Cahiu o panno entre chamadas ovantes, gente de pé nas cadeiras, debruçada dos camarotes, e em chusma junto ás portinhas de sahida, acotovelando-se, clamando, bravo! bravo! A geral estava deserta, um grupo ao meio da sala berrava, fóra o auctor.

E quando elle veio de casaca, agradecer com aquelle seu geito modesto, muito risonho e de rosa amarella na botoeira, a sala aqueceu ainda, houve bravos, e o Moreira das magicas, enfiando o pardessus, disse para um desenterrado de luneta, com a sua bella emphase de auctor laureado:

—Vae longe, este camello, sim senhor, vae longe.

—É possivel, opinou seccamente o desenterrado, e a cabecita em pyramide, com pellos de rato sobre a testa, pendulava-lhe para um lado e outro, desengonçada sobre o gasnate côr de moka. E puxando amigo Moreira de parte, olho acceso em iras biliosas, o plastron descosido, disse alli que a peça não tinha fundo, que o estylo era rocambolesco, e toda a litteratura devia mirar um intuito critico, sem o que ficaria um brinquedo de gaiatos. E que se em Portugal o publico desprezava litteratos, e podia passar sem o que elles exgregavam nas gazetas, a razão era taes litteratos serem mais ignorantes, ou menos intelligentes, que a multidão a que se pretendiam impôr.

—Que damnada lingua me sahiste! dizia Moreira das magicas, com pancadinhas d’applauso no hombro do desenterrado.—Baixava a voz para insuflar, que em parte assim era. Todavia exceptuava muita gente. Ahi está o José Maria, por exemplo. O nosso Mendes Leal, tão conceituado lá fóra. E este, e aquelle…

—Eu creio bem, argumentava o da luneta, que no meio d’esta sucia, por engano, ha talento uma ou outra vez. Mas diabo! Não estamos já nos soláos do Serpa, nem no Conde Alarcos do Cunha. Dêem alguma coisa mais do que phrases ôcas, meus senhores! A formula litteraria é apenas vehiculo da ideia, e não pode tornar-se em preoccupação, como ahi estamos vendo. Mais! Quer-se em toda a obra um ponto de vista elevado e philosophico que a domine. Eis o que não ha n’essas mioleiras, meu filho! Veja-me vossê o Pimentel, que esses localistas parvos andam a proclamar nas gazetas. Idiota! E vou-lhe ás ventas; vou! E o menino Felix de Macedo, mais o cretino Fernandes! Ocos que nem uma cabaça, immortaloides de redacção, sem testa, nem estudo, nem officio. Que tenho eu que vêr com tal romance ou tal drama, com tal phenomeno scientifico ou tal processo de pintar, se estas coisas me apparecerem abstractamente, sem uma orientação que as filie e correlacione n’uma dada corrente—não sei se me faço entender?

Com o largo aceno de quem trunca pela base a tolice humana, estabelecia—que tudo vinha sob dependencias e condições, facto moral ou facto physico. Tal livro é effeito do livro anterior, e causa do posterior, como tal estado politico ou mental, derivam do estado anterior, e preparam o que depois vier. E desgraçada a geração que por sua anarchia psychica não sabe fazer progredir um systhema, assimilar um código de doutrinas, desenvolver e tornar perfeito qualquer ideal em arte.

Ás vezes, é o povo que por ignorancia repudia a lei nova; cabe aos escriptores, aos homens politicos, e aos artistas, uma lucta sem treguas em prol da conversão ao credo ambicionado. Eis o naturalismo expulsando da arte os romanticos, em meio das repugnancias geraes.

Mas acontece—e o desenterrado levou á parede o Moreira das magicas, enfiando-lhe um dedito successivamente pelas diversas casas do collete branco—acontece um bello dia, haver mais illustração na massa que no grupo dirigente d’artistas e pensadores. Em tal caso, a massa vota legitimamente ao desprezo aquelles nigromantes. É o que se está dando entre nós co’a politica e litteratura. A corrupção dos partidos dá de si…

Moreira escancarava a queixada num bocejo desopilante: quando uma rebanhada de talentos da geração novissima furou por entre os conversadores, ao tempo do desenterrado citar Beaumarchais, Ben Johnson, e aquelle pobre Molière, coitado! No entanto o theatro esvasiava ao de manso. A ribalta extinguira-se, os da orchestra enfiavam os instrumentos em saccos de chita e erguiam as golas para sahir. Aqui e além, nas ultimas ordens, um arrastar de cadeiras soava ainda, vozes chamando, risos altos, e um deserto fazia-se na sala, sob a agonia do lustre, e o cynismo do relogio que marcava cinco horas, havia mais de sete annos.

Fôra a primeira representação dos Dois Rivaes na Côrte, quatro actos de capa e espada escorrendo phrases feitas n’um entrecho infantilmente pavoroso, onde as personagens se davam o vós comparando-se ao systema planetario, e reforçando os lances de effeito, com allusões aos phenomenos atmosphericos e biblicos mais assustadores… o raio em sua furia indomita, o diluvio, pragas do Egypto, miseria de Job… havendo um monologo sobre a capa de José, que os fauteuils tinham mimoseado com surdos bravos d’adhesão. A peça era estreia de Rogério, Rogério Vasques, primo da Alcina, moço que por tão raro trabalho tomára definitivamente logar na phalange dos nossos mais talentosos escriptores, pelo que felicitamos o nosso amigo, diziam os jornaes. Um triumpho completo, os Rivaes na Côrte! Critico Borbas, do Seculo, tão exigente em coisas de palco, parado no camarim da Velledo, recitára com voz lacrimejante, no fim do acto, aquelle bocado da separação—parto, o coração me fica suspenso n’estas paredes, testemunhas de tanto perdido amor! Só vós, ó Conegundes de minha alma, conhecereis a fundo este báratro d’angustias, que como o universal diluvio…

Ah, mas como o Taveira dizia aquillo!

Dias antes, toda a litteratura em evidencia recebera do joven dramaturgo um amavel convite de ceia na sala grande do Central, á hora de acabar a primeira representação. Tinha sido um regosijo fremente. Aquelle Vasques, bello moço, que talento maleavel, e tão instruido! Com que então Champagne fino? Um pouco prejudicado em preconceitos d’escóla talvez.

Genial Pirralho, todo cheviote amarello, bigodeira mephistophelica e o grande ar de Paris, tinha mesmo dito—é um temperamento. E o menu passava de bocca em bocca.

Deixando Alcina, Rogério não foi mais o bonifrate de provincia com preoccupações de Chiado, ares de saude camponia, e ingenuidades de primeiro amante. Gastára no convivio d’actores, janotas, litteratos, cocheiros, e femeas avariadas, toda a bruteza sincera e boa que na educação caseira adquirira. E hypotecando as ultimas migalhas de herança, dormindo fóra, bebendo e jogando ás noites, tornava-se pedante, depravado, amarello e pulha.

O theatro d’opereta em que primeiro Alcina estivera escripturada, tinha sido para ambos a melhor escóla pratica de malandrice e usura. Alli, cada figurante de scena ou frequentador de camarim, dir-se-hia passar os dias na cogitação de explorar quem apparecesse á noite com cara de tolo. Apenas Rogério, tendo a prima por amante, começou de acompanhal-a ao theatro todas as noites, e a fazer na ausencia d’ella, a quem chegava, as honras do camarim, viu-se logo rodeado por uma série de ratos de bastidor e polvos de redacção—gente faminta, intrigante, educada a comboiar boatos, cartinhas, subscripções, pequenas calumnias de casa d’um para casa d’outro—que ia girando n’uma baixeza d’inveja á roda dos charutos fumados, das correntes de relogio, impingindo bilhetes de beneficio, offerecendo-se para alcovitar, com pormenores de creada sobre as pernas d’uma, os amigos d’outra, os seios d’esta e os cabellos d’aquella… todo o arsenal de canalhice exigido em curso para tão equivoco mister. Desengalfinhado d’esta tropa á custa de generosidades forçadas, desprezos, empuxões, até soccos, Rogério teve de rechaçar depois uma ciganagem d’outro genero, amabilissima, risonha, com emphases altivas, articulando as palavras musicalmente, pondo luvas frescas todos os dias, e tendo o nome a ouro nos annaes das lettras e das artes. Eram os grandes actores da cidade, todos os generos e theatros, paes nobres, ingenuas, galãs, graciosos—tenores tysicos, barytonos sem voz, e essa variedade neutra de comediantes cognominados entre nós de conscienciosos ou diseurs, que serve para tudo e goza a estima dos auctores, em razão do merito reles que exhibe, de jámais desmanchar o conjuncto.

Eram tambem escriptores intermedios, amanuensando das onze ás quatro, fazendo jornal das quatro ás onze, finorios chouteando na esteira dos gabinetes corrompidos, em faro de boa posta, louvando aqui a vaidade dos ministros, além atirando lama ás ventas dos adversarios, em eternos clamores contra a decadencia dos costumes, mas rindo por dentro de tudo, tudo ouvindo, sabendo tudo, explorando com tudo, e exhibindo-se em publico os ares de grandeza impeccavel, que Vautrin recomendava aos Rastignac e de Marsay que lhe sahiam do ventre. Rogério amou esta camaradagem nova, que nos seus annos de provincia tanto admirára atravez das hyperboles dos diários. E por influencia de contacto, relações, letras assignadas, condescendencias d’Alcina, jantares, e uma bicharia d’assignaturas para publicações que falliam ou não chegavam a ver a luz, acordou tambem litterato certa manhã. Entrado na imprensa fez subir Alcina, que sem voz a esse tempo, debandava para o drama, já tão magra e lombricoide, que não era senhora d’engulir uma pilula, sem os jornaes a dizerem gravida de cinco meses. Esta ligação d’Alcina com o primo durou pouco, vindo a ser truncada apenas apresentaram Rogério á Velledo. Alcina era ciumenta e teimosa; um nadinha infiel além d’isso! Não resistindo ás furias de prazer exigidas pelo seu temperamento frenetico, a sua franzina e pobre organização murchava e cahia. De manhã estava côr de morta, seios sorvados, olheiras á bocca, olhos imbecis, e um ar de prostração assustador, casado com uns reflexos glaucos, que raiando-lhe das fontes, aos cantos das orbitas, iam terminar n’uma griffe de ruga.

E vinte e quatro annos apenas!

—Não bebas, muitas vezes lhe dizia Rogério, vendo-a engulir entre chavenas de café e charutos fortes, uma quantidade de calices de cognac. Mas ella sempre gostando. Ora adeus! Até punha fortaleza, voz mais alta, o espirito vivo como um passaro. Depois tão petulante a beber!… A viveza com que molhava a linguinha rutilante no licôr esbraseado, revirando aquelles extraordinarios olhos pretos, humidos, audazes, cheios de ganas secretas, que a salvavam ainda pelo fluido calido em que ardiam, e de grandes que eram lhe faziam a cara pequenina!…

—Não é tudo, disse-me Rogério uma occasião no Aterro. Beber é mau, mas perdoava-lhe, que diabo! Com o cognac porém, vieram os vicios supplementares, que de resto não aprecio nas mulheres, nem estava para subsidiar em proveito dos devassos que iam lá por casa. Entende vossê?

