LENDA DO SECULO XI

I

De um bom irmão um mau christão

O monge começou assim a sua historia:

No tempo em que os walis de Cordova tinham quasi todo o reino sujeito, é que succedeu o que vou contar. Estava o conde D. Henrique a entrar por dias, e com elle vinham boas lanças para o ajudarem a resgatar do poder dos infieis as provincias de Portugal. A essa hora nos castellos da fronteira não se descansava de dia, nem de noite; ninguem despia as armas; e quer luzisse a manhã, quer cerrasse a tarde, o clarão das almenáras, ou o rebate das trombetas não consentia nem leve repouso aos defensores da verdadeira lei. Nas ameias, ou no campo da peleja, não se socegava um momento. Os melhores castellos ainda tinham a voz dos descridos; muitas terras pagavam-lhes tributo; e as bellas tapadas do Minho e do Alemtejo eram para elles correrem os veados, os ursos e os javalis. Do marmore de nossas pedreiras arrancavam as columnas e as ricas laçarias de seus paços. Tudo na abençoada primavera d’este formoso jardim chamado Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o seu deleite. Nas campinas floridas, em que a lua nasce suave como sorriso infantil, e o ceu brilha radioso como olhar de virgem namorada, a tristeza até parecia desmaiar o sol. Antes de o tragar o inferno, cujo é, o arabe sensual passava pelo paraiso, que nos tinha roubado! Por isso a saudade do que perdeu lhe punge tão viva hoje o coração!…

—E não havia cavalleiros, que lhes estalassem as lanças no peito, bradando: esta terra é nossa! acudiu Martin Paes.

—Havia! redarguiu o frade. Mas eram poucos. N’aquelles dias de captiveiro todos inclinavam a fronte, regando de lagrimas os sulcos da charrua, guiadas por mãos de escravos. Deus exalte o braço victorioso, que nos deu outra vez a terra de nossos paes, que fez nossos, a casa em que abrimos os olhos, o cemiterio aonde dormem os que nos amaram, a arvore que nos cobriu com a sombra a infancia e a velhice, e a fonte que ferve ao pé do rosal!… N’aquelle tempo, quando o mouro passava, baixavam todos a vista, porque elle era o senhor.

—Mas a terra havia de ser então quasi um deserto, padre?

—Não. As espigas douravam-se nas searas como agora; os campos vestiam-se de relvas e de arvoredos; as noras gemiam nas hortas; e os gados pastavam nos montes. Mas a terra, tão alegre por fóra, toda era magoa e desconsôlo por dentro; porque a terra, em que sômos escravos, mesmo que seja a da patria, parece-nos mais só e vasia, do que um êrmo. A casa alheia, a courella que é de outro, e o fogo accêso na lareira a medo, fazem-nos chorar, porque nada d’aquillo é nosso, e hoje, ou amanhã, podem dizer-nos: sáe! O reino vivia, como vive agora; o que estava morto era o coração do homem. Resplandecia o mesmo sol, corriam as mesmas aguas, nasciam as mesmas flôres; porém as creanças não brincavam por baixo dos pampanos da vinha, como brincam estas; e a donzella assustada, tremendo de se vêr formosa, não se assentava tranquilla, como aquella, debaixo da amendoeira em flôr ouvindo descantar o rouxinol por cima da cabeça. O harem do sarraceno, aberto diante d’ella, como um abysmo, fazia-a empallidecer. De um momento para outro podia ser obrigada a escolher entre a deshonra e a morte.

—Que martyrio não seria a vida assim?!…

—Era! Foi!… Mas viveu-se, e por quantos annos!… O dia declina. Faz-se tarde. Quereis que continue?

—Oh, de certo. Fallae!… Todos vos ouvimos.

—No tempo que disse, lavrava a discordia entre dous ricos homens nas terras de Alem-Douro, afirmavam uns que por amor dos lindos olhos de certa dama, juravam outros que por causa da aposta de um cavallo. De seus castellos os dous inimigos, postos defronte, corriam o campo talando vinhas, pomares e cearas, e mal um se descuidava, o outro, assaltando-o, vinha logo acordal-o a ferro e fogo. Em suas mesnadas, ou companhas de homens d’armas, ardia a guerra em toda a furia. Nos casaes assolados de ambos, o solarengo ou o pastor nunca sabia se ao anoutecer recolheria os frutos, e os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao clarão das labaredas, para enterrar algum dos seus assassinado.

