(A JOÃO DE DEUS)

Havia d’antes em Penajoia—terra que ninguem é capaz de ver no mappa geographico de Portugal—uma aula regia de primeiras letras.

A aula era n’uma casa de um só andar, rente do chão. Ficava no meio de uma clareíra, e tinha ao lado dois grandes sobreiros, que a abrigavam do sol, no estio, e que rangiam, no inverno, quando sopravam as rajadas do nordeste.

Os alumnos entravam ás oito horas da manhã, saíam ao meio-dia, para jantar; e voltavam depois ás duas horas, para sairem ás cinco da tarde. Alguns d’elles vinham de longe, meia legua, tres quartos de legua de distancia. Eram todos pequeninos e pobres. Saíam ao romper da manhã de suas casas, com o livro debaixo do braço, e a louza das contas pendente de um cordão, lançado a tiracollo. No caminho, os que vinham de mais longe, iam-se reunindo aos condiscipulos que encontravam; jogavam o botão, ou, se era tempo, trepavam aos castanheiros para cruelmente roubarem os ninhos dos melros e verdelhões.

O mestre, que tinha sido um valente cabo de milicianos, era um velhote rabujo, de pellos nas orelhas, e que pouco mais sabia do que os alumnos, que ensinava.

Um dia perguntei-lhe eu:

—Diga-me cá, sr. Joaquim, que methodo adopta?

—Que methodo?!—exclamou elle, estranhando a pergunta. E depois, levantando as sobrancelhas, e com as sobrancelhas os oculos, fitou-me desconfiado, e respondeu com ar solemne:

—Adopto o methodo do Achiles (do Axiles, foi como elle dísse).

Mas, a despeito de tudo isto, era um tyranno, como o são quasi todos os ignorantes.

A aula, como já disse, ficava ao rez do chão. A luz entrava por duas frestas, que ficavam acima dois palmos da cabeça de um homem; porque assim era preciso—explicava o mestre—para que os rapazitos se não distrahissem, a olhar para fóra. Ao fundo da sala ficava uma meza de pinho e uma cadeira, que era o logar do mestre. Depois seguiam-se bancadas de pau, collocadas como uma platéa, duas a duas, deixando ao meio um intervallo, por onde entravam os alumnos; e, quando todos tinham entrado, por onde passeiava gravemente o professor, com o livro n’uma das mãos, e na outra um junco.

Os pequenos, assim que se aproximavam da aula, impallideciam.

E antes de entrarem, quem ali passasse, via-os muitas vezes ainda a repetirem a lição, trémulos, enfiados e com a mesma coragem de quem tem de subir a uma forca!

O Gabriel era ainda um pequenote de sete annos. Morava ao pé do abbade. E o abbade, que era um santo velhinho, é quem muitas vezes lhe ensinava a lição. Por isso, e como o pequeno era esperto—ui! diziam os conhecidos, o Gabriel? esperto como um alho!—era o Gabriel que quasi sempre ensinava a lição aos outros.

—Como se lê esta palavra, Gabriel? dizes-me?—pedia-lhe de uma vez o

João do moleiro.

—Soletra lá.

E principiou o outro:

—P-h-i, pi.

—Qual pi! Tambem eu cuidava! P-h-i, fi—emendou o Gabriel.

—Fi!—exclamou o João,—Fi! Pêta! Tu enganas-me, Gabriel.

—Não engano, João; lê fi-, que foi como me ensinou o sr. abbade.

N’isto, chegou á porta da aula o mestre.

Vinha a palitar-se, e com a face e orelha direita mais vermelhas, porque tinha dormido a sésta.

Chegou á porta e gritou:

—Canzuada, salta para dentro!

E lá entram todos de chapeusinho na mão, cheios de medo, como um rebanho de ovelhas a entrar para um matadouro.

Assim que o mestre tirou o livro da gaveta, em seguida a palmatoria, e depois o lenço escarlate, de chita, fez-se um silencio lugubre na sala.

—Lê tu, João—principiou elle.