Escrevia elle folhetins na Gazeta do Sport, chronica da alta-vida segundo a testada, e bastante mal escripta para se crer que assim era. Esses folhetins fizeram-no celebre, secretario d’um gremio d’escriptores, successivamente premiado de Mont-Real e irmão dos terceiros. Centros de litteratura amena e critica austera, livrarias com cavaco e sociedades com bilhar, brindaram por elle. Deitou almanach com bocadinhos democraticos, e um juizo do anno em que era ameaçado o throno. Lindôso, que era quebrado, e ás bancas do Martinho maravilhava localistas myopes e uma quantidade d’aspirantes, abraçava-o em publico com palavras de pompa. E por duzias, os albuns, os semanarios e jornalecos de districto, reclamavam trechos d’essa penna hilariante que gottejava sol peninsular, ortographia sonica, e mesmo asneiras, querendo Nosso Senhor. Discutiam-no. Já lhe davam escóla e processo de factura. Era um moderado, um joven ecletico, meio romantico, meio positivista, com predilecções d’assumptos doces e a ambição das finas coisas mundanas, cheio d’imagens originaes, chispando mordentes graças, vigoroso e probo, tendo os nervos irritaveis d’uma mulher. Na frente, como chocas, os jornaes iam conclamando unisonos:

—O talentoso amigo e brilhante escriptor…

Uma das bellas organizações da Peninsula…

Erguiam-no em rival de Lindôso, que a tantos se afigurava um prodigio além de toda a espectativa. Festejado Peres nem dizia sim, nem não. Deixar vêr! E o colossal Pirralho advertia que não era bom thuribular debutantes, que podiam perder-se de vaidade, imaginando-se deuses.

E n’uma vocalisação emphatica:

—É o defeito dos homens do Meio-Dia, onde os temperamentos são cálidos, e os modelos a seguir não abundam. Quando encetámos a nossa publicação critica, era notoria a esterilidade litteraria em Portugal…

Mas Horacio fazia um passo no grupo, armado dos seus oculos de ferro, nisa curta, um pigarrinho erudito. E cuspilhando:

—Systematisemos a these, conforme o proceder do meu Comte!

Os convidados por Rogério tinham ordem de reunir no foyer, findo o espectaculo. A peça acabára tarde, duas da noite; e primeiro que a Velledo apparecesse, tiveram d’esperar boa hora e meia. Emtanto falava-se da peça. Estava o melhor da litteratura e da arte. E faziam-se apresentações. Festejado Peres trinta annos de dramas historicos com applausos freneticos, rapoza velha em coisas scenicas, conforme corria, apresentou a Rogério o grande Aurelio, uma gloria da scena, interprete das suas creações, de quem Doux dissera n’um atonismo absorto:

—C’est un petit prodige, ce marmot là. E a phrase ficára celebre. Aquella apresentação penhorára Rogério, que muito commovido, voz mansa agradecia com ar modesto. Além o pensador Horacio que fazia as primeiras carambolas na cervejaria e continuava virgem de contacto impuro, definia a arte segundo Comte ao Moreira das magicas e sainetes, emquanto Pirralho dizia a vida na Comédie Française, o ceremonial d’entrada no foyer, e como Croizette era a musa dramatica moderna. Bulia em volta a ninhada d’esperançosos côr de cidrão, ganymedes que se davam ares, corcovando a espinha e rindo alto das facecias do mestre, com o faro na ceia offerecida. E o mestre esfogueteava pela sciencia em citações vehementes, fuzilando, causticando, vibrando a nota heroi-comica, que na sua proza fazia o delirio dos discipulos e a admiração do publico. Reinava grande cordealidade. Pae nobre Tiburcio, que desde o desastre da Filha Roubada, não falava ao inflexivel Borbas, veio lacrimoso abraçal-o pelas costas. E em volta acharam bonito, e houve beijos como entre damas. Rogério ia radiante por todos os grupos, abraçado, elogiado, n’uma effusão d’intimidade que lhe punha o coração nas mãos. Não se ouvia á sua passagem senão palavras quentes, bocados de critica enthusiastica: a maior vocação, o mais extraordinario dramaturgo entre os modernos, um dos maiores da Peninsula—e explendidissimo, scintillantissimo—e como Sardou, e como Dumas filho, e como o velho Augier… Os famintos tiravam o relogio, chamavam-no de parte, davam-lhe tu, relembrando que tinham andado no mesmo collegio, muito amigos sempre, não te lembras? Mas quem diria! Rogério, o 34, tão enfezadito de cara, cheio de zeros em portuguez, e sahir-se agora um escriptor d’aquella alçada! Elle a todos dava uma boa palavra, pedindo opiniões em separado sobre a peça; o que esperava era franqueza, visto não arder nos orgulhos balofos de certas sumidades. Moreira tinha-lhe achado grande fundo historico, côr local como o diabo—sim senhor—e que pena terem cortado o sarau do terceiro acto! De resto afigurava-se-lhe D. Fagundes o seu tanto herético para uma plateia de damas. No theatro, na escóla e no templo, a religião primeiro que tudo: já Garrett o escrevera. Bem sabia que o espirito moderno… E muitos parabens.

Mas festejado Peres, saracoteando a nalga roliça:

—Meu Rogério, disse elle cingindo o dramaturgo, has-de conceder-me, conceder-me, que tenha a sciencia do drama historico… drama historico… tão descurada pelos rapazes de hoje, rapazes de hoje… Já o fiz saber no prologo da minha Duqueza de Bragança… de Bragança. Eu cá, escrupulosissimo no theatro. Será casmurrice, eh! eh! casmurrice… mania de velho; deixal-o ser!… Hein? deixal-o ser. Missonier, antes d’algum quadro militar… quadro militar… até estudava os botões dos fardamentos… eh! eh! dos fardamentos. Eis onde eu levo o escrupulo tambem… E o publico dá palmas… dá palmas. Posto isto, e como teu amigo que sou… teu amigo… sempre direi que commetteste um crime de lesa historia… eh! eh! lesa historia… pondo compota de pecego no festim de Januario de Mendanha… compota de pecego.—E de chapéu alto para a nuca, as orelhas despegadas do craneo, o grande homem recordava um d’esses burros com mitra, arrancados ás festas dos doidos, nas cathedraes da Edade Média.

—Pelo correr do seculo quatorze… seculo quatorze… proseguiu elle, não era conhecida no reino aquella doçaria, conhecida no reino… que só remonta ao ultimo quartel do seculo dezeseis, eh! eh! seculo dezeseis… Consulta Viterbo, fr. Bernardo de Brito, o abbade Castro, abbade Castro… Este pormenor não é futil, como parece, futil… porquanto é da compota de pecego, da compota… que sáe a grande scena do terceiro acto, a grande scena… aliás magistral, sem favor, magistral! Linguagem vernacula, linguagem Herculano… lá isso sim, meu velho, isso sim… Falta talvez o fundo historico, eh! eh! fundo historico… vacillações na côr local, hein? côr local… Mas és novo, coisas d’estas só veem na minha edade… na minha edade. E aqui para nós, hein? para nós. Vão sendo horas de manducar uma bucha, manducar.

Rogério ardia por ouvir Borbas, e sobre todos o desenterrado, Lindôso de nome, critico d’altos processos, por muitos calumniado de precoce e viridente genio das raças modernas, o manitanço! Mas sentiu-se um froufrou de sedas no escadim doirado do foyer, e uma voz argentina e alta em que dominava o grave, disse duas vezes ou tres, risonhamente:

—Boas noites, boas noites!

Era a Velledo. E atraz d’ella pelo braço d’actores, maridos ou coisa parecida, outras actrizes se mostraram, a Laura, a Elisa, a Maria Freitas… Os trens esperavam á porta do theatro. Falando ao mesmo tempo, n’uma alegria de boa gente que alarga o coração, essa sociedade foi abandonando o foyer. Havia de todos os generos, modestos, espirituosos, eruditos, familiares, calemburistas, os de má lingua, os de má fama, e trambolhos lyricos, gente infeliz ao jogo e fanada de orgia. Aprumado e grandioso, ia Pirralho no meio dos seus discipulos, citando descobertas e ramos de sciencia que mais peso causavam no seu caco de homem celebre, pelo arrevezado das designações, forçando os contrastes, e querendo achar a nota original das coisas por um burlesco d’encomenda. No alarde d’erudição e individualidade que o preocupava, as citações saltavam-lhe aos magotes, desordenadas, occasionaes, n’um fogo d’artificio a duas côres. Ás vezes calava-se interdicto, circunvagando as lunetas, na desconfiança de haver sido vulgar como a outra gente. Mas rodeavam-n’o para algum paradoxo applaudido, farejavam-n’o os discipulos por todos os lados, inquietos, com a gargalhada prestes, tendo nos olhos piscos o deslumbramento das gravatas do grande homem, os seus sapatorros inglezes, e o largo gesto que parecia ceifar de roda as mediocridades que de longe vinham recolher palavras da sua bocca de semi-deus.

De seu lado, o desenterrado Lindôso abotoava modestamente o casaco de botões recomidos e cotovellos surrados, não tendo ainda coterie; e humilde, olho aceso, faulhava d’inveja sobre os que iam de braço com femeas, sentindo as primeiras seccuras do amor vicioso. Então foi um movimento alegre de partida, um borborinho de risos e vozes que já não procuravam entender-se. As senhoras carregavam sobre a fronte os capuzes das sorties-de-bal, rendas de froco, ou simples tules picados de abelhas de oiro; e pela escada, apanhando os vestidos n’um desleixo provocante, mostravam meias de seda bordadas de lado, e esses primeiros lineamentos da perna, que lembram contornos de jarra etrusca, pela expansão esvasada e alta das curvas. Laura, uma loira redondinha que findava o primeiro amante, borboleteava pelo braço do festejado Peres, cujos sessenta mantinham pretensões ainda de galanteria e elegancia. E a cada passo ella deitava-lhe a cabecinha no hombro, mostrando os dentes miudos. Maria Freitas era uma grande morena, esqueletica e muda, a quem davam papeis de velha, para que sempre tivera vocação. Não tinha amor permanente, e como quartos d’estalagem, alugava a quem vinha, o seu coração hospitaleiro. Entanto as collegas toleravam-na, porque apesar de tudo era util, e pelo contraste fazia as outras virtuosas. Declinando nos quarenta e cinco, os olhos de Elisa começavam a turbar-se, cercados de pequeninas rugas nas palpebras, como os dos papagaios moribundos: e apenas lá longe, nos dias de crise frenetica, se incendiam ante collegiaes frescos, d’ar timido e riso doce. Era uma gorda pintada de branco, cheia de signaes, grande talento de comedia, e tendo pelas mulheres o desprezo d’um homem. E o cortejo ordenava-se, desfilando direito á rua. Rogério deixára-se ficar, na esperança de dar o braço á Velledo, que tambem aguardava o quer que fosse. E quando ia offerecer-se, viu-a voltar-se contra o brasileiro, pôr-lhe no hombro a mãosinha calçada em luva de canhão molle, a dizer-lhe com a bella voz de scena:

—O meu amigo será bastante bom para me deixar o seu braço?

