EPISODIO DA HISTORIA DA INQUISIÇÃO EM HESPANHA
I
Quem o visse sentia-se atrahido para elle por uma fatalidade irresistivel. O olhar encovado e scintilante tinha a fascinação da onça refalsada. A estamenha monastica da humildade era uma arma de que se servia. A côr sombria do remorso, que o ralava interiormente, sabia invertel-a tão bem na maceração da penitencia, que assim facil lhe era devassar todas as consciencias, e submettel-as ao seu capricho, tyrannisal-as, alimentando sempre uma infinidade de horrores futilissimos, com que as trazia suspensas. Cabisbaixo, meditando continuamente um longo plano de vingança, de uma sevicia obscura e mesquinha, os que o viam achavam n’aquella gravidade satanica de monge um ár contemplativo de compunção piedosa
O frade fez-se Director espiritual.
De uma extração illustre, rico, herdeiro de um grande nome, porque despresaria as pompas do mundo, os amores do seculo, as glorias? Acordar-lhe-hiam os annos todos esses sentimentos a um tempo na alma, e o horror do impossivel tornal-o-hia hypocrita, apagando-lhe a esperança com o sopro do cynismo? Elle amára a filha de um velho fidalgo de Hespanha, que desejava tambem realisar essa alliança dos seus pergaminhos com as grossas sommas do enamorado de Hernanda, a madrilena engraçada, de ingenua desenvoltura. Hernanda, na morbidez voluptuosa da sua natureza oriental, nunca mais sorriu, nunca mais deixou vêr aquella alegria impaciente que a animava, logo que soube a resolução da familia. Detestava o galanteador, aborrecia-o de morte, resistindo sempre ás instancias e ameaças do pae, que procurava sacrifical-a aos interesses e pompas do seu brazão de armas.
Hernanda tinha um amor de infancia, puro, recondito; como um raio de luz que nos fecunda ao desabrochar da vida, aquella affinidade precoce e ignorada de todos fora uma intuição do sentimento. Amaram-se longo tempo sem saber o que era amor. Quando um dia acordaram á luz sentiram necessidade um do outro, a anciedade de uma mesma aspiração identificou as suas almas para sempre. Cedo o noivo proposto soube da existencia de um rival obscuro. Procurou-o, farejou-o na sombra, lançou-lhe o repto. Encontraram-se. Ambos corajosos e fortes bateram-se destemidos em um duello a todo o transe.
Logo que Hernanda soube da morte do seu amor primeiro jurou um odio eterno ao assassino. O velho fidalgo não comprehendia estas coisas; ameaçou-a com o convento. A idéa da clausura, em vez de amedrontal-a, sorriu-lhe; era um refugio, o unico que lhe restava no mundo, depois de perdida a esperança que resume todas as que se podem ter na vida. Professou.
O galanteador assistiu impassivel na egreja, para ouvil-a pronunciar os votos. Havia n’aquella coragem uma alegria selvagem, egoista, para vêr que a mulher que elle amava debalde, não havia de pertencer a mais ninguem. Depois de satisfeito este instincto, lembrando-se de que fôra ludibriado, despresado, passou-lhe pela cabeça uma idéa atroz de vingança. Queria salvar o seu orgulho ferido. Lembrou-se tambem de abandonar o mundo, esconder-se debaixo da cugula monastica. Para os que o conheciam foi um rasgo heroico de resignação; para elle era um meio de poder vêr de mais perto Hernanda: só assim podia tortural-a, vir a ser seu Director espiritual.
O socego da solidão deixa apreciar os ruidos mais imperceptiveis; Hernanda na mudez da cella, na ausencia completa de interesses que lhe povoassem a existencia, era impressionada profundamente pelos sentimentos mais leves que lhe passavam n’alma como as auras suaves pelas cordas de uma harpa. A imaginação desenvolvera-se a tal ponto, que a fazia soffrer. Foi assim que frei Pedro, o disfarçado monge, veiu a ser seu Director de consciencia. Elle exagerava as doutrinas mysticas do dualismo, o predominio do mal, essa lucta incessante do espirito contra a carne, fortificada pelas mortificações do corpo, pela vigilia, cilicios, jejuns, e orações fervorosas. Provocava-a a abstrahir do goso dos sentidos, a contrariar a natureza e abnegar da vida. Apontava-lhe a natureza risonha e luxuriante como uma voluptuosidade, o regosijo e sêde de amor que a harmonia do universo infunde como uma infracção á regra austera da perfectibilidade.
Era preciso a solidão para gosar essa existencia intima, recondita, e arrebatar-se até Deus. Com o silencio imposto, arvorado em preceito, exaltou-lhe a vida interior, e o tumulto de idéas que se succediam prolongava a excitação cerebral. A vigilia extensa e continua, a maceração e a leitura piedosa foram-lhe desconcertando o equilibrio nervoso. As visões extravagantes cercavam-na; vozes estranhas segredavam-lhe palavras assombrosas, que ella repetia tremendo na penumbra do confessionario.