Por fim o cavalleiro mais velho accommetteu o paço acastellado do contrario, e tomou-o á traição, deixando a cabeça do senhor cravada nas ameias. Aconteceu isto vespera de S. João, por alta noute, quando todos festejavam o bemdito Santo com fogueiras, cantigas e follias. O cavalleiro tinha um filho e um irmão. O filho de edade tenra; o irmão temido pela indole e pelo braço. Entraram e sairam os annos assim; a creança fez-se homem; e de parte a parte a aversão das duas familias cada vez crescia mais. O rio que as separava, tingiu-se de sangue por muitas vezes, e os sinos não cessavam de dobrar na egreja pelos que morriam. O tempo, que tudo gasta de dia para dia, parecia avivar mais aquella rixa. A este tempo o herdeiro do cavalleiro assassinado era já um mancebo louvado pela destresa nas armas e pela prezença gentil a cavallo e nos saráus. Chamava-se D. Moço Ansures, e vendo-o passar, esbelto e affogueado da carreira, com o falcão no punho, as donzellas sorriam-se e córavam, e os homens saudavam-o admirando a fiel imagem do rico homem morto na vespera de S. João.

D. Moço ainda não dissera a mulher nenhuma: amo-te! Um dia, por desgraça, viu a neta do senhor do solar inimigo, e logo o coração esquecido da vingança guardou para sempre a doce imagem. O sangue do pae derramado á falsa fé, as malquerenças de tantos annos, as promessas da meninice e da juventude, tudo d’ahi em diante se apagou da sua alma para não vêr outro sol, outra luz, senão a dos bellos olhos, que o tinham feito seu captivo. Segredos de Deus! Do maior odio rebentou o mais constante amor!… Correram mezes, e o affecto escondido saltou aos olhos de todos. Os parentes lançaram em rosto ao mancebo a sua fraqueza, mas a paixão pôde mais, que as memorias do tumulo, que deixava sem vingança. Por ultimo, cansados das guerras dilatadas, os rancores cederam, e o casamento ajustou-se. Uma rosa veiu unir as duas casas inimigas. O sorriso de uma dama veiu aplacar no sepulcro os que não podiam dormir o somno eterno, e os que haviam jurado não perdoar. Aprazou-se para vespera de S. João o ditoso enlace. Seria proposito, ou acaso? N’esse dia contavam-se justamente quatorze annos, que o pae de D. Moço de Ansures fôra assassinado.

O homem põe e Deus dispõe!

O cavalleiro morto tinha, como disse, um irmão, que lhe queria mais do que á propria vida. Haviam nascido ambos vespera de S. Pedro, e escusado fôra procurar mais do que uma vontade e um affecto nas duas almas. D. Inigo Lopes, era o nome do irmão mais novo, andava ausente. Acertou chegar de longe, quando estavam pregando as taboas do caixão do infeliz. A dôr fez de D. Inigo uma estatua, e sete dias com sete noutes o viram todos jazer deitado sobre a sepultura. Parece que a terra, comendo-lhe os ossos do irmão, consumia ao mesmo tempo n’elle tudo que tinha de humano. Quando rompeu a alva do oitavo dia, e se levantou, trazia a cabeça e as barbas brancas como neve. Envelhecêra ali um seculo em sete dias! Nem um lagrima nos olhos seccos! Nem um soluço do peito mudo. Deixou sobre a campa espada e arnez, e levou só comsigo o punhal. Ao entrar ainda fizera o signal da cruz, mas, saindo, Jesus! voltou as costas ao altar. Os anjos nos defendam!

O que fez sete dias com sete noutes D. Inigo só e encerrado na capella? Se alguem o soube foi a cova fria. Contavam, depois, que um monge na ultima noute vira a pedra do tumulo erguida sem lhe tocarem, e um corpo crescer da sepultura e a mão do morto apertar a mão do vivo. Illusões! Quem vae nunca mais torna. O que não foi fabula, porque todos o presencearam, foi ao oitavo dia rebentar com o primeiro raio de luz uma rozeira do centro da cova, tão viçosa e robusta como se existisse ha muitos annos. Que frescas rosas e que lindos botões nos ramos! Mas se queriam apanhal-os por devoção, murchavam nos dedos; se tentavam cortar uma pelo pé, o sangue corria da haste como se corresse de veia aberta. Em cada ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas vermelhas. E que outros tantos dias se contavam tambem desde que o corpo do valente cavalleiro descera á sepultura trespassado de sete feridas.