Ficou attonito a semelhante desfeita! Quanto por ella tinha feito era sem preço—a ceia, o drama, as toilettes d’apparato… E enxotado! Mas jurou alli mesmo uma desforra estrondosa. Quando chegou á rua, já toda a sociedade se estava armazenando nos trens. Elisa abandonára os velhotes que a tinham comboiado escada abaixo, para n’uma velha tipoia se enroscar entre os seus ricos frangãos da geração moderna, aos empurrões em pae Tiburcio, e mandando á fava a historia brejeira que elle insistia em contar-lhe. Maria Freitas installou-se nos joelhos de Moreira, n’um pequeno coupé d’aluguer, á direita do festejado Peres, e á esquerda d’um revolucionario côr de melão, que insubordinava Alcantara com discursos socialistas. No meio da rua, mordendo o bigode com melancholias de birrento, Rogério procurava companhia de mulher, olhando quem se ajoujava nos trens. Viu Borbas estender os braços de dentro d’um carro, e puxar Laura, a quem genial Pirralho, dizendo-se Hamlet, chamava a sua pallida Ophelia. De duas carruagens ou tres, vozes chamavam brejeiramente a rapariga; e como doida, ella ria de cabeça para traz entre os desavergonhados, debatendo-se na furia dos abraços. Hirto como um lacaio, o brasileiro escancarava a portinhola d’um bello carro de noite, servido por cavallos claros, e moços de taboa aguardando de pé que ella entrasse. A eminente actriz circunvagava a vista em procura d’alguem. Como Rogério se tinha approximado um pouco, á semelhança d’estes cães batidos que veem de rastos para o dono, ella, n’um rir cascalhado, disse-lhe assim:

 

—Ouvi que não tinha gostado do meu desempenho no segundo acto. Um homem difficil, o senhor. O monologo então, detestavel! Mas podia ter-m’o ensaiado, com o seu ponto de vista.

—Mas, atalhou o pobre auctor balbuciante, eu não disse…

—Se a peça tem musica, foi ella dizendo com volubilidade, quem fazia uma creação unica, por certo, era a prodigiosa Alcina. Sua prima! E a proposito. Que faz isso agora?

—É cruel o que está a dizer.

—Justiça ao merito e mais nada. Assim, prejudiquei-lhe o debute… Que infeliz eu tenho sido com os genios d’incubação demorada! Talvez inda arranje um remorsosinho por tanta incapacidade.

—Lá se lhe é agradavel fazer-me soffrer…

—Diga á Laura que tem logar aqui. Ella só—e como elle aventurava desculpas n’um tom de collegial submisso:—mau! perdemos tempo.

Rogério foi chamar a ingenua, que parou logo de rir, e sem dar boas noites aos que pensavam detel-a, veio lesta anichar-se no carro da Velledo; e foi em surdina uma altercação entre as duas. O brasileiro atirou a portinhola, e rodaram sem fazer caso de Rogério. Quando um pobresinho gemeu ao pé do dramaturgo:

—E eu?—Era o pensador Horacio tiritando sob a nisa rapada, com olhos de fome e gestos vasios de mãos.

—Que é? perdeu o capote? disse Rogério distrahidamente.

—Não acho logar, meu bom amigo.

—Pois enfie por ahi, grande massador.

—Ponhamos a questão nos devidos termos, ia começando o desgraçado. Enfiar seria…—mas Rogério agarrou-o pelos fundilhos, ergueu-o do chão vigorosamente, e arrumou com elle para a almofada d’um cocheiro.

—Nós cá, pronunciou Lindôso dando o braço ao dramaturgo, iremos a pé, ha tempo de sobra. E venha de lá um charuto ao seu amigo, venham de lá dois!

—Não me dirás, começou elle, porque razão pouzam com tamanha filaucia estas sirigaitas d’actrizitas, que segundo parece, fazem a honra de ter por mim o mais tocante desprezo? Que diabo! Antinoüs não era positivamente meu pae. Mas sinto-me bastante feio para ser sympathico a uma mulher; e a lingua em que solicito d’ellas algum favor pequenino, pequenino, é um portuguez todo metaphoras côr de ceu, e com o agridoce das ginjas garrafaes. Já digo, é-me odiosa a meia mascara. Mulher completamente honesta, ou então mulher completamente perdida. Nada de meios termos! Contempla agora tu o monstrosinho defecante que se chama a femea dos nossos palcos, especie de tatu dessorado e desgeitoso, que nem arte põe no prazer, nem teve a coragem de se conservar intacta de culpa. Borbas garante, que nunca alguem primiu polpa de actriz luzitana, donde não sahisse logo algodão, palha de centeio ou cautchu. Olha que ha-de ser do clima.—E depois de um silencio—Dize cá. De que ceu artistico choveu esta Velledo, a quem dizem tanta coisa em superlativo? Mas tem o ar d’uma maritornes, essa dona, meu filho! Hombros, talvez, não discuto… Mas como artista, é uma tragica de feira. Mulher boa para sophá d’um pernambucano. E concedamos-lhe que encha Alpalhão d’assombro. Mas d’ahi ao talento, que insondavel abysmo vae!…

—Eis o que eu digo tambem, notou Rogério, picado.

—Pois meu filho, o asteroide dispõe do mais quantioso orgulho, que tenho visto fazer teia em cabeça oca de mulher. O modo de receber então. Lembra a rainha Dobrada, esposa de S. M. Termo tinto, dando beijamão aos aguadeiros. Eu vivo retirado, e não tinha ainda podido escutar tamanho obelisco dramatico. A tua peça arrastou-me, não admira, arrastou-me. Pois querido, agradece-lhe, estragou-te a obra, comprometteu-te, achatou-te. Cuidas que és ainda o Vasques? Mas não! Estás feito n’um pataco macanjo.

E como o outro ria, o desenterrado proseguiu:

—O segundo acto então, fez-t’o ella em frangalhos. Que falta d’intenção, que gaucherie de piso scenico, que berros e que tregeitos de maritornes! Castello Picão e Rua das Trinas jouant la duchesse. E todavia ha n’esse acto um monologo, artificial como reconstituição historica, porém habilmente instrumentado como crescendo d’estylo.

—Ah, reparaste? disse o outro animando-se. Estragou-m’o ella. Imagina que acaba de me passar uma sarabanda em fórma, só de me vêr frio no fim do segundo acto. Sabe que me faz doido de desejos, abusa d’esta fraqueza, e dia por dia, hora por hora, me tortura. Se lhe vou dizer qualquer coisa, é capaz de não representar mais a peça.

—Eu a arranjo, deixa tu estar.

—Diabo! não lhe vás para ahi dizer…

—Homem, não ponhas a tua cubiça pela femea acima do teu amor pela arte. Ou se é artista ao sacrificio, ou se muda de rumo. Zurzamos esta corja, que ha tudo a ganhar com a campanha. Porque emfim! Dirigimos nós ou não dirigimos a opinião? Sendo assim, não te parece crime sem fiança estarmos tolerando a desmoralisação que ahi se vê por todos os ramos litterarios? Mas onde vai isto parar? A nossa lingua acanalhada d’estrangeirismos parvos e inuteis. O bello ideal de Garret, colhido no elemento tradiccional, posto de banda. Um tropel de cavalgaduras colligadas pelo rèclamo, tolhendo o passo aos talentos validos. Litteratura ingloria, atravessadiça e somnambula. Litteratura filha de paes incognitos. Peste! insistia, cuspindo, o desenterrado—e animando-se:

—O quadro é flagrante, e não necessita de Taines nem Paulos Bourgets para o tracejar. Basta vêr o que se passa. Por toda a parte jovens espinafres nos declaram em sonetos e odes, como acabam de dissecar as amantes, e deitar por terra as religiões e as sociedades. Na mascarada dos poetas originaes (supponhamos) vão uns com dominó de Byron, outros de Musset, Baudelaire, Heine ou Coppée. Sahem do collegio já desesperados, blasphemantes, com o fatal amor, as ambições e os cynismos dos caracteres opprimidos pelas ferocidades da vida social, que á nascença lhes houvesse esmigalhado os rompantes. Alguns deitam-se a interrogar a historia, philosophias, podridões de sepulchros…

Pensadores que não pensam nada: archeologos capazes de reconhecer etruscos nos cacos que os barris do lixo patenteiam á porta das escadas—e apenas um ou outro nome clareia na bancada onde esphacelam uns de cachexia, e idiotisam outros na adoração da propria chateza. Necessario pôr em armas um forte cordão de tropas, que preserve d’um tal contagio o resto da gente limpa. Por mim, insurjo-me ámanhã: os valentes que me sigam! O theatro sobretudo, ergamol-o da bestificação em que jaz. Se não ha quem produza bom, resuscitemos os velhos, como em França. A Comédie dá Molière, Racine e Corneille duas vezes por semana. O mesmo nas matinées do Odéon. Não prestam os artistas? É derribal-os, reconstruil-os, ou educar artistas novos. Forçados a dezenas de papeis differentes no espaço d’uma season, os actores não profundam papel nenhum. Os nossos escriptores de theatro, por outro lado, entretidos a esquissar palhaçadas sem graça nem coherencia, estão inaptos para traçar um typo de fortes linhas e energia contornadora, que o comediante revista e agite co’a sua personalidade. E chegamos a isto—Borbas empunhando o sceptro da critica dramatica, e o borrachão do Peres arvorado em, galvanisador da historia no palco portuguez. A culpa teem-na vossês—distinguindo actores que nem sabem virgular o papel, formando traine nos camarins das estrellas faceis, indo de rastos para os comicos lhe representarem as peças: tolerando n’uma palavra, o jugo dos idiotas coifados de pontifices. Inda mais. O espirito das plateias está grosseiro: pouca vibratilidade, nenhum prazer ante as finuras do dialogo, emoção n’uma só corda… D’onde resulta que a ficelle mais decrépita, um berro d’imprecação, um esgare terrifico no fascias, qualquer mutação vocal ou passo enfatico contra o tyranno, alarmam a turba e tocam a rebate no sino grande da ovação. Tudo que fôr delicado, nervoso, reconditamento ironico, escapa a essa frandulagem d’arrière-boutique. Eis o resultado de trinta ou quarenta annos d’arte roubada aos dramalhões da Porte-Saint-Martin, mal traduzida, mal representada, mal criticada; elaboração sezonatica d’escrevinhadores que não souberam comprehender a obra inicial de Garrett, e continual-a, muito menos. Em França, o theatro romantico, brilhante e fecundo, inda agora impera, e está truncando a via ao naturalismo no palco, attenta a persistencia do gôsto publico pelas violencias dramaticas, pelo talho geometrico dos actos, e essa rara habilidade no savoir faire que caracterisou sempre a escóla, desde Casimiro Delavigne a Feuillet e Dumas pae. Não dá a impressão d’um trabalho de genio, esse theatro, mas é cheio d’arte e vigor, e comprehende-se a febre que o incende, e lateja-se na incoherencia e na furia que o convulsionam. Sardou e Dumas filho representam a transição, inda dubia e pallida, para o naturalismo continuador de Molière e Ben Johnson, d’onde brotará talvez o jacto arterial que avivente a scena, decadente em nossos dias.

—Mas os novos… tornou Rogério afagando na mente o drama que fizera.

—Entre nós levaria a palma quem soubesse continuar Garrett. Somos um povo sem drama intimo no presente, um povo cuja vida não tem caracteristicos, e onde os temperamentos fallecem d’originalidade. Quadro de natureza morta. Por conseguinte, o nosso theatro terá de viver do passado. E que passado! Artista que o assimile e insculpa sobre a scena, precisa ser ao mesmo tempo colosso e homem de genio, pois tem de crear figuras mais altas que a flexa de Strasburgo. Queres a verdade? Palpei hombros de titan no teu talento, esta noite. Só tu poderás resuscitar o nosso palco.

