Quando Gertrudes chegou á portaria acompanhada da tia e do primo, no relogio da torre do convento bateram pausadamente cinco horas da tarde.

O mosteiro de Santa Clara ficava situado no respaldo de uma collina e emboscado n’uma deveza de carvalhos.

Era nos primeiros dias de novembro. O céo, toldado de nuvens, que corriam para o norte batidas de um vento aspero, estava de uma tristeza indefinivel. Ás vezes, uma nuvem mais densa, côr de chumbo e pesada, escurecia o firmamento, e uma chuva miudinha, como um borrifo, cahia então obliquamente. Quando passava a chuva, um pé de vento forte e rasteiro levantava em redemoinho as folhas amarellecidas do outomno, que alastravam o chão.

A fabrica do convento era pobre, de frontaria humilde; e as paredes escuras e deterioradas pelo decurso dos annos accentuavam o conspecto melancholico e lugubre da clausura.

Em um nicho fronteiro á porta da entrada, apparecia a imagem de Santa Clara, vestida com o habito de freira, os olhos extacticos levantados para o céo, suspendendo, com fervor ascetico, nas mãos brancas, uma custodia doirada. Debaixo do habito appareciam os pés da santa, quasi nús, crusados no peito pelos atilhos amarellos das alpargatas.

Diante do nicho, uma lampada de ferro, pendente d’um carritel, oscillava como um thuribulo; e a luz tenue da lamparina bruxuleava a espaços, ainda esmorecida na claridade poente do dia.

Antes d’entrar, esteve Gertrudes com a cabeça descahida sobre o hombro da tia, a chorar; depois, cingiu-a estremecidamente no derradeiro abraço, soluçando:

—Adeus, minha tia, adeus!

Aproximou-se de Matheus, que assistia do lado, pallido e trémulo, áquella separação, abriu os braços para o apertar, e disse-lhe com voz debil, fitando n’elle os olhos rasos de lagrimas:

—Matheus!…

E transpoz soluçante e opprimida o limiar do convento.

* * * * *

A communidade viera receber á entrada, segundo as praxes conventuaes, a soluçante noviça. As freiras professas e as recolhidas estavam dispostas em duas filas, tendo á frente a madre-abbadessa, já muito velha, arrimada a um baculo de prata lavrado.

Aquella sala de recepção era humida, espaçosa, fria e soturna. Entrava-lhe a luz tenue coada pelas rexas oxidadas de duas frestas, que davam para o claustro. Ao fundo, sobre um altar e no meio de duas jarras com palmas e flôres artificiaes, estava a imagem de um Christo de metal amarello, com os braços abertos cravados nos braços de uma cruz de jacarandá. No peito nú e descarnado do Christo reflectia-se, como uma chaga viva, a luz vermelha da lampada de latão suspensa do docel.

A escrivã passou o braço com protectiva ternura á cinta de Gertrudes, e encaminhou-a para diante da abbadessa, dizendo-lhe a meia-voz:

—Beije a mão á nossa madre-abbadessa, menina.

Gertrudes baixou os labios á mão trémula da freira, e recebeu n’uma postura humilde, com os olhos fechados, o abraço receptivo. Em seguida abraçou-a a escrivã; e depois, de abraço em abraço, foi Gertrudes passando todas as freiras e senhoras recolhidas até á derradeira.

* * * * *

Abria para a cêrca a janella estreita da cella de Gertrudes.

Avistava-se ao longe, recortada no azul limpido do céo, a cumiada alvacenta e escalvada de uma serra.

Mais abaixo, por entre a verdura da encosta, descia a estrada em largas curvas, como uma fita que se vinha desenrolando e alargando pelo monte.

Ao meio-dia, quando o sol cahia perpendicular, a diligencia subia vagarosamente, levantando espessas nuvens de pó. Viam-se os almocreves, que vinham á cidade, trazendo pela arreata a recova dos machos.

Em madrugadas serenas, ouvia-se até o chiar longinquo dos carros de bois pelos atalhos das aldeias, o telintar monotono das campainhas dos machos e o estalido secco do chicote da mala-posta.

Um dia, logo que sahiu do refeitorio, emquanto as freiras se recolhiam ás cellas para dormir a somnata da sésta, dirigiu-se Gertrudes para a cêrca.

Era uma hora da tarde.

Na horta, as largas folhas das couves pendiam desmaiadas com o calôr intenso da estiagem. Na ramaria verde do pomar rumorejava uma viração agradavel. Em torno á folhagem escura das laranjeiras, na vibração da luz, agitava-se uma nuvem transparente de ephemeros.

Por debaixo das latadas passeiavam de braço dado algumas meninas recolhidas.

Gertrudes seguiu sósinha, cosida com o muro, por onde havia uma esteira de sombra. Ao fundo da cêrca, encostado ao tronco de uma magnolia, que projectava no saibro secco e faiscante da rua uma larga sombra, havia um banco de pedra.

Gertrudes sentou-se, tirou do bolso do avental um livro brochado, e abriu-o cuidadosamente, retirando com as pontas dos dedos, d’entre as folhas marcadas, um grande amôr-perfeito já mirrado e desbotado.

Ao cabo de alguns minutos de concentrada leitura, ouviu pipillar em cima.

Na extremidade de um ramo, que balouçava de leve, chilreava um passarinho, inclinado para baixo, entreabrindo assustado, com fremitos, as azas. Gertrudes poisou o livro de banda, subiu ao banco, e, fincando-se na ponta dos pés, aprumou-se para espreitar.

Entallado n’um esgalho e meio occulto na folhagem, havia um ninho fôfo e tépido, do qual surdiam duas cabecinhas pennujentas. Poisada no rebôrdo do ninho, estava uma toutinegra, ministrando o alimento aos filhos.

Gertrudes estava encantada! Até suspendia a respiração, com receio de perturbar a tranquillidade do ninho!

* * * * *

Á noite, com a cabeça deitada sobre a brancura virginal do travesseiro, a noviça suspirava e sorria, acalentada n’um sônho de creança!

Ora vejam!

Estava de pé, sobre o banco da cêrca, espreitando o ninho da magnolia. Os passarinhos implumes abriam soffregos o bico para receberem da mãe o alimento.

Gertrudes identificava-se tanto com o que via, que—em sonho—chegou a sentir o goso ineffavel da mãe que administra o sustento aos filhos. As cabeças pennujentas dos passaros do ninho—que graça!—já lhe pareciam duas cabecinhas loiras de creança deitadas no mesmo berço!

E o passaro que chilreava em cima, alcandorado no ramo superior, foi perdendo, pouco a pouco, a fórma que tinha e—como a gente vê n’um quadro dissolvente—foi transformando a cabeça pequenina de ave n’uma cabeça de homem, com cabellos annellados, os olhos pretos e vivos, o bigode farto, e um dôce sorriso de pae…

E entreviu, então, Gertrudes, atravez d’uma nuvem côr de rosa, em que o seu espirito se emballava, a imagem clara do primo Matheus, que a contemplava, a sorrir!…