Nunca mais se soube, ou se fallou de D. Inigo. Dizia-se que sete annos com mais cinco vagueára como peregrino, pelos desertos, que Deus pisou, comendo das ervas do monte, bebendo da agua das nascentes, dormindo ás inclemencias do tempo. Que vida penitente a d’aquelle Santo! Vozes do mundo! O Senhor, que lê nos corações, ha muito que tinha desviado os olhos d’elle. Com ser christão nascido nunca mais ajoelhára á cruz, ou se encommendára á Virgem. Quasi ao cabo do longo desterro anouteceu-lhe no deserto da Tentação ao atravessar pela terceira vez a Palestina. Valha-nos Maria Santissima!… De repente as areias inflammaram-se em um mar de fogo; o ceu cobriu-se de trevas; e nas pontas recortadas das altas rochas dançaram, crusando-se, milhares de luzeiros. Ouviu-se então na vasta solidão do ermo um brado immenso. D. Inigo respondeu, e o pacto, que ali firmou, foi tão negro, que a lua tornou-se côr de sangue e sumiu-se, que as estrellas esconderam tremulas a sua luz. O christão acabáva de vender ali a alma ao inferno pela vingança. Desde aquella hora seguiu-o sempre por toda a parte, como a sombra segue o corpo, a imagem do irmão assassinado. Ajoelhára ao poder de Satanaz, elle que não se prostrára diante da cruz, e rasgando as veias afirmára o juramento. Quando se ergueu soou o cantar do gallo por tres vezes no espaço, repetido pelos echos, e risadas tremendas, levantando-se das aguas immoveis do Mar Morto, applaudiram a victoria do espirito do mal. O reprobo escarneceu do passado. Uma blasphemia atroz saltou-lhe da bocca. Mas elle que se ria de Deus e do inferno, estremeceu sentindo fugir-lhe a terra debaixo dos pés, como horrorisada do peso do seu crime. Aos primeiros passos o clarão dos relampagos cegou-lhe a vista. O temporal rebentava ao mesmo tempo no mar aonde as ondas se empolaram como serras, no ceu aonde os trovões estalavam uns apoz outros; na terra, que se abria em voragens, e no deserto, aonde o furacão, bramindo, cavava abysmos, e alteava montanhas, revolvendo em vortice as areias. Cedros antigos, como os do Libano, desabavam de pancada. As feras, timidas que nem cordeiros, acoutavam-se submissas nos povoados. Os homens elevavam suas orações a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo se fazia humilde e pequeno para a supplica, porque riria só o orgulho do culpado? D’ali em diante não passou uma hora sem elle se despenhar mais e mais fundo no precipicio. Raiava a manhã um dia e curvado sobre a corrente do Jordão, debruçava o cantaro e enchia-o. As ramas das arvores enfezadas torciam-se em toldo raro sobre a ribeira. A duas passadas de distancia caíra um velho desfallecido de sede e de fadiga. Bastava uma gota d’aquella agua para lhe restituir a vida. D. Inigo negou-lh’a entornando-lhe de proposito o cantaro diante dos olhos para lhe exacerbar o tormento, diante dos olhos que estavam tragando de longe a agua, que o maldito derramava zombando da sua agonia, e dizendo-lhe por mofa: «chama pelo teu Deus e pede-lhe uma nascente ao pé de ti!» O Senhor não accudiu com prodigios ao seu servo. Quiz que expirasse vencedor do inferno. Mas, desde aquelle crime, a sêde intensa ateiada nas entranhas do reprobo, nunca mais se aplacou. Os rios e as fontes convertiam a fresquidão em fogo para o abrazar. A gota de agua negada no deserto pesára na balança do Senhor largos seculos de culpas.

Cumpridos doze annos, D. Inigo voltou, sem se saber como, á terra em que nascera. Disseram que um cavallo da côr da noute, com os olhos todos chammas, o trouxera em breves instantes da Judeia a Portugal. A cauda varria o pó, a respiração era toda fogo, e as crinas ondeavam ao vento. Diante d’elle as mais altas montanhas encolhiam-se e tornavam-se outeiros; o mar e os abysmos solidificados aplanavam-se; e no perpassar do galope infernal os carvalhos inclinados tremiam e beijavam o chão, flexiveis como juncos. Cavallo e cavalleiro não corriam, voavam! Debaixo da ferradura magica as aguas tomavam a dureza do diamante: a terra oscillava, e mil faiscas, saltando da cratera dos vulcões, vinham coroar o rei do fogo. Ao romper da aurora o corsel retrahiu-se, e estacou. Apontava o dia no topo de uma cruz de pedra. Não passou d’ali. Á medida que ia aclarando a manhã adelgaçavam-se-lhe as formas e do primeiro raio de sol dissolveu-se desfeito em fumo.

