Á meia noite, depois de ter abraçado os amigos no Martinho, com uma ternura de adeuzes que o caracter blasé de quasi todos tornára, valha a verdade, intempestiva, Jorge Miguel tomou vagarosamente o caminho habitual da sua casa, scismando em que era esse o seu ultimo «fóra de horas» de Lisboa. Morava ao Monte havia nove annos, no pincaro do outeiro mesmo, sobranceiro á cidade, ao pé da ermida—n’uma casinhola de pobres cujo primeiro andar o novo senhorio repartira entre elle e um empregadorio velho do Museu.

Alli, com os seus livros, sem creado, varrendo a casa elle mesmo, com pares de calças por cima de todas as cadeiras e cartapacios n’um tumulto de rumas pelo chão, Jorge Miguel fazia uma vida concentrada de alchimista, silenciosa, de porta fechada ás visitas e cerebralidade muda ás expansões.

A cidade, que o conhecia n’um fumo de lenda um pouco feita através das suas blagues, afizera-se a lhe consentir em publico um eu á parte, explicando por maluquice a concentração solitaria dos seus giros, e mesmo por bebedeira as apoplexias de humor que a certas horas convertiam a sua apathia triste em improvisação epileptica, archi-estouvada.

Áquella hora a cidade apaziguava os seus tumultos, cahia do gaz um langoroso bruxuleio; os transeuntes, menos; e todo aquelle socego entrava na solidão mental do pobre moço, escruciando-lhe a vida de um nunca mais á vida de solteiro. Porque Jorge Miguel, farto de viver sósinho, ia casar.

A historia d’esse amor era uma d’estas cousas occasionaes, despertadas na vida entre duas cogitações mais amargosas, arrastadas longos annos entre preguiças de affecto e desfallencias de vontade, relegadas successivamente para os longes do futuro, e que um dia afinal se impõem como a solução pelo absurdo de um problema economico impossivel de resolver de outra maneira. A vida litteraria, unica paixão absorvente que se lhe tinha conhecido, chegada ao cume, collocára-o na alternativa de, ou ter de rebentar de martyrio n’um meio hostil a toda a ideia de arte independente, ou de pôr ponto brusco n’uma producção que mesmo apesar de fulgurante e vigorosa só conseguia produzir no publico uma surda irritação minaz contra o escriptor. Entre a miseria odiada e a espectativa de uma madorna plethorica n’um canto de provincia, Jorge Miguel acabára alfim por se vencer; e d’esta vez, arrazado, dera no orgulho o golpe mestre, fazendo as malas para esse desterro onde a bestificação do matrimonio lhe açaimaria os ultimos piaffões de archanjo revoltado.

Quando chegou a casa estavam quatro malas fechadas na ante-camara, um couvre-pieds acorreado com guarda-chuvas e bengalas, dois moveis envoltos em lona que os gallegos não tinham podido levar na ultima padiola, para a gare—e os aposentos sem trastes, o relogio parado no muro, o vento ronronando nas arvores do adro, tudo aquillo lhe pareceu como o responso da sua mocidade já fria e decomposta. A um canto da pequenina sala de trabalho, um monte de papeis, tombo da sua bohemia, aguardava o auto-de-fé liquidador. Jorge Miguel despiu o casaco, trouxe um alguidar da cozinha, e chegando para o pé da papelada uma das malas, começou á luz da vella o inventario d’esse archivo de quinze annos rebolados por todas as maluqueiras da vida sensacional e litteraria. Eram primeiro bilhetes de visita e bilhetes postaes agradecendo livros, pedindo entrevistas, artigos, palavras de favor—menus de jantar, convites de exposições e de concertos, ramitos sêccos, retratos insepultos, carteis com monogrammas, dizendo, em lingua inverosimil, adorações litterarias com resaibos a estranhos sentimentos—e Jorge Miguel passeiava os olhos devagar n’aquellas coisas, evocava um momento as epochas e as respostas, e phreneticamente, para asphyxiar a saudade, chegava os papeis á vella, e ia-os atirando incendiados para a concavidade do alguidar. Cartas de Paris, cartas de Roma, da America, de Coimbra, todos os cantos do mundo e da provincia, homenagens fervorosas, anonymias de odios truculentos, discipulados timidos, identificações a distancia n’um ideal sonhado, em pontos antipodaes de educação e temperamento, consultas de mysteriosas litterarias, de celibatarias impacientes pedindo conselho para casos de psychologia individual cheios de acirrante… e desatavam-se os maços das fitas já ardidas da poeira das gavetas, as velhas folhas rolavam, talhes de lettra e prosa succediam-se, e sempre a impassivel vella, com a alma da luz azul, muito direita, consumia implacavelmente essas chimericas memorias onde tantos corações tinham batido d’elle ao mesmo tempo. Quando o pobre alguidar foi cheio de restos, e da mocidade de Jorge Miguel nada restava a mais do que algumas lagrimas a ferver-lhe na pelle do rosto, uma vacuidade estranha entrou-lhe n’alma, sendo então que o relogio parado e o silencio da casa pareceram marcar um fim de mundo.