Rogério tinha-lhe logo cahido nos braços, lacrimoso, dizendo coisas commovidas.

—Mas que trabalho de cem sabios e vinte artistas, se quizeres levar a cabo essa incontestavel vocação! Terás de estudar a historia pedra a pedra, ruina a ruina, figura a figura, pergaminho a pergaminho; critical-a, sentir-lhe o lado artistico á luz d’uma philosophia profunda; insuflar-lhe a alma, calor, pulsação; e ir pelas ruas depois, em busca de comediantes, a arrancal-os d’onde elles estiverem, pelas officinas, pelas prisões, cavando batatas na courella d’um padre, ou vendendo agulhas com o pregão d’um belfurinheiro. E educal-os por tua conta, á tua vontade, sob o teu ponto de vista e o cyclone da tua inspiração. Para que ao vermos em scena as tuas figuras, rei, conspirador, frade, princeza e pagem, não tenhamos de berrar—bem vos conheço, heroes de tal seculo! Esse ahi é o Miranda, que tem varizes nas pernas e bebe aguardente na tasca do Ferra Moscas; essa altiva rainha esmagando o cofre de perolas d’el-rei de Castella, é nada menos que a Joaquina, que leva pancadas do amigo, e ata as meias com uma guita, a meio da barriga das pernas. Passa fóra, ó reinadios! Mas sem lisonja, sem a menor lisonja, a tua peça respira enormissimo ta… pois esqueci-me de pagar os juros na Exactidão esta tarde, disse o desenterrado subitamente, quando iam a voltar para o Alecrim. Leilão amanhã.

Perco tudo, nao tem que vêr.—Era a roupa branca da mulher, o seu vestidito de sahir, coitada!… e chailes, um prussiano acabado de fazer… Tudo para pagar remedios de botica. Terrivel coisa a miseria! Dias de jantarem café. Se emprestasses quatro libras até amanhã…

A assaltada fôra um tanto brusca, pois Rogério parecia lento em esportular a quantia implorada. Então começou o desenterrado uma cantilena gosmada entre o cuspilhar do charuto, que ora se perdia, em divagações lyricas, ora habilmente voltava a frizar certos detalhes de intuito prático. E disse as duras precisões do seu lar, essas grandes batalhas tenebrosas da miseria que não pede esmola, e os frenéticos sacrificios do talento amordaçado pelas conspirações do silencio. Rogério inda duas vezes fez—homem, é que… homem, é que…—mas engasgava-se, achou-se somitego, considerar-se-hia odioso se recusasse aquella miseria a um amigo; e ao fim de dez minutos tirou a bolsa.

—Quatro é que tu dizes, não?

—Ou cinco… ou seis… ou sete… ia dizendo Lindôso, e Rogério deixava cahir cada moeda por sua vez—talento, muito talento expendido a mãos plenas pela tua peça. Lá isso! Selvageria, furias shakesperianas, sim! A vertigem da execução prejudica sempre a lucidez do problema. Cinco… seis… É o sonho tenebroso e dantesco, com sobresaltos e recahidas, que sacode pelos hombros os personagens do Hugo. Um positivista, juntava elle n’um riso pallido de caloteiro, deve proceder com mais sangue frio. Sete… obrigado, salvaste-me.

—Vê se queres mais, menino…

—Não. Outra vez. De todo me tinha esquecido pagar esta insignificancia. Deita mais esses meudos. Os pequenos precisados de botas… Diz que querem vêr a tua peça. Oh a infancia! E fechou a mão que estendera ao dinheiro.

—Verás o meu artigo. Comparo-te aos mestres, não has-de ter razão de queixa. E subiu á casa de prego, que era na sobreloja, á esquina, com a sua lanterna de tres gumes, dizendo: Exactidão, penhores, juro modico, emquanto Rogério esperava mordicando o charuto.

Dias e mezes correram, sem que realmente as relações de Rogério com a artista adeantassem muito. O pobre auctor sentia-se exhausto de ceremonial, perdia tempo em declarações, não largava o camarim com presentes de flôres e versos da melhor fabrica; mas fitando a grande Velledo nas pupillas, não via n’ellas fuzilar essa scentelha brusca com que a mulher reclama a intimidade de um homem. E dia a dia, como ella lhe escorregava dos braços, como uma cobra, cada vez mais astuciosa, o desejo d’elle parecia congestionar-se d’infrenes ardores, a cada repulsa soffrida. Ia sendo tempo de se pôr á vontade com ella, de se conhecerem de perto—Rogério tinha pouco geito para lunatico. O amor platonico era irrisorio á sua alma de provincia, positiva em negocios, e acostumada a satisfazer de prompto os apetites que lhe vinham. Por mais porém que fizesse, para aos frequentadores do camarim parecer na intimidade da artista, não ouvia rosnar em volta, da supposta ligação. Ella via-o chegar como aos outros, apertava-lhe a mão com um pequeno riso, fazendo telintar os braceletes.

—Bem, meu caro?

E continuava a palestra interrompida. Depois a correcção exigida ao penetrar n’aquelle camarim. Vinha-se de cabeça descoberta, cortejal-a com grandes reverencias. Os homens não fumavam. Uma palavra familiar, uma graça mais núa, transmutavam na côr as iris da divindade. E nenhuma familiaridade antes de se ter sido apresentado com as formulas mais puras do estylo. Porque era de saber que se tratava com uma mulher superior, a primeira actriz portugueza, astro, deuza, musa do drama, Rachel, Sarah, M.lle Mars, e as mais chapas consagradas n’este genero d’apotheoses. Depois, mulher do mundo, espirito de duqueza á Balzac, leituras finas, e seriedade de porte, dizia-se, não vulgar entre lonas pintadas. Era d’estas mulheres de scena afinal, corrompidas d’espirito e gastas de sensibilidade, pelo habito de fingir, representar ao vivo, e pintar tudo, labios, cabellos, sentimentos. O abuso de cosmeticos, estragando-lhe a epiderme da face, prohibira-lhe as transparencias do rubor, que na mulher mesmo velha, são a juventude eterna da alma—ao tempo que os papeis violentos, embotando a sua vibratilidade, lhe não deixavam já sentir as coisas originalmente e por si proprias, como se cada sensação sendo um dedilhar de corda eolea, ficasse impossivel, estando esta corda partida. Como todo o artista fatigado, a Velledo só obedecia agora aos moveis extremos, o interesse, o orgulho, um vicio, um desejo, sentindo desprezos pelo mais. Tudo era n’ella preparado scientificamente, ensaiado, solemne, feito de cór—um papel, um sorriso, uma generosidade, um cumprimento. Aos trinta annos percorrera já tudo na vida, os cimos e baixos fundos torvos, onde as podridões são pictorescas; bambochas de fabrica; mancebias d’acaso, em aguas furtadas, com estudantes e carpinteiros; fomes de palmo, pantomimas de feira, noites sem leito… todas as escoriações do vicio caloteado e baixo. Teve um filho aos quinze, de que já não sabia aos dezoito. E pancadas, figurou no livro das prisões, foi bailarina e creada de hospedaria. Agarrada para povo n’um dramalhão de apparato, uma noite em que vagueava á busca de homem, entrára a crescer. O ponto levou-a para casa, o ensaiador achou-lhe geito; dois ou tres noticiaristas entraram com referencias á novel artista. E engrossou, encheu de hombros, fez-se mulher; e este viver a fôra curtindo, ficando-lhe o frio olhar calculista, que farto de se vêr explorado e cuspido, tudo agora revertia em proveito proprio. A sua belleza, embryonaria aos quinze, eflloresceu após o primeiro filho em exhuberancias mimosas e brancas, e delicados tons de face. Aos trinta annos, levando uma existencia tranquilla, boa meza, dois cavallos, o palacete da Graça, e brasileiro para argent de poche, Velledo era uma mulher alta, branca, sólida, admiravelmente moldada. Isto dava aos seus grandes gestos de drama, pomposos á força de convencionaes, uma soberania e relevo que eram o furor do corpo commercial, brasileiros de volta, provincias e ilhas, todo o paiz inda rançado em banhas lyricas e sentimentaes tradicções. Nenhuma d’esse tempo possuia olhos, hombros e braços como a Velledo. Gentes decahidas por edade ou excessos, iam ouvil-a de rainha, princeza d’isto ou d’aquillo, Fernanda, Magdalena de Vilhena ou Morgadinha, a galvanisarem-se e readquirir tom, pela excitação ou deslumbramento da sua voz dizendo tiradas pomposas, ou d’essa extraordinaria carne extravasando em maravilhas plasticas. N’uma cidade como a nossa, onde as mulheres filiformes e glaucas lembram bichos de seda na muda, aquella magnifica e authentica mulher fazia imperio e dava cubiça, mesmo assim fria de mascara, e parecendo viver fóra de scena a eterna insomnia das estatuas. Não era muito talento, mas os gestos salvavam-n’a, depois de se haverem salvo pelos braços. Os amantes tinham-n’a feito distincta, linha de princeza, uma graça real a receber os que promettiam, nenhum, titubiamento em tête-à-tête, e esse vestuario esmanchado, cheio d’exquisitice, um pouco doido e pictoresco, que as aborrecidas inventam para se distrahir.

Succedia andar ás aranhas n’uma peça, não tendo percebido palavra do papel, gaguejando se o lance queria vehemencia, rindo se exigia dolorosa gravidade, avançando em vez de recuar, partindo as tiradas, surripiando phrases ás outras personagens, e compromettendo os collegas, na espectativa de fazer quebrar a empreza.

Apesar do fanatismo pela diva, o publico esfriava, torcia-se na plateia com bocejos somnolentos, errando a vista pelos camarotes, com tossinhas de gato, errantes, communicativas, e esse leve rojar de pés, que perturba de morte os actores, e tem feito o de-profundis de muito drama e comedia. Contra inanição semelhante, era conhecido no palco o efficaz revulsivo. Dos bastidores, o emprezario mandava á dona Eulalia trouxesse o corpete depressa. A costureira vinha a correr com elle, emquanto o emprezario, baixinho, para dentro de scena:—sss… giralda!—Signal para a Velledo desertar de scena, mesmo cortando a situação, e fazendo falhar o pathetico do lance. E mesmo alli a grande artista mudava de trajo, envergando o famoso corpete azul, uma nudez como qualquer outra. Reduzia-se n’um cinto applicado a Bruxellas finas, e servindo nas occasiões desesperadas, desde que estava eminente o fiasco. Applicava-se no publico como um sedenho ou um caustico, no intuito de suppurar ovações. Apertada n’elle, a grande Velledo ficava pouco menos de núa, contando bem da cinta para cima. Corpete de fatal origem e luctuosa historia! Tinha-o inventado o octogenario marquez das Berlengas, um galante da sociedade do delirio, que pelos modos se enfeitava, quando certa madrugada nos braços d’ella se sentiu esfriar como burro morto. E indo a vestir-lh’o, mais animado e banzeiro, cahiu com o aneurisma rôto, em fralda de camisa, como estava, o desdichado!