Quando acabou de desapparecer tangia um sino. D. Inigo olhou e conheceu o sitio. Estava junto da egreja aonde fôra sepultado seu irmão. Ao primeiro passo que deu, descerrou-se o portal por si mesmo; ao segundo illuminou-se a capella repentinamente; ao terceiro as rosas vermelhas cairam seccas e as brancas floriram juntas. Um cantico suave dentro levantava o Ave maris stella. Estava aplacada a vingança do morto. A fé, porem, debalde chamava ali por Inigo; elle não a ouvia. A voz do ceu em vão lhe offerecia o perdão; elle, surdo, não escutava a palavra de misericordia! Orava n’aquelle momento a Deus, muito longe, um santo hermita pelo maior peccador. Arrebatado em espirito, viu um homem cuspindo por odio na cruz á porta de uma egreja. O anjo Custodio, ajoelhado no cruzeiro, banhava de lagrimas as vestes luminosas; mas o desacato gelou-lhe o pranto, e, cobrindo o rosto com as azas, subiu na aragem até se perder nos raios dourados do sol nascente.

«A tua clemencia, Senhor, é infinita! exclamou o justo. Haverá perdão para o que renega o teu Santo nome?»

N’este ponto a visão sumiu-se; as portas da ermida fecharam-se com estrondo; e uma voz, semelhante á da tempestade, bramindo nas selvas, repetiu ao longe: memento, homo, quia pulvis es!

 

II.

Não ha gosto sem pesar

N’aquelle tempo, em terras de alem Douro, que rico homem era mais poderoso e rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados do castello por valles, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um aceno trinta cavalleiros mettiam o pé no estribo, e centos de homens de armas e peões seguiam o seu pendão. Descendia da grande raça dos primeiros lidadores das Asturias, raça de bronze nos odios, e de ferro nas vinganças. A edade gasta os mais fortes, e açor velho não se remonta ás aguias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as madeixas brancas, D. Ordonho sentia que os annos não haviam passado em vão. Só a neta, a formosa Auzenda, unico amor da sua vida, podia distrahil-o das horas de tristeza. Mais do que filha, porque duas vezes era o sangue da sua alma, um sorriso d’ella quebrava-lhe a vontade, e uma lagrima só d’aquelles olhos lindos, transformava em cordeiro o leão embravecido.

Os atalayas vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens de armas crusam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa cavalgada, que se espera?

O sol já se escondeu de traz do ultimo outeiro; desmaiaram os derradeiros clarões no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua sobre as campinas, e nenhum cavalleiro, ou sombra d’elle, se avista em larga distancia ao redor.

No castello era vespera de noivado. Auzenda, a bella Auzenda, ia casar-se com Moço Ansures. Estava por horas a festejada vespera de S. João, e por horas tambem estavam a cumprir-se quatorze annos desde que os monges negros rezaram o officio de finados em volta da tumba do cavalleiro assassinado.

Porque se via Auzenda tão pensativa olhando do seu balcão para a corôa do outeiro, que fica defronte? Cordova e Granada, os dous Edens da formosura, entre mil não se ufanavam de possuir perola de egual valia. Aquella belleza era sem par. Sorria-lhe o ceu nos labios; ondeavam os cabellos em tranças d’ouro soltas á briza; e os olhos azues, aonde amor suspira, oh! quem podéra vencel-os depois de vencidos por elles! Delgado cinto aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O veu de tisso bordado ora folga livre com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio palpitante. Ao raiar da alva tinha saido. Os pés, como os da corsa gentil, que a acompanha, fogem tão leves, que mal trilham os musgos das fragas na serra ingreme. As rozas accendem o rubor na face assetinada desmaiando os lyrios. Boninas e cecens tecem a coroa silvestre pousada na fronte. Ajoelhou á cruz solitaria, e a oração matinal subiu casta e pura do coração ao throno do Senhor, no meio das fragrancias da aurora. O vestido branco desenha confusamente as fórmas, e visto de longe fluctua nos vapores da madrugada. Dir-se-hia visão celeste que os raios da primeira luz vão desvanecer. Ella a chegar, e um cavalleiro a correr do lado opposto. O açor do Douro remata-lhe o capello de aço. É D. Moço Ansures. Ajoelha a seu lado e juntos offerecem a Deus as premicias do amor.

—Voltais logo? perguntou a donzella corando.

—Ao cerrar da tarde! responde mettendo-a na alma com o apaixonado olhar.