Foi então que o monge, depois de a ter desprendido pela ascese insistente dos limos da terra, lhe começou a falar de amor, o amor divino, a anciedade preenchida pelo vacuo, a sêde mitigada com a calma do dezerto. A imaginação perdida n’esse ideal vago, sem realidade possivel, delirava, revestia a imagem palpavel com todos os encantos de um devaneio sensual, dava-lhe vida, amor, para corresponder ao que tumultuava na sua alma solitaria. Mulher, menos curiosa da razão sufficiente das cousas, sujeita a perturbações hystericas, enamorava-se da fronte altiva e conjuntamente modesta do Christo, como a representavam os pintores da Edade media; esquecia-se da vida exterior, parecia que a alma livre se absorvia na imanencia da divindade. Era este amor, inspirado pelas imagens dos templos, tão desvairado como a paixão do artista grego pela estatua eburnea que palpitava debaixo do escôpro. Santa Rosa de Lima amava uma imagem da Virgem que tinha nos braços o bambino. Ozana de Mantua, diante de uma imagem linda, caía em extasis. Estas figuras de Jesus, radiantes de candura e fascinação, bellas, fallavam aos sentidos; é por isso que o amor divino tem na sua vehemencia e transporte um caracter sensual, como o exprimiram o solitario da Ombria nos seus cantos a Santa Clara, S. João da Cruz a Santa Thereza de Jesus, Madame Chantal e S. Francisco de Sales, Fenelon e Madame Guyon.
O Director espiritual da desditosa Hernanda, descrevendo-lhe o amor divino, isempto da zelotypia das paixões do mundo, não tendo a alma candida de nenhum d’esses apaixonados e santos poetas, presentira, dois seculos antes, a theoria ascetica de Molinos. Tinha em vista matar o peccado pelo peccado. Era impossivel já. Hernanda pairava em espirito pelo empyreo; sua alma pura abysmara-se na immensidade do fóco de todo o amor. O extasis em Hernanda, originado pelo fervor piedoso, era o entorpecimento dos sentidos, um scismar indolente á cadencia dos inefaveis concertos das cytharas dos cherubins.
Então o Director de consciencia descobriu uma nova tortura para flagellal-a; tinha um prazer infernal em tornar-lhe lento o soffrimento. Elle mostrava-lhe que era o extasis o mais alto favor do céo concedido aos seus eleitos, e descobria ao mesmo tempo como isso era para todos os grandes santos uma provação difficil, pelo terror dos proprios merecimentos. Sam Paulo, o que melhor revelou nos seus escriptos o espirito do christianismo, na Epistola segunda aos Corynthios, fala d’este terror.
N’aquella virgindade timida da alma, o corpo foi caindo em inanição; tinha uma immobilidade beatifica. Apesar de todos os flagicios e macerações, o rosto conservava ainda a frescura da rosa entreaberta, rociada pelo orvalho matutino. No passamento das virgens, sereno como o declinar de uma aurora vespertina de primavera, Jesus visitava as suas desposadas, como referem os legendarios. Hernanda abrazára-se no amor ardente do céo; o vacuo absorvera-lhe o derradeiro alento e sua alma soltou-se na ancia do infinito. Alta noite, sentiram-se umas harmonias transbordando em enchentes do orgão do mosteiro; era uma musica indisivel, nunca ouvida na terra. Foram vêr; ninguem percorria o teclado. Melodias suavissimas e remotas derramavam-se da cella de Hernanda. Entraram. Respiravam-se perfumes aérios em torno d’ella. Um sorriso diaphano, angelico, lhe ficára nos labios desbotados, como a ultima vibração de uma harpa que se quebrara; parecia a incarnação de um sonho melifluo das harmonias de Palestrina.
II.
Desde o romper d’alva, que os sinos da Cathedral eccoavam clangorosos n’um dobre funerario; o povo agitava-se inquieto pelas ruas, como na impaciencia de uma grande festa. Era o dia de um Auto de Fé em Hespanha, uma solemnidade extraordinaria, com que se celebrava e honrava a coroação dos reis, o nascimento do herdeiro presumptivo, e a sua maioridade; era o grande drama judiciario da velha jurisprudencia theocratica revestido dos horrores do symbolo, mesclado de sangue derramado pelo fanatismo e prepotencia monachal. A procissão vinha coleando ao longe, com uma gravidade funebre, misturada de risos do rapazio que tudo parodía. Por todas as janellas negrejavam cabeças, donzellas engraçadas, contentes, distraidas com a festividade apparatosa. Á frente das confrarias e irmandades, os carvoeiros traziam a lenha para a fogueira, imitando o passo da Escriptura, em que Isaac caminhava para a montanha do sacrificio. Seguiam-se em filas extensas os frades dominicanos, arvorada na frente a cruz branca, e o bolsão inquisitorial de damasco vermelho do duque de Medina Celli. Os penitenciados vinham vestidos de um modo irrisorio e grotesco, descalços, cobertos de um sambenito, com um chapeu afunilado, com figuras cabalisticas, diabos, labaredas e caveiras pintadas.