Esse collete, justo atraz por um cordão de seda lasso e cruzado, recordava uma corbeille d’onde espumasse a radiosa floração da sua carne, musical e superabundante—e seios turgentes gottejando rubis das mamellas; braços torneados, á Clodion, desde o punho até aos hombros; garganta e espaduas resplendendo essa polida brancura que o frio marmore nunca dá, e vem talvez da circulação juvenil e do azul aponevrotico, coados por uma epiderme vibratil e sã.

E apenas ella entrava assim eloquente e vil, um rumor corria por toda a banda, e em ondas, sentia-se ir aquecendo a sala. Já das varandas vinham estalos de lingua, e a velhada ia esfregando uns contra os outros, febrilmente, os seus joelhos carcomidos. Gradual, a tempestade de bravos ia-se encapellando, agglomerando, contundindo. Havia no ambiente podre revoadas de sss… E a excitação, como uma cheia, afogava tudo, derrancando pela raiz os impulsos da bestialidade humana, e pondo á mostra a torpeza physica dos mais graves funccionários. Era então que se viam velhitos da mais austera prudencia, curvando em gestos macabros sobre os vizinhos—juizes, antigos ministros, conspicuos directores de banco, e chefes de secretaria—furiosos d’amor canino, e dando a sua opinião d’olho esgazeado. Ella, na scena, parecia uma bella estatua reanimada, tão nobres as linhas da sua anatomia esplendente. E quasi núa, corria-lhe na carne um arfar d’emoção radiosa. O pescoço era maravilhoso de finura; ria-lhe uma sensualidade no modelado do queixo; emquanto a narina n’um frémito, dir-se-hia seguir o rolar d’olhos reaes que ella pela sala deitava. Erguia o braço n’um movimento afadigado; e viam-se cabellitos na axilla, muito pretos. O arco das duas sobrancelhas, quebrado em accento circumflexo, exprimia maravilhosamente o desdem. E suspensa, a sala aguardava que ella fallasse.

—Senhor! Ousa insultar uma mulher que se não defende? Perigoso me tinham dito que era; cobarde nunca!…—e ao meio da scena, n’uma colera de deuza, a cauda em serpente, um dos seios espreitando a tourada de focinho sobre a orla do corpete, bramia a terrivel sacerdotisa:

—Saia!

Sublime! Sublime! era a palavra de toda a gente.

Precisamente n’este remoinho de celebridade e de gloria, depois da grande scena do terceiro acto, uma noite, Rogério declarou-se a Velledo, n’um portuguez que a actriz não usava escutar lá muitas vezes. Fôra n’um escaninho do palco, durante a mutação de scenario.

—Palavra, adora-me, o senhor? disse-lhe ella escarnecendo.—Elle compunha uma attitude fatal, como se quizesse magnetisal-a de paixão. E despiam-n’a, os seus olhos faiscantes de vicio.

—Dizer-m’o não basta, tornou a eminente actriz. É necessario que m’o prove.

—Mas como? disse elle surdamente.

—Isso não é commigo.

E depois d’uma pausa:

—Ha talvez um meio de principiar. Porque não começa a ter talento?

Rogério não respondeu, mas os seus olhos, como brasas, na pelle branca do colo d’ella, redondo e nú, chamuscavam-n’a, mordiam-n’a, apalpavam-n’a, servindo-a como um goso arrancado á força. E n’um desvairamento, agarrou-a pelos dois braços sifflando, engasgado de furia.

—Cala-te estupor, cala-te diabo!—Era n’uma sombra de panno de fundo, que vinham, de correr. E a Velledo debatia-se, aterrada do escandalo, cahida do respeito usual por semelhante violencia. Rogério tinha-a cingido pela cintura, e apertado contra o peito, nas agonias d’um toiro; e aos beijos por toda ella, na bocca, na garganta, nas espaduas, sobre o peito, percorria, babava-a, delirante, horrivel de desejo, deixando-lhe vermelhidões por toda a parte, signaes de dedos crispados, babugens de raiva lubrica, que no pó d’arroz deixavam listrões nojentos de vêr. Enxovalhada da brutalidade, a Velledo chorava, gaguejando:

—Infame! Infame!

Despenteara-se na lucta, tinha-se aberto o colar, um dos colibris da túnica cahira, violentamente roçado. Rogério ficára a resfolegar n’um canto. Mas ouviu-se o contra-regra chamar para a scena do jardim; e com a voz musical de quando estava elegre, a Velledo desatou a rir alto entre os bastidores. E mal o galã disse—é ella, conheço-a, o coração m’o diz!—entrou em scena radiante e magnifica, monologando para si:

—Elle prometteu-me que viria. O seu amor é leal. Virá de certo—e n’uma expansão d’amor:—adoro-o, sim, adoro-o!…

—Has de cá cahir, cegonha! fez Rogério esfregando as mãos. E ao outro dia foi-lhe pagando as contas da modista. Mas já entravam a rosnar. Os ganymedes de palco, gentinha disposta a explorar, intrigar, levar e trazer segredinhos, bilhetinhos, cobriam Rogério de perguntas sobre a tristeza em que o viam, com subtis allusões á actriz. Nos camarins não se fallava n’outra coisa. Sabia-se que elle hypothecára as ultimas propriedades, perdia ao jogo, e mandava á Velledo todos os dias, uma grande corbeille de camelias e rosas confeccionada no Neves. De quando em quando, presentes de galantarias antigas que ella colleccionava com paixão, bibelots de Sèvres, pratos e netskés do Japão, aguarellas, bronzes e moveis delicados, pequenas peças vasculhadas nos adelos e casas de penhores, com paciencia de santo, regateadas durante horas, e muitas vezes adquiridas por preços escandalosos. Como amador de bric-à-brac, Rogério era uma besta, chegando a pagar por libras monos de loja de chá, fallidos de todo o merito. Velledo encolhia então desdenhosamente os hombros, mirando a bugiganga. E com irónica piedade:

—Decididamente tem o gosto caraíba. Vê-se logo que é da provincia. Foi do leite. Obrigado. Ou era uma fayança repetida, qualquer peça que ella pedia para lhe comprar, e Rogério já não encontrava no bazar indicado. A actriz impacientava-se então, fazia momo com o seu beicinho vermelho, batia o pé vendo-o chegar de mãos vasias.

—Se elle é um desastrado! Fosse quando eu lhe disse.

E predilecções de momento, ambições por quanto via nos armazens, e logo tédios pelo que ia adquirindo. Em dias de nervos quebrava, mordia e rasgava tudo para se vingar, na epilepsia dos que tendo feito das impressões violentas um habito abusivo, desesperam por fim, se acaso em vão apoz ellas correm. Tão raras as horas de bom humor, que Rogério, se alguma surprehendia, dir-se-hia gosal-a como recompensa disputada. Esse homem altivo cahia aos pés da sua gata sabia, em pieguices de collegial, deixando-se explorar por prazer. E sobre a posse tão ardentemente implorada, nem rastro d’esperança! Se ia beijal-a com mais furia, se a queria enlaçar pela cinta, ou a respiração cortada n’elle trahia alguma ideia occulta de deleite, ella logo de pé, faiscante e sarcastica, para o repellir com desprezo.

—Olhe que me não esqueci d’aquella canalhice do theatro, hein?—ou fazendo saltar o lorgnon Regencia:

—Ora filhinho! Deixa-te d’asneiras. Isto é do brasileiro.

Mezes passavam assim. Se por um lado Rogério não adeantava com a actriz, recebia por outro, do brasileiro, provas de deferencia e familiaridades em cada dia mais profusas. Tinham começado as relações por uma polidez reservada, que parecia occultar as mais cathegoricas antipathias. Dopois, aquella crosta d’indifferença estalára aqui e além, n’um cavaco mais vivo, n’um accordo ou outro d’acaso. Rogério sondava os gostos do brasileiro, lisongeava-lhe os ridiculos, punha-se ao lado das suas opiniões, aturava-lhe as estopadas, ou conseguia rir das graçolas d’elle. Era um pobre homem, limitado e benevolo esse brasileiro, que todo entretido a enriquecer-se, na mocidade, mal tivera tempo para gostar d’uma mulher—e assim conseguira embarcar na velhice, conservando intactas, pudicas quasi, as intimas juventudes do seu coração, uma singeleza timida e crédula, uma especie de convicção da sua inferioridade, como animal, em face daquella grande rainha da scena, e pequenas attenções balbuciantes para os caprichos d’ella, torturas soffridas sem revolta, e humilhações inda por cima agradecidas, n’uma effervescencia de lagrimas.

Esse mudo velho de olhar ardente e mãos de cavador, de continuo enluvadas, alto, negro, com uma barba branca de negreiro, e uma gravata de coleira á volta dos collarinhos molles, esse mudo velho, parecia marchar somnambulo na sua idéa fixa, dolorosamente algemado á sua paixão como a um cepo de patibulo, para toda a gente affavel, dizendo muito obrigado á creadagem, orgulhoso de ter em casa da Velledo o ar d’um intendente, desolando-se em suspiros que a edade já fazia grotescos, desdenhado, repellido, porém fincando sempre nas derrotas de cada dia, a coragem para insistir nos dias seguintes. Emquanto o pobre suspeitou que as denguices de Rogério viessem a ter resultado, foi sempre mantendo á vista d’elle, uma reserva polida, quasi fria. Os cumprimentos que trocavam, traziam, mesmo de longe, um asco a desconfiança. Os risos d’elles, ao toparem-se, no serão da tragica, eram um espremer de beiços seccos, com distillo d’amargura. Mas breve o nababo concluiu que não viria de Rogério o vento mau de desgraça, que lhe varresse a Velledo, como uma nau dos quintos, do mar banzeiro em que elle a trazia balanceada e repreza. Uma magua identica, parece, lentamente os conduzira a uma sorte de camaradagem. E vieram jantares, pequenos conselhos ditos na meia intimidade d’um segredo, favorsinhos que se calculam e estão prestes ao primeiro signal. Por fim deram o braço, trocaram brindes, começaram a sympathisar; e havia quatro mezes que o brasileiro já não passava sem Rogério, e Rogério se afizera a procurar todas as tardes o brasileiro. Velledo espiava aquelles manejos, deixava-os consolarem-se um no outro, e ia-os explorando systhematicamente. Era o tempo em que a fortuna de Rogério via o começo do fim, e Lisboa lhe ia notando as primeiras joelheiras, as luvas safadas e as golas russas. E os beiços d’elle enlivideciam, uma magreza patibular fazia-lhe duro o perfil; e enfastiado, mãos febris, não dava palava a ninguem. Em volta ao caso ria toda a gente. Apenas o grupo sério de Pirralho, philosopho Horacio, festejado Peres, e a ninhada de fedelhos positivo-publicistas, lia n’essa fronte sulcada, n’esse olhar fixo e interior, a gestação laboriosa d’algum grande livro. Actores, já o tratavam de resto, não o sentindo como outr’ora, generoso d’emprestimos, e tão prodigo d’alegres ceias no Gibraltar. A primeira vez que appareceu sem relogio, fumando cigarros de mendigo, quasi todos, achando-o pulha, lhe voltaram as costas.