O João do moleiro foi lendo, mas cada vez que se ia aproximando da terrivel palavra, ia-lhe faltando o animo.

Dizer que P-h-i diz fi, que temeridade! Emfim continuou írremediavelmente:

—E como a sciencia chama… chama…

E ergueu supplicante os olhos para o verdugo.

O mestre tossiu para se dar ao respeito, e bradou:

—Lê para bai-xo, me-ni-no—accentuando as syllabas com um sorriso ameaçador.

—Chamada—continuou o pequeno indeciso—chamada… e terminou em tom mais baixo, com a incerteza de quem não sabe o que diz—Philosophia.

—Como?—bradou o mestre, descarregando-lhe com o junco pelas orelhas.—Como?

O pequeno fechou os olhos, encolheu os hombros, e emendou a chorar:

—Pi-lo-so-pi-a.

O professor descarregou segunda juncada, e berrou:

—Pilosópia, burro, pilosópia!

—Pilosópia,—repetiu o pequeno.

Apenas o João do moleiro disse a palavra, levantou-se o Gabriel do seu logar e declarou com a voz serena e com as lagrimas a saltarem-lhe dos olhos:

—Snr. mestre, quem ensinou a dizer assim ao João do moleiro fui eu.

Oh! que escandalo, Santo Deus! O mestre ergueu-se de golpe. Os discipulos tremiam como varas verdes; e os mais pequeninos até choravam! Podéra! O que iria acontecer, Nossa Senhora! O mestre ia correr tudo a bolaria, não ha duvida.

—O que é lá?—gritou o mestre Joaquim com uma voz convulsa.—O que é?

E ficou a olhar para o Gabriel, inclinando com o indicador o pavilhão da orelha direita.

—Fui eu que ensinei assim—repetiu o Gabriel assustado.

—Vem cá—chamou de afogadilho o mestre—já aqui, seu atrevido. E bateu com a palmatoria na mesa. O Gabriel poisou o livro no logar e aproximou-se.

—Aqui já.

O mestre descarregou-lhe nas mãosinhas tenras meia duzia de furiosas palmatoadas.

Foi muito bem feito! Apre! Offender a sabedoria do seu mestre!

* * * * *

De uma outra vez, de tarde, aconteceu passar o abbade pela aula do mestre regio. Fóra ouvia-se uma gritaria, que eu sei lá! parecia que o mundo ia acabar.

Á porta da aula estavam tres pobres mulheres, cada uma com um filhinho ao collo.

—Ahi vem o sr. abbade—disse uma d’ellas.—Vamos pedir-lhe, mulheres.

Aquillo foi Nosso Senhor que o trouxe por aqui.

Abeiraram-se do abbade, e imploraram-lhe que fosse elle pedir ao mestre que perdoasse por esta vez aos rapazinhos.

—Então o que aconteceu?—perguntou o reitor.

—Quem sabe lá, sr. abbade! Elles berregam, que parece que os matam!

—Se eu já até ouvi o meu Manoel, que é tam fraquinho!

—E o meu João, sr. abbade, que tam doentinho tem andado.

—E o meu José! aquelle que foi este anno á primeira confissão, sr. abbade; sabe?

O abbade dirigiu-se á porta e bateu.

—Quem é?—perguntou de dentro a voz aspera do mestre.

—Abra, mestre Joaquim, faz favor?

O abbade entrou. Para os pequenos foi como se vissem a Providencia.

—Então o que lhe fizeram estes mariolas, sr. Joaquim?—perguntou o abbade, olhando em roda para os alumnos.

—O que me fizeram? Roubaram-me dois lapis!

—Oh! que grande peccado!—exclamou o abbade, arregalando os olhos.

—E é que nenhum confessa—explicou o mestre. E bradou, voltado para os pequenos—nenhum confessa, mas eu ra a i xo-os, aqui, todos.

O abbade poz-lhe a mão no hombro e serenou-o, dizendo-lhe:

—Pois se nenhum confessa, é o mesmo; que vamos já saber quem foi.