—Tão tarde!?

—Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!…

—Não! Mas!…

—Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui!

Separaram-se. Elle despediu o cavallo pelas gargantas da montanha, ella seguiu-o com a vista, saudosa até desapparecer por traz do ultimo outeiro.

Porque chora a bella Auzenda? O que lhe diz o coração? É por isso que a donzella scismava sosinha ao cair do dia no seu balcão? Seriam receios de noiva a combatel-a, ou saudades de namorada? Baixou a tarde, fechou-se a noute, e quando as estrellas começavam a tremer na abobada do ceu, recolheu-se suspirando. Quasi ao mesmo tempo soava a sineta da atalaya. Donas, cavalleiros e pagens principiavam a entrar no castello, attraidos pelos festejos. As armas reluzentes, as plumas de côres diversas, os tabardos de matizes variegados deslumbravam, vistos á luz dos fachos. O som das trompas, os latidos dos lebreus, os relinchos dos cavallos, e as vozes dos peões animavam de mil ruidos alegres o quadro do noivado. O conde Ordonho sobresaia no meio de todos pela estatura. Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O seu brado vencia o estrepito.

—Pagens! Escudeiros! Fazei honra! exclamava cortejando os recem-chegados com a bocca cheia de riso.

Falta, porem, um homem na festa e com elle tudo falta. A ultima hora do dia, segundo sua promessa, deveria tel-o trazido aos pés de Auzenda, e com a noute cerrada não chegava!… Do lado das montanhas não havia rebate de mouros. As almenáras apagadas não davam signal de inimigos. Que motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando tão meigo e desejado? Porque se ausentára n’aquelle dia, em que tantos estremos o convidavam a não se apartar dos bellos olhos que o prendiam? Um juramento sagrado! Um voto! Promettera a Deus, para expiar aos olhos de todos a união das duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o tumulo de seu pae. Por isso deixára Auzenda junto da cruz de pedra ao romper da aurora. Por isso as horas passavam e a saudade impaciente da noiva as contava tão vagarosas!

 

III.

Deus seja comnosco

Na sala de armas do castello soam mil vozes de jubilo. Que luz faisca das malhas pulidas e que reflexos, que cegam, saltam dos dourados capellos! Cavalleiros moços fallam de amores, inclinados sobre os estrados das donas e donzellas. Violas e doçainas acompanham as coplas dos trovadores. Mais adiante, em turbilhões de cem côres, em collos ondeados e graciosos, giram e volteam as dansas, e o olhar furtivo de alguns pares promette, em breve, dias semelhantes a mais de um solar.

Na vasta quadra apparelhada para o festim em quanto os convivas não entram, o vento geme por entre frizos e laçarias dos delgados columnellos. A lua, alta no ceu, entorna pelos vidros corádos das frestas golphadas de luz branca. De repente as trompas quebram o silencio. Avizinha-se, e já se reflete nas paredes, o clarão de muitas tochas. Povoa-se a sala, innundada de luz subitamente. Os escanções enchem as taças e fazem-as circular em roda. Saudes, acclamações, e vozes crusam-se, trocam-se e voam em confusão jovial de um a outro extremo da casa. D. Ordonho parece remoçado. Á sua direita senta-se Auzenda. Da esquerda um escanho vazio aguarda D. Moço Ansures. Defronte, em outro escanho, tambem vazio, estaria o pae do noivo, se podesse deixar a sepultura. Cobre-o um veu de luto.

A meio do banquete as dansas tornam a entrançar os pares como grinaldas vivas do festejo. Pelas portas abertas do alcacer enxameiam incessantemente donas, cavalleiros e monges, convidados pela hospitalidade quasi regia do rico-homem. As taças cheias de licor espumoso correm de mão para mão. D. Ordonho, de pé, alça a sua, e com a fronte erguida brada:

—Á paz dos christãos! Á ruina e confusão dos infieis! «Uma longa acclamação responde á sua voz: «Assim findem todas as discordias entre irmãos!»

Ainda não tinha pousado o vaso na mesa quando, voltando a vista, soltou um grito. Os convivas olharam tambem e ficaram immoveis com as taças suspensas.

No logar vazio destinado a honrar a memoria do pae de Ansures, appareceu de repente um homem sentado. Vestia armas pretas com a viseira callada e na cotta o açor bordado. Descalçando o guante direito, e empunhando a primeira taça cheia, ergueu-a lentamente.

—Bem fallado, conde Ordonho! (exclamou.) Á paz da noute de S. João!..