Por esse tempo revelava-se Alcina, que passára da opera-buffa ao theatro de declamação, prima de Rogério e sua primeira amante. Fôra na Suzanna do Demi-Monde, papel de prova, cheio de movimento e finura, em que por confronto a Velledo tinha dado um estenderete medonho, e que Alcina fez com distincção surprehendente. Sobre o caso, a critica fez-se ouvir muito acerba contra a Velledo, mau grado as supplicas do brasileiro e de Rogério, a que fosse poupada a grande sacerdotisa. Em quasi toda a linha jornalistica, de repente, as hostilidades romperam com violencia brutal, bipartindo-se os criticos na hoste dos que bradavam—Velledo!—e na dos que punham Alcina na mais brilhante evidencia. A prima de Rogério, por conseguinte, passou a synthetisar a escóla nova, como a Velledo era a expressão da antiga arte. Pirralho e o magreirão Lindôso, macacos-pontifices da alta critica moderna, saudaram a musa nova em rutilos artigos crivados de referencias picaras á antiga primeira actriz portugueza, na qual tudo, segundo elles, era convencional. A historia do corpete fez escandalo de morrer a rir. E dois ou tres distinctos escriptores e nossos amigos estiolavam-se a calcular os annos que ella teria d’edade, o que esbanjava em cabellos postiços, e da composição chimica d’aquelles seios esculpturaes…

A actriz Alcina, não! Era a mocidade maleavel e viva, a intelligencia sagaz que tudo penetrava sem esforço, o genio desprezando artificios, e dando-se á plateia em relampagos—e como mulher, uma nympha de Clodion, elançada e viva.

—É necessario derribar os falsos deuses, escrevera Lindôso. A arte é constantemente evolucionista. Quem não progride, não a acompanha, e elimina-se pelo esquecimento ou pelo desprezo…

—Isso é forte, homem…

—Qual forte! Uma velhaca que nem bilhetes manda para o jornal! E d’ahi põe recusas ás nossas mais ternas blandicias. Póde-se lá soffrer!

No entanto crescia o desespero da Velledo, que chorava dias e dias accusando o emprezario, não querendo estudar os papeis, cobrindo a imprensa d’insultos, Rogério e o brasileiro de repellões. Uma manhã, apenas aquelle veio, ella resolutamente:

—Essa creatura que elogiam por ahi, é sua prima, e foi sua amante, já sei. Porque não accedo ao que o senhor pretende, move-me guerra nos jornaes.

Rogério ia protestar. Ella disse—canalha! e mais rapido:—em todo o caso, oiça. Se a peça nova fizer reviramento completo na imprensa, expulso o velho e entrego-me a si. Ha uma condição de que não abdico, note bem. Que essa bebeda seja posta de rastos, fóra do theatro em que eu represento. O resto é com o senhor. Acceita?

Elle poz o chapéu na cabeça, disse:

—Não!—E sahiu como doido.

Chovia, e elle sem guarda-chuva, pisando a lama com sapatos de baile, seguia alagado ao longo dos predios. Dois ou tres amigos chamaram-n’o de dentro de trens, para que viesse abrigar-se. Olhou-os com ar vasio e foi andando. A sua paixão pela actriz, avolumada pela resistencia, obstruia-lhe a livre esphera da deliberação, da acção, e desvairava-o. Que havia de fazer? A pobreza fizera-o mesquinho: e vinha-lhe com teimozia a ideia do dinheiro gasto com essa mulher, sem reserva, sem egoismo e sem calculo, n’uma boa vontade de rapaz. E nem mulher nem dinheiro!… Então recrudescia-lhe o desejo d’ella, e era uma febre bestial d’amor que o espicaçava a todo o instante e lhe fazia delirios. Foi pelas ruas de mãos nas algibeiras, flanando ao acaso na lama. Vendo um antigo freguez, os cocheiros paravam fazendo-lhe signal—e era uma humilhação para Rogério ter de recusar, ou virar a cabeça fingindo não ver. As ruas surprehendidas por essas primeiras gottas de chuva hibernal, tinham sobresaltos e gritos de vida que procura abrigar-se, a um tempo frenetica e contente… mulheres apanhando os vestidos, homens erguendo as calças até á origem das polainas, chamando os trens, ou entrando á pressa nas escadas.

O ar frio dava ás epidermes das mulheres um côr de rosa mais pudico. Era a hora do Chiado, e os trens desciam para os armazens de modas, em cujas vitrines se encontravam já densos estofos, chapéus e capotas do ultimo modelo. Lisboa, que voltava das praias e estações d’aguas, procedia á sua installação, buscava nos livreiros as ultimas edições, lia os cartazes dos theatros, escolhendo a sua noite, dictando a sua toilette, familiarisando-se com os aspectos das ruas e o rolar das carruagens. E a cada instante, Rogério tinha de fazer um signal aos conhecimentos antigos, actrizes dos pequenos theatros, jornalistas, dandies, horisontaes; toda a mascarada elegante passeando os primeiros paletots estofados, no giro da evidencia e da moda. E intimidades que roçavam pela fadiga do seu casaco um velho dito maldoso, desdens que lhe acenavam de longe co’as pontas das luvas amarellas, piedades vis que o lastimavam, ou peccadoras que lhe riam pela ferida dos beiços pintados, tendo partilhado outr’ora o luxo dos dias aureos de Rogério. Parece que tinha combinado cruzar com elle hombro a hombro, essa tarde, toda a revoada de doidas sereias avivadas de chic!—Primeiro Laura, a condessa, uma soberba rapariga que explorava um club de velhos, e era gosada por acções. E as mais: Annita, que surprehendendo a primeira sombra na face, ia casar com um judeu capitalista; Hermine, o vampiro, de cujo leito phosphorejavam as monstruosidades dos harens da Asia; Luiza, alta, morena, sã, com os seus eternos grandes sapatos de homem, e os seus modos decididos de commis-voyageur… E o pobre auctor de preoccupado, nem reparava no espanto e na commiseracão com que o fitavam. Uma patifaria sem nome, quererem voltal-o contra Alcina, rapariga de talento afinal, cuja carreira difficil ella percorrera toda, sem auxilio nem reclame! Doida, boa, sincera de mais, e por isso mesmo enganada sem rebuço. Eil-a ahi na celebridade, chegando ruidosamente ao pinaculo, musa de um grupo de artistas. Promover-lhe a queda, expulsal-a do primeiro theatro—que negra infamia pretendia então a outra d’elle? Chegara ao jornal do Lindôso sem dar por isso. Subiu. Inda não tinham sahido das repartições, e a redacção estava deserta.

—O snr. Lindôso, disse Rogério para o gerente.

—Primeiro gabinete, á esquerda.

Estava lá. Ora viva! disse Rogério.

—Sei a que vens. Não posso pagar-te inda hoje. Sê benevolo uns dias mais. E volubilmente:—Então sabes? Os constituintes venderam-se. Estou aqui a rachal-os de meio a meio. A que chegámos! E mostrava os linguados escriptos—Lisboa vae vêr o bom.

—Eu cá, disse Rogério, vinha para outro negócio. Janta hoje commigo. Tenho lá baixo um trem.

—Demonio! pois sim. Ao Central?

—Em minha casa. Descobri uma cozinheira incomparavel. Pulcheria se chama. Então a mais acrisolada sciencia nos molhos! Tenho um Murillo no quarto, que outro dia, sentindo o olor d’um bacalhau confeccionado por ella, sahiu á casa de jantar acceso em fome.

—Raio de cozinheira!

—Vens d’ahi?

—Dois minutos para terminar a demolição d’um partido politico. E como se porta na lebre ensopada, essa tal Pulcheria?

—N’isso então! Imagina um d’estes acepipes tenros, alpestres, perfumados, extranhos… A pastoral de Beethoven com tubaras de recheio. Homem, no Algarve estava um defunto no esquife; vae ella, chega-lhe ás ventas carneiro com batatas—e o morto pega a bailar no meio da casa.

—A caminho, fez o outro espicaçado pela fome de quarenta cães sem dono.

A casa de Rogério era perto, e em dez minutos faziam elles a sua entrada no escriptorio. Rogério fechou a porta da escada e metteu a chave na algibeira.

—Ah diabo! exclamou Lindôso com uma palmada na testa. De todo me esqueceu falar da tua peça. E que tinha planeado uma coisa magnifica! Artigo para o publico, está claro, coisa d’arrombar ahi tudo. Entre nós, franquezinha. Deves deixar o genero: o teu drama, aqui para nós, era quasi infantil.

Rogério, surpreso, nem falava. Que exhuberancia de malandro! pensava elle.

—Nem admira, continuou Lindôso. Tu, o que ha de mais moderno no estylo ligeiro, de mais elegante, de mais parisiense, cahes agora na monomania de fazer viver sobre a scena os assumptos historicos!? Primeiro, não és um erudito. Segundo, não tens a corda dramatica. E olha que influe alguma coisa, a gente não se chamar Walter Scott ou Shakespeare, menino.

—Sopra-te o vento d’outro lado, esta manhã, tornou o dramaturgo com os beiços brancos. Em todo o caso, ouve. Eu li o que escreveste sobre a Alcina…

—O artigo para amanhã é superior. Vaes vêr que maravilha d’analyse e graça humoristica. A sagacidade do Taine na fórma irisada do Wolff. Ah, meu caro Rogério, meu bem! Ponho a Velledo em picado. Dez annos de lucta, e regeneramos o theatro portuguez.

—Trazes o artigo?

—Vou lêr-t’o. Ficas assombrado.—Mas onde foi elle buscar este vigor de linguagem, este conhecimento do assumpto, esta chuva de sarcasmo e pedras preciosas? dirás tu. Ah, Rogério! Nasce-se.

Enfastiado, risonho, o dramaturgo fez-lhe signal para que lêsse. O artigo era uma catilinaria habil, gradual, bem deduzida, e feita com esse sarcasmo sereno, quasi limpido, de quem não receia lhe tomem contas. Definia a arte nova em termos firmes, historiava-lhe a evolução rapidamente, frisando-lhe os intuitos, explicando-lhe o destino e o nivel philosophico. Cahia em seguida sobre os actores, no tom desdenhoso de quem trata subalternos—e uma vez alli, tocava na Velledo. Desde esse instante, uma furia explosia no artigo, e as ironias eram um crivar de balas no corpo d’um fuzilado. Segundo elle, não era possivel mais tolerar sobre a nossa primeira scena, uma actriz cheia d’artificios e ronceiras manhas; cantando, se declamava; e não tendo mais a voz maleavel, nem vivaz o gesto, nem a pose esculpida na proporção da figura que reproduzia. Desmemoriada, envaidecida, tola, velha, quasi feia…

E no final, em palavras metallicas, enthusiasmadas, relampejando fundos d’apotheose, entrava a dizer que Alcina era o astro do dia novo na arte, subindo tocado de flammas, com a grandeza d’uma redempção pronunciada de ha muito, pela critica imparcial…

—Admiravel, hein?

—Pois sim, fez Rogério retesando as pernas. Quanto ganhas tu por essa canalhice?

O outro, embasbacado! Quanto ganhava?

—Ora essa! Eu não trafico com o sacerdocio. É convicção.

—Sabido! O artigo de hontem trazia as tuas iniciaes. Publica o de hoje com o nome todo; tens dez libras.

—Hein?

—Sómente onde estiver Alcina, porás Velledo, e onde Velledo, Alcina.

—Que quer dizer toda essa cantiga?