Espere ahi que volto já.

Saíu o abbade, e, passados instantes, entrou na aula, precedido de uma rapariga.

Aproximou-se da mesa e disse:

—Põe tudo aqui em cima, Josephinha. Assim. Agora vai-te embora.

A pequena poisou uma panella de folha, e tirou debaixo do avental um gallo preto. O abbade metteu o gallo dentro da panella, cobriu-a com o testo, e principiou assim:

—Fez-se um grande peccado! Roubaram um lapis! Quem rouba um lapis, é muito capaz de roubar tudo! Meus filhos, um de vós commetteu o crime; e não o confessa por vergonha. Ora, por causa d’aquelle que roubou os lapis, vão padecer todos os mais. Ahi teem! Em vez de só fazer um peccado, que Nosso Senhor lhe perdoava, se o confessasse e se arrependesse, vae commetter muitos: faltar á verdade, que é tão feio, e depois deixar que os outros soffram injustamente.

Os pequeninos ouviam o abbade com religiosa veneração.

O abbade proseguiu:

—Hão de vir todos, cada um por sua vez, pôr a mão sobre esta panella. O gallo preto ha de cantar logo que sinta sobre o testo a mão criminosa do que roubou o lapis. E fica assim conhecido o ladrão; o sr. mestre Joaquim ha de castigal-o, e eu não o quero ver mais. Ora, torno a dizer, se confessar está perdoado.

Na aula, silencio profundo.

—Nenhum se accusa?—disse o abbade.—Venha o numero 1.

Foi o numero 1 e poisou a mão sobre o testo. O gallo não cantou.

Foi o numero 2, foi o numero 3 e chegou até ao numero 4.

Antes de chegar a vez ao numero 5, todos os olhares convergiram para um canto da aula, d’onde partiam uns soluços afflictivos.

—Quem chora ahi?—perguntou o abbade.

Ergueu-se o Eusebio da Entrevada.

Era um pequenino de oito annos, muito pobresinho, com um palmito de cara que estava mesmo a pedir pão.

Era um cinco reis de gente, o Eusebio.

—É o da Emprégada—explicou o do Moleiro.

—Anda cá, menino—chamou o abbade—anda cá. Tu porque choras?

O pequeno aproximou-se para justificar as suas lagrimas, mostrou ao reitor os dois lapis roubados.

—Ah! foste tu, Eusebio?!

E Jesus! O pequeno chorava que era um dó do coração! E nem podia responder; apenas acenava.

—Então foste tu. E, olha, para que os tiraste?

—É que o sr. mestre—balbuciou o criminoso—disse-me que trouxesse eu um lapis, e eu não quiz pedir o dinheiro á minha mãe, que está emprégadinha na cama, e nem tem dinheiro para o caldo. E depois com medo de que o sr. mestre me batesse…

—Pegaste n’um lapis. Foi assim?—concluiu o parocho.

—Foi, sim, senhor.

—Mas tu tiraste dois!

O pequeno desatou a chorar.

—Para que tiraste dois?—insistia o padre.

—Era—explicou o Eusebio—para quando se acabasse um!…

O mestre estava já de palmatoria prompta.

O Eusebio estendeu resignado a mãosinha trémula.

—Basta—terminou o abbade.—Eu prometti que se perdoava a quem confessasse. Para outra vez, querendo alguma coisa, vae-me pedir, ouviste? Que eu não tenho tempo de saber o que vos falta. Ora vae para o teu logar, e promette que não tornas a fazer outra.

O mestre Joaquim sentiu muito não applicar o correctivo.

—Deixe lá, sr. Joaquim—dizia-lhe o abbade.—É preciso muita misericordia para tratar as creanças. Lembre-se do que dizia Jesus: Sinite parvulos venire ad me.

O mestre, que não sabia latim, mas que diante do curso quiz occultar a ignorancia, respondeu a sorrir com ares de quem percebia:

—Et cum spiritu tuo!