A multidão pavida e credula, sentia aquella grande contradição do coração humano, apupava os miseraveis que interiormente a commoviam e lhe arrancavam lagrimas de compaixão. Chegados proximo do estrado real, o Inquisidor geral veiu receber o juramento da extirpação das heresias. Os brandões crepitavam nas mãos dos condemnados; tornavam mais lugubre o momento. Depois viu-se levantar uma figura macilenta, a cabeça encoberta no capuz, cruzadas as mãos sobre o peito em que tinha repousado um crucifixo, o mesmo que um dia apresentára diante dos reis catholicos Fernando e Izabel, dizendo-lhes que—o vendessem por trinta dinheiros, já que se queriam tornar menos rigorosos contra os judeus. Era o prégador frei Pedro. A voz taurina fazia estremecer as turbas, representando-lhes ao vivo, nos esgares e visagens que fazia, os terrores das penas do inferno. A multidão estava suspensa ante as vociferações sangrentas do dominicano.
—Sabes… (disse um desconhecido para um cavalleiro ainda novo, que estava attento) não o conheces?
O outro respondeu-lhe em voz baixa, de um modo quasi imperceptivel:
—Ah, és tu, Diego Ortis? Bem o conheço pela fama de seu nome. É Pedro de Arbués.
E não te sentes possuido de raiva ao pronunciar esse nome de um hypocrita e assassino?
—Assassino?
—Sim! Bem o devêras saber, porque é a ti a quem compete a vingança. Elle pretendeu por todos os meios desposar Hernanda, tua irmã. Lembras-te? Era rico, e teu pae desejava com todas as veras d’alma este enlace. A infeliz menina resistiu sempre, até que se viu obrigada a professar em um mosteiro, abandonada da familia. Não é verdade isto? Ferido no orgulho, elle metteu-se a padre, disfarçou-se debaixo da cugula monastica e fez-se seu Director espiritual. Matou-a lentamente com jejuns e macerações, com a lembrança continua da tentação e da condemnação eterna. Pobre Hernanda! o mundo disse que morrera como uma santa; Deus sabe que desesperos profundos lhe abalaram a vida, e quantas vezes, no intimo da alma oppressa, não amaldiçoou a hora do seu nascimento!
—E como sabes isso?
—Como o sei? Eu digo-te só que a vingança não dorme. Tambem tenho um legado de sangue a cumprir. Era meu irmão o apaixonado, o eleito de Hernanda. Se ha nada mais santo do que um amor que nos acompanha desde a infancia. Alonso Ortis, doestado pelo rival audacioso, bateu-se generosamente e caiu ferido, morto á traição. Já comprehendes tudo.
—Inferno! Para que me disseste essas cousas aqui, entre esta gente? Sinto a convulsão da raiva que prostra, a sêde de sangue que me atira para elle. Hernanda! a desgraçada, a silenciosa, a timida, que tudo soffreu e nunca soube queixar-se! Eu quero trocar todas as tuas dores por um prazer egoista de vingança. Fala-me, Diego Ortis; o que queres de mim?
—Quero prudencia! Eu tenho esperado dia e noite, por toda a parte, e nunca o tenho encontrado! nunca esta mão deixou de repousar sobre o punhal, e ainda me parece que não é chegado o momento.
A este tempo o frade estava na peroração do discurso; a turba batia nas faces, consternada, por terra. Os dois vultos permaneciam de pé, insensiveis. O prégador desceu do pulpito e vinha acercando-se d’elles com um olhar ameaçador, para reprehendel-os da insólita irreverencia. O joven fidalgo precipitou os planos de vingança, e arremetteu com um punhal no ár: apesar do impeto com que foi brandido resvalou sobre o habito que encobria debaixo uma armadura cerrada.
Ergueu-se um susurro repentino. Era impossivel a salvação; com a ancia do desespero Diego Ortis descarregou-lhe promptamente sobre o craneo tonsurado a sua espada de cavalleiro. O povo alarmou-se e ia a precipitar-se sobre os facinoras; recuou de horror diante da impassibilidade dos dois. A estatura corpulenta do padre tomou as proporções de um Goliath, derrubado, banhado de sangue negro, a massa encephalica derramando-se pelas soturas fracturadas do craneo. Fazia horror.
N’aquelle mesmo dia os dois assassinos foram penitenciados; interrompeu-se a missa, e a procissão proseguiu levando-os para o Quemadero, onde, com os demais, foram devorados pelas chammas. Seguiram-se as pesquizas, as vexações e os sequestros; com os seus processos tenebrosos a Inquisição lançou a rede por sobre muitas familias. A Hespanha era, como se disse, uma grande fogueira. Mas como ha uma antithese fatal na natureza humana, manifestada muitas vezes, a cada instante da vida, na transição instantanea do sublime ao ridiculo, Roma parodiou tambem esta scena sanguinolenta do drama tetrico de Torquemada na farça jocosa da canonisação do frade prégador, que ainda hoje se venera nos altares e de quem resa a folhinha com o nome de S. Pedro de Arbués.
Ora pro nobis.