Dois parentes
O intendente accolheu o recem-chegado com um sorriso, e extendeu-lhe a mão com amizade. Aubry apertou-lh’a sem ceremonia, encarou-o com ar malicioso por momentos, e disparou-lhe depois na cara a mais longa e estrepitosa risada, que de certo tinham ouvido aquellas paredes, desde que a Santa Inquisição reinava dentro d’ellas.
―Ah! Ah! exclamou fazendo esforços em vão para se reprimir. Que duas figuras unicas, que duas corujas agoureiras acabo de encontrar no corredor!… Pelo que vejo a procissão de ámanhã leva anjos, demonios, serpentes, e até estafermos do mais curioso feitio. Estes dois são magnificos. Sobre tudo um… o mais baixo. É admiravel!
―Porque? atalhou Lagarde.
―Porque, meu tio? A pergunta é rara! Aquella cabeça de anão, aquella cara de papel, e os saltos de rã da perna coxa promettem á festa um palhaço soberbo. Por quanto se aluga aquelle senhor? Juro-lhe que vale quanto pesa… em cobre. Dou-lhe os parabens! Foi um achado. Posso saber o que elle custa á policia de sua magestade o imperador e rei?!…
E o official dizendo isto ria como um louco, afagando o bigode louro, e saccudindo o pó das botas de montar com a ponta do junco flexivel, que trazia na mão.
―Não custa barato, Armand! redarguiu o intendente, sorrindo-se tambem. Aquelle anão, assim mesmo contrafeito e ridiculo como te pareceu…
―Esse pareceu é delicioso, meu tio! Continue. Sou todo ouvidos.
―Vale mais do que muitos homens guapos e bem postos.
―Quem tal diria! Então é um diamante bruto?…
―Talvez. Dentro em pouco vel-o-has chefe…
―Chefe? Muito bem. E de que tenciona invental-o chefe? Acaso a policia conta distraír os portuguezes de suas saudades, armando tablados ao ar, e escripturando polichinellos?
―Não! redarguiu Lagarde um pouco enfadado dos motejos do sobrinho. A policia aspira a funcções mais modestas. Lisboa, esta cidade immunda como as do Oriente, começa já a ser outra cousa… As ruas…
―Tá! Tá! Meu tio. Esse elogio dos serviços da policia, na sua bôcca é capaz de abrandar as pedras… das mesmas ruas. A proposito! Denuncio-lhe os cães vadios. Resistem ás ordens como janizaros. Hontem á meia noite estivemos em perigo de sermos devorados, eu, e o meu cavallo! Que morte para um official do exercito imperial!… Diga-me: o anão, de que tractâmos, será nomeado executor da alta justiça contra as matilhas famintas? A cara do personagem é de um verdadeiro Herodes, e não desmente o officio. Puah! O maldito sempre deixou aqui um cheiro patibular!…
―Armand! Não te cansaste ainda?!…
―Oh! Cuida meu tio, que os assumptos recreativos se encontram a cada canto n’esta boa terra? O que admiro mais é a sua longanimidade. Parece incrivel! Aturar fechado n’este gabinete dias, semanas, e mezes, entre cachos de malsins e grinaldas de larapios aposentados! Santo Deus! Que emanações asquerosas. É de engulhar até o estomago a um tubarão!…
―Ainda! Armand, o que sinto mais, do que a triste sociedade, que sou obrigado a admittir…
―Diga tristissima, meu tio, que não diz senão a verdade. Os melhores dir-se-íam desenterrados das enxovias, ou das galés…
―Então! O que deploro, mais do que isso, é essa tua leviandade incuravel. O homem, que estás escarnecendo, prestou-nos a ambos um serviço relevante…
―Não sabia. Pelo que observo o precioso aborto accumula as funcções de palhaço ás de nigromante? Faz magia branca nas ferias. Excellente!
―Ah, Aubry! Quando te verei um momento serio e preoccupado dos deveres da tua posição?
