isto, com certeza você também pode. É uma falha muito grande não saber apreciar o que é engraçado. Agora, sejamos homens.”

“Você se lembra,” disse o canário, “das lindas donzelas que costumavam dançar nas tendas que eram espalhadas sob as árvores florescentes? Você se lembra das frutas deliciosas e do suco refrescante feito com ervas selvagens?”

“Oh, sim,” disse o papagaio, “mas aqui eu estou muito melhor. Sou bem alimentado, e tratado com educação. Eu sei que tenho uma cabeça boa, e o que mais posso querer? Sejamos homens agora. Você tem alma de poeta. Eu tenho conhecimento profundo e inteligência. Você tem criatividade, mas não tem juízo. Você eleva as suas notas altas naturalmente tão fortes, que você fica totalmente coberto por elas. Elas nunca me foram tão úteis. Oh, não, eu custei para eles algo mais do que você. Com meu bico, eu preservo a tranquilidade aqui, e espalho o bom humor para todos os lados. Ora, sejamos homens.”

“Oh, minha pátria quente e florida,” cantava o pássaro canário, “Cantarei tuas árvores verdes escuras e teus rios tranquilos, onde os galhos flexíveis beijam as água claras e pacíficas. Cantarei a alegria dos meus irmãos e irmãs, que com suas plumagens brilhantes voam entre as folhas escuras das plantas que crescem livres ao lado das nascentes.”

“Pare com essas canções sombrias,” disse o papagaio, “cante algo que nos faça rir, o riso é o símbolo da mais elevada ordem de intelecto. Um cão ou um cavalo sabem sorrir? Não, só podem chorar, mas somente ao homem foi dado o poder do sorriso. “Rá rá rá,” riu Polly, “e repetia seu refrão espirituoso: “Ora, sejamos homens.”

“Ora, seu pequeno pássaro cinzento dinamarquês,” disse o canário, “você também se tornou prisioneiro. Certamente está frio em suas florestas, mas a liberdade ainda existe lá. Fuja! eles esqueceram de fechar a gaiola, e a janela está aberta no alto. Voe, voe!”

Instintivamente, o escrivão obedeceu, e saiu da gaiola, nesse mesmo instante a porta meio-aberta que levava para o quarto contíguo rangeu os seus gonzos, e, furtivamente, com seus olhos verdes e flamejantes, o gato entrou de repente e caçou a cotovia ao redor do quarto. O pássaro canário voava em sua gaiola, e o papagaio batia suas asas e gritava: “Sejamos homens,” o pobre escrivão, vivendo o terror mais letal, voou pela janela, por cima das casas, e pelas ruas, até que finalmente foi obrigado a procurar um lugar para descansar. Uma casa de frente para ele tinha um aspecto agradável. Uma janela estava aberta, ele voou para dentro, e pousou em cima da mesa. Era a sua própria casa. “Sejamos homens agora,” disse ele, imitando involuntariamente o papagaio, e no mesmo instante ele se tornou escrivão novamente, com uma única particularidade, ele estava sentado em cima da mesa. “Deus me ajude!” disse ele, “Como é que eu cheguei até aqui e caí no sono desta maneira? Foi um sonho perturbador esse que eu tive. Tudo parecia o maior absurdo.”