—Nada de scenas. Entre pulhas, o descaramento é a alma dos negocios. Dez libras para virares d’opinião. Recusas? perdes o dinheiro e quebro-te as costellas. Tão certo!…

Lindôso fizera-se verde, queria-se erguer, não podia; e tudo era olhar para a porta, calcular a retirada.

—De maneira que o teu jantar era isto? E a cozinheira Pulcheria… Traste!

Rogério nâo respondeu.

—Mas tu? a ferro e fogo com a Velledo, porque te voltastes á ultima hora? Arranjos! A corja que se entende e se harmonisa.

—Faz as emendas que te disse, tornou Rogério docemente.

Mas o desenterrado hesitava.

—Com quem imaginas tu que estás falando? aventurou-se elle a perguntar.

Rogério agarrou-o pelo pescoço, como as cozinheiras fazem aos gatos lambareiros.—Anda! Senão desfaço-te! Senão atiro comtigo da janella!

—É violencia. Protesto! ganiu o desenterrado debatendo-se. Mas a voz de Rogério rebentou n’um estampido.

—Olha que eu estrangulo-te. Escreve!

Fez-lhe pegar na penna.—Emenda!—E roxo d’asphyxia, cyanosado, humilhado, escorrendo suor, o outro emendava. Rogério agarrou no artigo, leu tudo minuciosamente, e inda apontou um ponto ou outro para Lindôso corrigir—Agora assigna!

O miserável em soluços, arquejando horrivelmente, assignou.

—Tratante! Eu me vingarei. Ai de ti! Rogério ria freneticamente.

—Amanhã peça nova, ajuntou elle n’um sarcasmo tranquillo. Quatro actos d’Augier, alguma coisa de fino e superior. Alcina lá vae enrodilhada n’um papelito quasi de comparsa. O melhor papel para a Velledo! Ella que até agora só fazia os pezados centros dramaticos, Joanna a doida, a Mulher que deita cartas… entra n’uma phase nova, quer mostrar que conhece a escóla moderna. Eh! Eh! que diz a isto o scintillante Lindôso? O publico tel-as-ha na mesma noite, as duas, face a face. Elle é imparcial. Julgará.

E emquanto a raiva branca epileptisava o outro—Amanhã os jornaes saudarão a eminente actriz, pela penna dos mais festejados escriptores. E na noite da peça, enchente á cunha, bilhetes a libra, uma chuva de corôas. Ah, desforra estrondosa! Triumpho como ninguem viu outro! E alcançado por mim. Não que eu admire a Velledo. O que escrevem contra ella é verdadeiro. Mas apraz-me esmagar essa tropa de canalhas vendidos, a começar por ti.

—Sim! Ainda hontem a querias derribada, essa Velledo, já hoje lhe advogas a victoria. Quanto paga o brasileiro por esse enthusiasmo? És dos meus. Vendeste o que te restava, entras a viver d’expedientes. Eu cá fui sempre pobre, ao menos. Seguia o meu caminho bem ou mal, sem pão muita vez, oito dias n’um quarto alugado, oito n’outro, expulso quando não tinha com que pagar, desempregado, mal visto, esbarrando com a antipathia de toda a gente. Queriam no meu porte a nitidez d’um cavalheiro? Dessem-me de comer. Rogério, inflexivel, chamou o creado.

—Isto ao jornal.

—O jornal não publicará, disse Lindôso.

—O teu não. Mas o meu… Agora vamos a jantar.

—Obrigado. Acabemos com isto. Abre-me a porta!—Era quasi noite.

—Nao. Dormes cá hoje, tornou Rogério.

—Vou gritar, n’esse caso.

—Hum! Não cahirás em semelhante tolice. Ao primeiro berro, amordaço-te, e passas a noite n’uma camisa de forças.

—Mas isto é inaudito!

—Creio que sim.

—Hei-de tirar uma desforra.

—É da ordem.

—Mas quando me deixam sahir então?

—Quatro da manhã. Hora em que a tiragem dos jornaes está toda feita. E coração ao largo, anda jantar. Conversaremos como bons camaradas. Isto aqui não é agora nenhum carcere; podes circular pela casa toda. Hein? Não me arreceio das gavetas: vendi as pratas, e não ha vintem por cima das mesas.

—E promettia-me dez libras, isto!…

Quem hasteava a Velledo era um grupo d’escriptores de pulso (como então se dizia) feito do pae nobre Tiburcio, critico Borbas, festejado Peres, Rogério, Moreira das magicas e os inimigos d’Alcina. Uma espécie de cenaculo, que receando a decadencia da scena, se impuzera alumiar o gosto da turba, com a luz dos seus talentos conspicuos quanto experimentados. Esta tropa de massadores, quasi todos carecas, decidira pôr dique á sedição de Pirralho e Lindôso, creando o Binoculo, semanário que definiria a missão do theatro, pondo em relevo as regalias dos auctores, e encarregando-se de catalogar os comediantes pela ordem e genero dos meritos que patenteassem: quem havia de ser o primeiro, quem havia de ser o segundo…

A convite de Borbas tinha-se o conclave reunido n’uma botica da rua do Amparo, com penna e tinta para tracejar das resoluções adoptadas. E houve logo disputas sobre o titulo da folha.—O Binoculo, dizia festejado Peres.—Arte de Talma, opinava pae nobre Tiburcio.—Diabo Verde, era o parecer do Moreira das magicas. Porém Borbas, um auctoritario que tinha o culto das civilisações antigas, disse logo: O Capitolio! Cada qual então pediu a palavra afim de justificar o seu titulo. Engalfinharam-se uns nos outros, á descompostura. Como estava vivo de vespera o artigo de Pirralho exaltando Alcina, urgente se tornava fazer sahir resposta bem official, bem da mestrança, que trancasse as doutrinas da escóla avançada. Suspensa a sessão por vinte e quatro horas, cada um foi estudar para casa o que havia d’escrever no jornal, com promessa d’assembleia no laboratorio da botica, ao dia seguinte.

No outro dia, eil-os de volta arrastando as passadas, beiços lividos, olho morto, tendo perdido a noite sobre os melhores auctores. Varios, seguidos de gallegos, tinham feito conduzir annos inteiros da Revista dos Dois Mundos. Borbas, em casaca e tira branca, solemne, convencido, radiando uma vasta auctoridade, appareceu com a sua resma d’apontamentos. Aberta a sessão, palavra a um, palavra a outro, combinaram-se notas, organisou-se o plano d’ataque… resultado, duas columnas de sandices e a ideia do jornal posta de banda. Foi o momento de Rogério fazer a sua entrada na sala. Inquiriram todos: então?—Era na manhã sequente á detenção de Lindôso.

—Sanou-se tudo, ganhamos, exclamava o dramaturgo n’um jubilo. Lindôso nosso. Vem o artigo na Gazeta do Sport.

—E viva!

—Quasi todos os jornaes fallam da Velledo em quatro columnas e cinco. Grandes letras, titulos d’arromba… Um genio! A primeira tragica da Europa. Continue progredindo…

Já vinte mãos cresciam ávidas para os jornaes que elle trazia.

—Venha de lá isso. Venha de lá.

Estendiam as folhas por cima da mesa, tumultuosamente, vangloriando-se dos artigos como d’obra sua, dizendo alto as passagens flammantes. Gritava um:

—Isto soprei eu ao articulista. Outro:

—São as minhas ideias escriptas e escarradas.

—Escarradas sobretudo, insinuava um terceiro.

Nenhum d’elles escrevera uma virgula, mas procuravam enganar-se, dizendo:—é como se os artigos fossem escriptos por nós, visto que demos a substancia.

—E pagos por mim, suspirava Rogério arruinado, auctor e victima do triumpho que elles se attribuiam. Mas Borbas, esfregando o nariz como um botão de campainha, rosnava com entonos de leão:

—Tiveram medo. Inda valho alguma coisa.

D. Maria, essa noite, offerecia o mais bizarro e pictoresco aspecto. Uma furia revolvia a turba na plateia; havia conclaves pelos cantos, palavras altas; gestos doidos sahiam dos grupos, accentuando alguma affirmativa audaciosa—e os decididos declaravam que havia d’ir tudo raso! Já os informadores de jornal, correndo os olhos pelos camarotes, de carteira aberta, tomavam nota dos nomes e toilettes. Aqui e além, pelas ordens caras, faziam-se ruidos vagos, arrastar de cadeiras, risinhos cantados de senhoras: um bournous desacolchetado no fundo d’uma frisa, distrahia subito as palestras, e luminosas espaduas gottejadas de diamantes, vinham á luz do gaz espanejar brancuras exoticas de magnolia. Toda a galante guarda de semi-mundanas, destacava pelos logares de honra, os seus estapafurdios couraceiros, todos os typos, trajos e côres de cabellos. Laura a condessa, em pellucia verde pavão e rendas pretas, tincta de loiro essa noite, punha um bonnet de pennas delicioso. Luiza em escarlate, bordada de vidrilhos, admiravelmente grande e bem feita, dir-se-hia brotar d’um cacto com a rebeldia d’um génio de volupia e ruina. Hermine, de damasco branco, decotada até ao ventre e coberta de geraneos pallidos, soberba de carne, divina d’impudor, affixava o seu riso de bacchante, vago, inquietador, sem ponto de mira, como essas estatuas d’Egino que riem ceifando cabeças.

O sport era feito de figuras bassas, estranhas, espigadas, bonitas algumas, e com um tom d’elegancia doentia. Uma especie de figurino geral corrigia os typos, dava o rythmo dos cumprimentos trocados, parecia decretar do entono da pronuncia, e haver stereotypado das boccas, o mesmo modo de rir altivo e frio. E apontavam-se as figuras salientes—o marquezito de Selmes, imberbe, loiro, quasi ideal, com vicios perversos e um geito cynico na bocca de cherubim: tão predestinado a gommoso, que apenas parido, entrára a pedir cognac e vinte libras, afim de se abalar chez Tata. Junto d’elle, o visconde de Palhalvo, de craneo em pera, com bochechas immensas que lhe esmagavam a bocca e o nariz, mostrava nos olhos ternos, genero carneiro morto, a todas as ricas herdeiras, o seu joven coração devoluto. Alberto M., poeta insonso, tortulho ultimo da epocha romantica, muito estimado nos salões, e causador dos mais finos adulterios, debruçava-se todo para uma viuvita loira que vinha d’aliviar o luto. E a phalange alegre das ceias nos gabinetes do Matta e do Augusto: mulheres fugidas aos maridos, actrizes sem theatros, filhos de banqueiros, vergonteas fidalgas afundando os ultimos contos d’uma antiga opulencia, medicos em voga, personagens alvares vivendo á sombra d’um nome de familia, janotas pagos por uma velha.