―Quando uma bala me varar o peito, ou a cabeça. Se não levasse a vida a rir e a folgar, entre dois amores, um que hoje foge para volver ámanhã, outro que arrebata e embriaga; o amor dos sentidos e o amor da gloria; cuida que valia a pena de a arrastar de desengano em desengano, de revez em revez até aos rheumatismos, e aos defluxos asthmaticos da velhice? Por alma de meu pae! Nasci e hei de acabar com esta sina. Sou assim feito. Não tem remedio! Mas apezar de rir muito, de chorar pouco, e de preferir o lado comico ao aspecto lugubre da existencia, ajuntou, tornando-se um tanto grave, creia que este coração, facil em se alvoroçar com a promessa de uns bellos olhos pretos, azues, ou verdes, a côr é indifferente uma vez que sejam formosos (!), é incapaz de trahir a honra e a amizade, ou de se aviltar por nenhum preço…
―Bem sei. Por isso te estimo. Desejava-te só menos estouvado. Não póde ser? accrescentou sorrindo-se involuntariamente do gesto negativo do sobrinho. Paciencia! Escuta-me. Aquelle homem, que saiu d’aqui ha pouco… Não rias! ao qual ignoro porque pozeram a alcunha de Sapo…
―Quem seria o philosopho que tão bem chrismou o reptil? Preciso abraçal-o! O Sapo?! Mas é verdadeiramente um sapo o seu homem, meu tio! Bom! Não se agaste. Já me calo. Passo a estar serio e aprumado como uma estatua… Diga!
―Aquelle homem… foi quem descobriu o asylo de Paulo de Azevedo, e entregou á policia a sorte do cavalheiro, do qual depende…
―Cuidei que lhe tinha escapado! interrompeu o mancebo. Pareceu-me ouvir-lhe dizer que duas vezes…
―O tivemos nas mãos, e que nos escorregou por ellas, zombando de nossas diligencias? É verdade. Não te enganaste. Mas á terceira fomos mais felizes. Estava escondido aqui mesmo em Lisboa, e mandei-o prender… O sargento Cabrinha, um dos meus agentes mais activos, e este Sapo, que ainda promette ser melhor…
―Ah, meu tio, fale-me de tudo menos d’esse miseravel. Deploro vêl-o convertido em Plutarco de similhante monstro…
―Pois sim. Mas attende-me. Lavemos agora um pouco a nossa roupa suja em familia. O que te resta dos bens de tua casa?…
―Dividas e credores, replicou Armand com um sorriso stoico sublime.
―Nada mais?…
―Acha pouco? Dividas desassocegadas e credores inquietos!… Tenho com que me entreter toda a minha vida.
―Um!… Pois de todas as propriedades, que herdaste, mobilias, ouro, prata… não possues absolutamente nada?!…
―Nada!… O ouro a que posso chamar meu… e assim mesmo só por uma audaciosa figura de rhetorica, porque o não paguei ainda… trago-o aos hombros… são as dragonas!
―Ah! Então o naufragio foi completo!?… E com que contas para o futuro?…
―Essa é boa! Conto com os meus vinte e oito annos, com esta figura soffrivel, com a saude á prova de todas as fadigas, que devo á minha compleição, e que tem sido o desespero dos medicos, e com o acaso de uma bala, ou de uma proeza, que me eleve em patente, ou me deixe no campo como muitas outras buxas de canhão, que valem menos do que eu.
―És louco!…
―Sou philosopho!
―Talvez! Mas dize! Eras filho unico. Teus paes deixaram-te…
―A sua benção e alguns punhados de escudos nas gavetas. Que quer, meu tio?! As Aspasias de París, as Sylphides do corpo de baile, e as Musas da opera vendem os sorrisos caros. Não imagina!… E sorriram tanto, e com tal graça para mim, que as mãos abriram-se-me sem as sentir… Quando caí na realidade… sabia de cór todas as piruetas e saltos de Vestris, todos os passeios e casas de pasto de mais fama, e podia dar licções de gosto e de ouvido a todas as platéas civilizadas… Mas nem um real no bolso para afugentar o demonio! Encolhi os hombros e fiz-me soldado.
―Bem sei. Porém a herança de tua tia?!…
―Santa e excellente velha!… Saltam-me as lagrimas dos olhos ainda quando me recordo d’ella! A herança da boa tia veiu nas poucas horas de melancholia, que tenho penado em minha vida.
―Isso não explica!… Lembro-me de ter ouvido falar em terras…
―Oh, de certo. Um bom par de geiras… Eram muito fracas. Vendi-as por economia.
―Mattas e pinhaes!?…
―Magnificos!… Eram muito sombrios. Troquei-os a dinheiro para me não entristecerem.
―Uma casa de residencia vasta com jardins?…
―A casa era humida e constipava-me. Os jardins precisavam de muito amanho, e não apparecia jardineiro. Desfiz-me da casa e dos jardins.
―Uma mobilia antiga, mas rica?!
―Custava-me muito caro o transporte, cedi-a.
―Percebo!… N’esse caso estás?…
―Como diz o livro de Job: Nú saí do ventre de minha mãe, e despido de bens da fortuna descerei á cova.
―Admiro o teu sangue frio. Não te parece já tempo de assentar, e de mudares de vida…
―Conforme a mudança! Saltar da agua fria para caír no fogo, não sei se é peior.