Não bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculando a toalha, tornou-se vermelho e vivo como sangue. No sitio em que pousou a taça uma malha de ferro em braza queimou a alvura do linho. Alçou então a viseira. Os olhos, as feições o os modos eram exactamente os do cavalleiro assassinado havia quatorze annos; porem os cabellos e as barbas brancas lembravam, que por cima do seu corpo passára o frio da sepultura.

Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, petreficados por um poder occulto, não poderam mover-se. O horror gelava a todos.

 

IV.

Enterro por noivado

Aqui Fr. Munio fez uma pequena pausa. Depois proseguiu:

Dava meia noute. A sineta da hermida repicou tres dobres compassados. Ao primeiro as dansas estacaram. Homens e damas, suspensos e petreficados, ficaram immoveis como estatuas. Ao segundo os sons emudeceram nas cordas das violas e alaúdes. A ultima nota tremeu solitaria e reboou pelos vaõs profundos das salas. Era surdo o sopro das trompas, e o canto dos jograes transformou-se repentinamente em dies iræ que retumbou. Os cabellos erriçaram-se de horror. Ao terceiro dobre o castello tremeu e vacillou dos alicerces, como se um terramoto o abalasse. Os eirados jogaram, as torres inclinaram pendidas. E o cavalleiro negro? Ainda o sino dobrava já tinha desapparecido. Que susto! Que pavor! Que immensos clamores! Muitos intentaram fugir. Debalde! As portas, sem ninguem lhes tocar, fecharam-se adiante d’elles. O portal maciço gemeu nos quicios e cerrou-se por si mesmo. Mãos invisiveis alaram as dobradiças.

Ai noute de S. João, noute aziaga! Valiam reinos os olhos que por amor de ti choraram; a alcachofra benta ardendo não brotou a flor de esperança; o palmito symbolico, em vez de rozas e de fructos, só ramas de cypreste esfolhou sobre o leito do noivado. Nos paços do conde ninguem se entendia. Estava sobre elles o poder do inferno. O suor frio borbulhava nas faces dos cavalleiros, e o tremor dos mais ousados fazia tinir a espada contra a espora. De repente raiou uma pluma de fogo na escuridão. Cresceu, alastrou-se e em breve as nuvens de fumo enrolaram-se com as labaredas enroscadas nos grossos madeiros dos tectos. Jesus! Acudi! O castello está a arder! Tudo isto se viu e se obrou em um abrir e fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados tão altos, e o fosso tão fundo! N’este momento rompeu a lua outra vez o toldo sombrio, que a velava, e o seu clarão pallido lançou como um sudario sobre o rochedo talhado a pique, que se aprumava a curta distancia sobranceiro ao castello. As aguas, rebentando ali á sombra de antigos choupos, ferviam de encontro ás fragas, e despenhadas espumaram batendo em cachões no leito da ribeira, que lá em baixo bramia arremessada por entre a bronca penedia.

Aonde está D. Ordonho? Junto de Auzenda desmaiada! Com ella nos braços por entre as chammas, que lhe crestavam o rosto, não correu, voou baixando de andar em andar, até ao terreiro. Ahi, olhando, viu tudo cerrado, as labaredas serpeando cada vez mais vivas e o castello pedra por pedra quasi a desconjuntar-se. Os cavalleiros escondiam as lagrimas envergonhados.

—Erusigis! Escudeiro!… A minha acha adamascada! clamou o senhor de St.ª Olaia. Este pulso pode com ella. Nem diamantes a embotaram. Aqui todos! gritou depois em grande brado.

Palpitou a esperança esmorecida nos peitos mais desalentados. Ergueram-se as achas… Golpes de cem machados, rigor furioso de cem robustos braços ferem a um tempo com ancia mortal a porta maciça e chapeada. O roble gemeu, o ferro chispou fogo, os gonzos tremem… Mas nas taboas nem signaes dos finos gumes. Os machados, estalando, lascam até aos cabos. Por cima do ruido das pancadas e do alarido das vozes rompem risadas altas. D. Ordonho volveu os olhos. Na coroa do rochedo campeia o cavalleiro negro. As aguas espumavam por baixo dos pés do corcel; a mão direita brandia um facho; a esquerda só peava com as redeas o cavallo preto, quasi no ar sobre o abysmo.

—Conde Ordonho! Esta fogueira faltava á tua festa do S. João. Accendi-a eu. Pago as arrhas da formosa noiva.