Barão de Murtede tinha-se installado mais a franceza, n’uma frisa de bocca, mesmo em face da esposa e das filhas, que estavam ouvindo contar ao Alfredinho torto, o Alfredinho dos cotillons, uma scena de sopapo nos corredores de S. Carlos, por causa de não sei que bailarina americana. A franceza, muito desengonçada, d’olhos pardos, irritante de magreza, quasi diaphana, coberta de signaes postiços, ouvia-lhe distrahidamente uma tolice qualquer, abrindo e fechando o leque, com as suas mãos cobertas de pelle de Suède, que rescendiam heliotropo. A espaços:

—Oh, que c’est charmant! Oh, que c’est charmant!… e fitava com provocação a frisa fronteira, d’onde a baroneza de Murtede fazia olhinhos doces sobre um delegado de barba sedosa, um vello vaicharel da Veira, recem-chegado á côrte, que a compromettia na plateia, á vista de toda a gente. N’outra frisa, ao fundo da sala, as Simas, mãe e filha, davam audiencia, antes de subir o panno, a uma multidão turbulenta e esfaimada de viveurs. De longe, Hermine lhe fazia signaes, affixando á sala a sua familiaridade com senhoras d’aquellas; emquanto mais circumspecta toda rigorista no seu programa de senhora, Laura, apenas de leve respondia aos cumprimentos que ellas de lá lhe mandavam, por entre macaquices de beijos, nas pontas dos dedos. Na frisa das Simas, aquella noite, era uma algazarra de metter medo; tinha-se installado alli o quartel general da má lingua, e o centro expedicionario das frescatas para depois do espectaculo. A mãe, uma gorducha quasi nova, com dentes chumbados na frente, e o ceu da bocca de platina, branca, myope, dando-se um tic de palpebras muito impertinente, esposa d’um general, e sobrinha, dizia-se, do senhor D. Miguel, tinha começado vida na melhor roda lisbonense, entre os explendores das festas e a convivencia das grandes familias. Habitos de grande vida, tão funestos ás pequenas fortunas, deram-lhe com a casa de bancarrota em bancarrota. Já por fim, ellas mesmas faziam a cozinha, e cortavam os seus vestidos de sahir, convidando as amizades a um chá, todas as terças-feiras, com piano e castiçaes de cristofle, n’um casebre apalaçado ao Bairro Alto, em cujo rez-do-chão, por signal que viera installar-se uma typographia socialista.

Para vir a casa d’ellas, em principio, inda era de rigor ser-se apresentado—mais tarde, o general, intercedido, fez concessões, como era bom homem… pedia então sua meia libra, dez, quinze tostões, e a cada conviva, além do chá, revertia o direito de tratar por tu a dona da casa. O general fôra rico em solteiro, o jogo porém tinha-lhe comido tudo, e a mulher esbanjára-lhe o resto. Uma filha mais nova, Fernanda, toda mimosa na sua figurinha etherea de Gretchen, inda chegou a ser pedida em casamento, mesmo assim pobre e mal educada, por um guarda-marinha que, a adorava, e depois a repudiou, sabendo a vida crapulosa da mãe e da outra irmã. Desolada, e desconhecendo outro caminho que não fosse o da sua singela honestidade, sem vocação para cocotte, e sem coragem para costureira, a pobre pequena atirou comsigo ao fundo d’uma cisterna que havia no pateo.

Entanto, já a vida as apertava d’urgencias, dia a dia insaciaveis—o luxo d’um lado—do outro lado a penhora—do outro ainda o general… em termos que a mãe, tomando as redeas da casa, durante o delirium tremens do marido, entrou a dar bailes de mascaras no casebre armoriado, abrindo as suas portas a toda a casta de rodilhões e torpezas. Alli debutaram muitas raparigas na vida galante, costureiritas que os devassos encommendavam á mãe Simas; filhas de pequenos empregados, que entravam no baile em musselina branca, sem brincos, nem colar, accedendo ao appello d’uma amiga de collegio; noivas que vinham ganhar o enxoval de casamento, n’uma prostituição secreta e cheia de rancores; hespanholas retiradas da má vida, por algum amante que as desejasse gosar mais por detalhe… algumas ingenuas, lindas algumas, e outras simplesmente irritantes, pela virgindade physica que traziam, esculpida em desejos, mal sazonados ainda, nos meios limões erecteis do peito.

Durante o dia, era frequente encontrar-se a mãe Simas por todas as ruas da cidade, offegante, enrodilhada no fundo d’uma tipoia, fazendo adeusinho aos caixeiros, rindo para os ociosos das tabacarias, apeando-se á porta de todas as escadas sem guarda-portão. Ia em serviço.—Até á noite, até á noite, dizia ella, apanhando as saias a molhe, por baixo de cujas barras, não raro badaleavam penduricalhos de lama immunda. E esquecida da mala por todos os cantos, voltava atraz, esbarrava n’um taipal, ouvindo sem pestanejar, no seu aplomb de condessa, os apropositos mais desavergonhados…

Dentro de pouco, a casa foi creando fama, pelo expedito das suas encommendas e gosto fino das suas requisições, creando fama sobretudo na provincia, no Brasil, e por essas possessões d’Africa, d’onde annualmente chegam a Lisboa, os mais tenebrosos, os mais acerbos apetites de homem, recalcados na solidão, e centuplicados de força pelos delirios côr d’absintho da abstinencia. Á chronica da casa mesmo, no livro de oiro dos escandalos mais reconditos, tinham vindo jungir-se muitos nomes da nobresa, sangues de mil castas, fibrina dos Gamas, materia corante do mestre d’Aviz, soro e saes de Nun’alvares, Miguel de Vasconcellos, ou algum sapateiro da Bairrada—todas as elegantes ociosidades patricias e dinheirosas, que por Lisboa entreteem o fogo da luxuria, nas saturnaes nocturnas da cidade baixa. A policia, tão meticulosa para com outros gyneceus de menos alcandorados brazões, guardára sempre ante o alcouce das Simas, um mysterioso receio ennastrado de deferencia, alguma coisa como a protecção da lei aos grandes monopolios. De grandes personagens se dizia, que nas dobras d’uma capa andaluza, altas horas, alli vinham beijar, entre duas taças de Champagne extra-secco, velludosas covinhas de barba, divinas de mocidade, surprehendentes de frescura, pacientemente rebuscadas, negociadas, cathechisadas, pelas Simas, mãe e filha, durante uma alcovitice de semanas e semanas; através dos viveiros mais bem fornidos de caça, bairros pobres, casas de modista e bastidores. Os melhor informados, frizavam precisamente, as jerarchias e nomes dos grandes freguezes, apontavam os cocheiros de noite, muito em segredo commissionados para este serviço deshonesto; e outras historias lugubres… gritos de virgindades laceradas, rumores surdos de luctas no socego tragico da casa, sombras correndo em negro, de cabellos soltos, na brancura dos stores illuminados por dentro… Até d’uma vez… emfim, a instituição das Simas, entrada nos habitos lisboetas, fazia-se agora tão necessaria á cidade como os albergues nocturnos ou a Escola Polytechnica.

Farejando a sala, o frequentador habituado, teria podido adivinhar uma especie de plano de campanha na ordenação dos espectadores da plateia, plano sabio traçado por algum grande claquista envelhecido nas barafundas do proscenio. Cada ala de fauteuils tinha o seu chefe. Ao pé da cadeira d’um espectador indifferente, viera installar-se um espectador comprado. Nas primeiras filas, destacando a sua linha temivel de luvas brancas e faces terrosas, installara-se a escóla que protegia a Velledo, na pessoa de dez ou doze escriptores cambados, e uma tropa de conselheiros e velhotes de bom tempo, por cujos leitos a actriz espargira os perfumes talvez do seu banho matinal. Festejado Peres e Moreira das magicas, inquietos, encasacados, cavalleiros de Christo, profusos d’adeuses e abraços, tinham-se postado ás portinholas da sala como duas fuinhas, passando palavra aos que iam entrando, distribuindo poesias, pedindo applausos descaradamente. E ao passo que o brasileiro cuidava da ceia, com profusão de flôres e philarmonicas, Rogério levára ao Monte-pio os ultimos penhores que pudessem pagar um brinde a essa mulher que o entontecia e deslumbrava. No momento de descer a escada da Velledo, ainda o dramaturgo estava decidido a romper com ella. Porém cá fóra, a sua indole cobarde, amollecida de desejo, perdidos uns restos de pudor, tinha concebido possuir a todo o transe aquelle bello corpo de espuma e rosa, custasse o que custasse, uma só noite que fôsse—e assim organisára a reunião de criticos no laboratorio de pharmacia, a detenção de Lindôso, o chuveiro de panegyricos em todos os jornaes, e emfim a bella enchente d’aquella noite. A imaginação de Rogério fôra de tal ordem e presteza, que Pirralho e os adoradores d’Alcina apenas tinham encontrado cadeiras nas ultimas filas, e camarotes das ultimas ordens. Desterrados para tão longinquas paragens, perdidos por escaninhos taes, facil seria suffocar a pateada que elles intentassem. Lindôso, desacreditado pelo artigo d’essa manhã, não tinha julgado prudente apparecer. Pirralho voltara-lhe as costas, os amigos d’Alcina ameaçavam esbofeteal-o em publico. Já o calor aljofrava as calvas susceptiveis, e as asas dos leques, por centenas, faziam no ambito como um borborinho de pombal.

Á hora de subir o panno, o triumpho negociado por Rogério era coisa decidida ou quasi; e os animos pareciam propensos a victoriar, mais uma vez, a nossa primeira actriz. A peça, retalhada a dialogos scintillantes, era alguma coisa no genero Sardou e Dumas filho, estapafurdia como senso dramatico, mas irritante d’ironias e perfumada de gentilissimas graças—um adulterio desculpado por theorias de folhetim, em cuja imoralidade ninguem fizera attenção. N’essa comedia, toda sublinhada com uma rara finura, esfuziando os paradoxos por jorros e as mordacidades por turbilhões, sem entrecho quasi e profunda não obstante, combinando argucias de gentil-homem com sahidas de garoto, imagine-se o que faria a Velledo, quasi gorda, chegada aos quarenta, com gestos atufando-se na plastica sólida dos braços, e não possuindo já a nervosa vida de scena, inspirativa, momentanea, nem já podendo facetar pelos entonos da voz, as mil intenções e subtilezas de dialogo, d’uma peça toda intellectual como aquella. Em compensação, as toilettes de rigor, os setins roçagantes, os pufs d’estofo adamascado, bordados de flôres, plumas, franjas e peitilhos de contas, iam direito á fascinação das burguezas. E apenas ella appareceu, foi na sala um borborinho atufado—sss… sss…—alguns tacões bateram ainda, e houve nas torrinhas um bocejo em voz alta, intencional. Mas estava calculada a reacção. De varios pontos, subito, ao mesmo tempo, sahiram palmas destacadas, quatro ou cinco vezes gritando:—bravo!—e uma formidavel salva revoou no theatro, louca, ensurdecedora, como nunca se vira. Vibrado o centro emocionavel da turba, podia a peça ter corrido como quizesse, bem, mediocremente ou mal; o resultado tinha de ser uma victoria. Foi assim que no segundo acto as chamadas eram já tantas, que Velledo fatigada, resolveu, desmaiar em scena. As flôres enchiam completamente o palco e choviam sem conta dos camarotes. De pé nas cadeiras, debruçadas lá cima das torrinhas, centenas de figuras batiam as mãos; e Rogério achando ainda uma scentelha dos juvenis enthusiasmos d’outr’ora veio á scena offerecer-lhe um volumoso cofre de sandalo.

Disse-lhe rapidamente:—a peça nova fez successo. Cumpri a minha promessa. Espero não esquecerá a sua.

—Obrigada, disse ella, estendendo-lhe a mão, e a sua voz commovida, dir-se-hia fluctuar n’um lago cerulo de promessas d’amor.(Voltar ao Conteúdo)