―Armand! É necessario cazares, e que o dote de tua mulher…
―Chegue para remendar a capa esburacada do mendigo?!
―Mais do que isso. É preciso que dê para uma capa nova.
―Não digo que não. Mudarei ainda de pelle. Estou prompto.
―Estimo. Falei-te na filha de Paulo de Azevedo…
―É moça?…
―Dezoito annos.
―Feia como uma herdeira, ou desastrada como as morgadas?…
―Não. Linda, airosa, e gentil como uma parisiense.
―Santo Deus!… E esse thesouro, essa fada, mimo de todas as perfeições, guardou até hoje o seu coração livre á espera de um perdulario, de um estouvado, que nunca viu?! Meu tio! Sabe que o unico ridiculo, de que tenho medo, é da sorriada merecida de Jorge Dandin?…
―Repito. É uma menina séria, prendada, e espirituosa…
―Não duvido. Antes isso! A ingenuidade de Agnés sempre me assustou muito! Essa menina… Mathilde?… Clara?…
―Leonor! Leonor de Azevedo…
―É verdade! Leonor!… Essa Leonor não estava justa a cazar com um cavalheiro, tambem fidalgo, official, capitão, creio eu, do segundo regimento do Porto, licenciado depois do tumulto das Caldas?… Se não erro, elle chama-se?…
―Manuel Coutinho! accudiu o intendente. Não houve nunca promessa de cazamento, enganas-te. As duas familias davam-se muito. O que poderia existir era algum namorico, alguns requebros naturaes… innocentes…
―Sim! Sim! Muito innocentes. Sabe que nunca me resolvi a calçar sapatos de defuncto, e que de sapatos de vivos gosto ainda menos?… Uma pergunta, meu tio?… Hei de ser sempre noivo por procuração? Conta cazar-me sem eu vêr nunca minha mulher… nem até no oratorio da policia?…
Lagarde piscou os olhos, assoou-se com ruido, e coçou depois ao de leve a ponta do nariz aquilino. Eram os gestos, que n’elle inculcavam hesitação e perplexidade.
―Cazares sem vêr tua mulher?! exclamou rindo constrangido. Pelo amor de Deus! Quem te metteu isso na cabeça?
―Cuidei! Como os principes cazam pelos retratos…
―Has de vêl-a, adoral-a, e agradecer-me de mãos postas a escolha.
―Estou certo, meu tio. Porém!… Como o meu voto me parece essencial desejo dal-o em consciencia. Quando me apresenta a D. Leonor?…
―Um dia cêdo! Ámanhã talvez! redarguiu o intendente, agitando-se, e estorcendo-se na cadeira, como se o assento fossem brazas.
―E porque não ha de ser hoje. Sou tão curioso!…
―Hoje! Sem a avisar! De mais tenho que despachar… Espero…
―O honrado sargento, ou o palhaço talvez?!… Vamos. Decida-se. Hoje, ou nunca! Alea jacta! como nós diziamos no collegio. Os bons palpites aproveitam-se. O matrimonio é um grilhão de ferro coberto de flôres… Quem sabe se ámanhã eu terei medo da felicidade conjugal, e me arrependerei? Seja docil! Deixe-me vêr hoje esse portento encoberto…
―Pois bem! Faça-se a vontade ao teimoso, contestou Lagarde, depois de alguns instantes de reflexão, tirando o relogio do bolso, e consultando-o. São dez horas. Ao meio dia aqui te espero.
―Viva o melhor dos tios! bradou Armand, rindo, e abraçando-o. Diz o rifão: em quanto venta molha a véla! Quero remar com a maré. É verdade que na Ponte da Asseca, em um casarão arruinado, apparecem aventesmas, e que um troço de milicianos debandou por uma noite de tempestade, fugindo de um fantasma?…
―Porque?
―Nunca tive a honra de conversar particularmente com nenhum espectro, e desejava certas informações sobre o paraizo e sobre o purgatorio…
―Os fantasmas da Ponte da Asseca sabes o que são? accudiu o ministro agastado. Um bando de conspiradores, que a policia vae desmascarar e punir.
―Jesus, que ares tragicos, meu tio! Pela sua vida não represente de tyranno. O papel cai-lhe mal. Dê-me essa missão a mim. Adoro as aventuras, e Cazote é o meu idolo… Quem sabe se irei lá encontrar algum diabo amoroso?
―Pois bem, irás! atalhou Lagarde sorrindo. Mas já te previno. O que lá acharás são morgados lorpas, e rebeldes endurecidos. Agora adeus. Não te esqueças. Ao meio dia em ponto!
―Ao meio dia em ponto! respondeu o sobrinho, saudando-o, e saindo.