—Maldito!…

—Esquecias já D. Pedro Ansures, morto por ti ha quatorze annos?! Chegou o dia e a hora das ultimas contas. O sangue dos teus vingará o sangue dos meus. Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes.

Ditas estas palavras, como se o inferno as soprasse, as chammas em vagas furiosas investiram o castello por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou. No hombro tinha reclinado outra vez o lindo corpo de Auzenda sem sentidos. As faces desbotadas da donzella tocavam o rosto queimado do velho; as tranças de ouro misturavam-se com as madeixas brancas; os olhos languidos, em que expirava a doce luz da vida, cerravam-se mortaes.

—Castigai-me, Senhor! bradava o conde, chorando como creança. O sangue verteu-o esta mão culpada…. Feri a cabeça do peccador saciado de annos e de amarguras! Mas esta innocente! O que fez para acabar assim?… Poupai-a em vossa justiça!.

Dizendo isto apertava a neta contra o coração. O que não daria n’aquelle instante o senhor de tantos vassallos e castellos por alguns palmos de terra livre, por uma respiração pura da briza nocturna, que nos serros vizinhos refrigerava as miserias do escravo?

O conde ergueu-se de novo. As almas viris podem vergar um momento, mas não quebram… As maiores dores calaram-se diante da sua dôr; o pranto enxugou-se em todos os olhos; e os mais intrepidos estremeceram, vendo passar muda e terrivel aquella vingança! Eil-o vai o velho fronteiro! Nem capello de aço lhe cobre a fronte núa, nem arnez lhe veste o peito descoberto. Leva porem a morte escripta no rosto. O sombrio clarão do desespero reluz nas orbitas ensanguentadas. A voz emudeceu nos labios, brancos e descorados. Deixai-o ir! É o castigo de Deus que se adianta! Inclinai-vos! É o santo amor de pae que o inspira!

A aguia real não caiu logo. Varado o peito, sobe e perde-se nas alturas para depois baixar inerte. Vai morrer longe da terra sobre as nuvens. Que fogo ameaçador na vista immovel! Que fria raiva no vôo lento! Guarde-se o falcão. Primeiro perderá a vida que o rei dos ares. Assim era D. Ordonho!… A lua escondeu-se. A tormenta rugia ao longe. O vento lastimava-se soturno. A distancia, nos outeiros e plainos, refletia-se o clarão avermelhado do incendio. O fumo em rollos salpicados de faiscas estendia-se como toldo immenso. As aguas e o furacão confundiam os bramidos. Os relampagos lambiam a crista dos montes. O trovão estourava em estampidos medonhos.

A aza negra da tempestade varria a face da terra…. Que vulto é aquelle, que as labaredas rodeiam emoldurando-o encostado ao arco no eirado da torre Albarran? Fogem-lhe aluidas debaixo dos pés as lageas abrazadas e não recúa. Sobre a cabeça crusam-se mil centelhas e não as sente. Ao lado estalam e desabam os madeiros com fragor, racham-se e abatem as paredes, e não as vê! O temporal fustigando os cedros, estronca-os; o raio, fuzilando, lasca os penhascos da montanha; as torrentes, crescendo tumidas, inundam as margens como rios caudalosos. Que escudo cobre, pois, aquelle homem que todos os perigos e horrores da vida conjurados não o aballam? A desesperação! Que lhe importam ao desgraçado as ameaças do ceu, ou as ruinas da terra? Esconde no seio a peior das mortes. Morrera em vida. O castello de seus avós será o sepulcro do ultimo descendente de uma grande raça.

Soltou por ultimo do peito um rugido immenso. A côr livida da ira dava-lhe á face o aspecto de um cadaver. Encurva o arco, reteza a corda, e a vista mede o espaço. Ai do que aparar o tiro! A seta só espera um aceno para voar sibilando ao seu alvo….

Tres vezes estalou o trovão, e tres vezes um lençol de fogo jorrou dos ceus abertos. Soa distinctamente o galope de um cavallo. As ferraduras, raspando as fragas, fazem saltar as faiscas umas atraz das outras. Armas brancas, capello sem viseira, no peito o açor do Douro. Será D. Moço Ansures? Á claridade dos relampagos, á luz do facho sacudido pelo cavalleiro negro, viram todos o corsel do mancebo ennovelado sobre a aresta do precipicio, quasi a escorregar pelas rochas aprumadas. Cavallo e cavalleiro arquejam suspensos de um fio sobre o abysmo. O que Inigo lhe disse, o que elle respondeu, ninguem o ouvio. O vento bramia forte. Pouco depois descortinava-se D. Moço enristando a lança meio corpo debruçado para o precipicio, e o renegado arremeçando o facho ás aguas para se rodear de trevas. O braço do Maldito alçou de subito a espada e o golpe descia já… quando uma seta passa assoviando. O mancebo vio então o seu inimigo rolar aos pés do ginete e logo apoz um corpo dobado nos ares, resvalar, batendo nas pontas das rochas até se atufar dilacerado e disforme nos cachões da nascente, que espirram a grande altura espuma e sangue.

Do castello, no eirado fronteiro, uma voz cheia e vibrante levanta brados de triumpho, e por momentos avulta a estatura gigante do conde Ordonho, cosida nas chammas, immovel e magestosa, com os cabellos soltos ao temporal. Depois abateu-se a torre com grande estrepito, as quadrellas alluiram-se, as traves accesas remoinharam e cairam, e entre os destroços, como em leito tranquillo, o velho guerreiro adormeceu do somno eterno. Honra ao que morre amortalhado em suas armas e envolto no seu pendão! Ao cabo de sessenta annos de pelejas o fronteiro sepultou comsigo a orgulhosa raça de riba d’Ave, e do seu castello só ficaram de pé aquella torre negra, que alem vemos, e a hermida aonde jazem os ossos de Pedro Ansures.

—E D. Moço? perguntou Martim Paes.

—E Auzenda? acudiu D. Nuno.

D. Moço, cumprindo já de noute o seu voto, teve um presentimento, e, cravando esporas no cavallo, despediu a carreira veloz por cabêços, fragas, e alcantis. Já perto do castello, deu-lhe no rosto o clarão do incendio e viu-o arder. Apertando o corsel, correu como louco, e só parou quando o facho do cavalleiro negro lhe cegou os olhos. O que succedeu então já vos contei. Apenas Inigo expirou, desfez-se o encantamento. D. Moço buscou Auzenda. Encontrou-a, mas sem vida! Levaram-a os monges á capella, puzeram-lhe na cabeça uma corôa de cecens, e a terra comeu de quinze annos a formosura mais invejada das Hespanhas.

D. Moço, desde esse dia, não viveu. A saudade matou-lhe a alegria, a esperança, e a juventude. Nunca mais vestiu armas. O que iria pedir ás batalhas? A gloria? Não tinha com quem a repartir. A morte? Para quê? Não a sentia já no peito? A liberdade da terra do seu berço? Ai! Nem essa ideia mesmo podia fundir já os gelos d’aquelle coração!… Sombra do que fôra, o que fazia o desgraçado n’este desterro cruel, sem affectos, sem amigos, sem consolações? Como o carvalho, que o raio feriu na força do crescimento debruça os ramos mirrados e se torce e definha até cair, a dôr e a memoria, verdugos implacaveis das existencias desgraçadas, minavam-lhe a vida, seccando-lh’a na raiz.

Sobre a madrugada o somno pousava-lhe a medo nas palpebras molhadas de lagrimas. Então a febre do delirio representava-lhe junto do leito a doce imagem, que trazia no coração. Era ella! Via-a, como nos dias ditosos. A mesma grinalda de flores do campo sustinha os cabellos louros que fugiam em ondas; as mesmas roupas alvas desenhavam as formas virginaes; nos olhos sempre a luz suave do amor, que o fizera tão feliz; nos labios aquelle sorriso em botão, que se abria casto como a rosa. O mancebo queria estreitar a visão querida ao peito, e acordava, chorando, porque só abraçára o ar. N’este tormento agonisou por mezes até que Deus, compadecido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde, aonde se recolhera.

Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe unido ao peito, sobre o coração, um laço de cabellos; e no quarto de alva o frade, que ficára orando a velar a tumba, contou depois que vira apparecer uma dama, formosa como os anjos, e inclinar-se triste sobre o corpo. De dentro do ataude saiu um braço, e ella, com a sua mão na mão do morto, passar-lhe um annel no dedo e cingir-lhe a corôa de boninas que trazia, na fronte descorada. Um guerreiro de armas negras, e de estatura descommunal, por tres vezes lutou para romper o circulo luminoso, que a rodeava, e outras tantas, vencido por braço invisivel, se prostrou com a face no pó do templo. Eram as nupcias dos mortos, o noivado de Auzenda e de Ansures? Era ainda a sombra de Inigo Lopes perseguindo na donzella o sangue inimigo e a vingança contra o conde Ordonho? Altos mysterios de Deus. Quem ousaria prescutar os segredos da sua justiça, e os prodigios da sua clemencia infinita?!