Abriu a janella um pouco sobre a noite, e com o alguidar ainda quente despejou á rua a sarabanda das cinzas aggregadas ainda em folhas inteiriças, que o vento espiralou no ar em borboletas tenebrosas; e as que tinham vindo de longe, tomaram por caminhos rapidos, ao largo; e algumas hesitavam, sem se lembrarem já da morada de seus donos; entraram-lhe pela janella outras, eram as orphãs, como a pedir ao escriptor que as adoptasse; e algumas finalmente, como suicidas inertes, baquearam no chão pulverisadas, e o vento d’alba as varreu pouco a pouco aos quatro cantos do destino.

Accendeu um cigarro, o somno fôra-se, e como aquellas cinzas fatidicas, a attenção pulverisava-se-lhe, incapaz de reflectir sobre o problema terrivel que era esse internato de vagabundo illustre na aldeia, em agricultor, ao lado de uma mulher com quem mal entretivera fallarios triviaes alguma vez.

Estavam a dar quatro horas da manhã, e silenciosas nevoas vindas do mar cobriam lentamente o céo de pallidos vapores, toldando a lua poente, e alongando-se para o interior da terra em farrapanas obliquas, que incineravam phantasticamente os bairros afastados. Áquella hora Lisboa offerecia, das alturas do Monte, quasi sem luzes, uma desolação madornal de cemiterio, planificada na bruma, rebatida toda em lavouras de sulcos que eram bairros dobrados sobre si.

As cinzas dos papeis, minutos antes queimados, de certo áquella hora se estariam espalhando pelo inextricavel de todos aquelles bairros inquietantes, procurando, n’uma afflicção, os signatarios das cartas e bilhetes n’elles escriptos para lhes fazerem queixa da deserção de Jorge Miguel. Eil-as no ar, tiritando, as pobres borboletas, a orientarem-se no dedalo das casas pelos milhões de fios do telegrapho, receiosas de que o vento as pulverise antes de chegarem, com palavras legiveis ainda, ao seu destino. Eil-as a adejar de angustia nas vidraças, entrando nas casas pelo respiradouro das chaminés, indo ás alcovas, pousando nos travesseiros, indo aos cemiterios, pousando nos jazigos, e n’uns e n’outros interrompendo os somnos e as doces mortes.

—Não sabem? Jorge Miguel aposthasia de cavalleiro templario do paradoxo, de arcebispo da leria, de arcabuzeiro da rotina a balas de loucura…

E o alarme acordado apenas na mágoa d’elle, affigurava-se-lhe entenebrecer de luto a terra inteira, parecendo-lhe que de cada bairro, cada café, cada cartaz, cada esquina de rua, cada casa, mentes dispersas, adorações indefinidas, affectividades anonymas nascidas do deslumbramento da sua arte estravagante, se erguiam da cama no estado inconsciente de phantasmas, tomavam pelo caminho dos papeis queimados vindo de roda, pelo ar, a lhe fazer um côro de implorações. Lentamente, como amanhecia, por todo aquelle vasto mappa encinzeirado, luzes de gaz vinham-se apagando em linhas divergentes, como se esse extinguir gradual de estrellinhas somnambulas fosse a sua gloria de escriptor morrendo nos esquecimentos da aldeia, quando outro espirito subisse, mais vivamente moderno, a allumiar a ingratidão das gerações.

Encostou-se um bocado, mas não podia dormir, os rumores matinaes sobresaltavam-n’o; dir-se-hia que toda a cidade se levantára mais cedo para trepar á montanha e lhe invadir a casa de vozidos. Entrementes, o dia clareava, e quando foram horas de partir, Jorge Miguel, chegando pela ultima vez á varanda, casualmente viu no parapeito um bocado de papel carbonisado, onde subsistiam legiveis duas rapidas linhas de escriptura. Leu o seguinte: «de resto, meu caro, para ser celebre é necessario viver longe, e não ter tido nunca amigos intimos».

Foi sob esta impressão martyrisante que elle deixou de vez a capital.

O rebentar na provincia foi terrivel; receberam-n’o á chegada da diligencia com uma musica de pretos, que era a estreia da phylarmonica: quatro carpinteiros a trombonear canudos de latão, um barrigudo a zurzir os pratos como fulo, e o do zabumba, macanjo, dando co’a maçaneta nos garotos. Como os musicos não soubessem senão a marcha da Ione, ensaiada á pressa para as procissões da Semana Santa, com esse batuque funebre seguiram, em passo de enterro, pela rua da grande villa, no meio dos raios te partam do cocheiro que despregava as pilecas na subida, e de um certo riso de um padre, de lhe fazer calafrios pela medulla.

Em breves dias fez-se o casamento, para o qual Jorge Miguel, foi sem curiosidade, decidido a resolver o problema do seu destino por um criterio de vontade estoica contra o qual piaffavam todas as suas selvajarias de indomavel vagabundo. Sua mulher não lhe inspirou a principio mais que uma especie de pretenciosa piedade: franzininha, um pouco loura, com as orelhas pequenas, a bocca pura na esquadria de um queixo quasi viril de voluntaria, e toda a graça de viver na infantilidade dos olhos melancolicos. Não era pela belleza de certo que essa imponderavel bonequinha viria a exercer no espirito do esposo qualquer cousa similhante á seducção.

Senão quando, attenuadas um pouco pelo aconchego de uma casita provincial as saudades litterarias de Lisboa, subitamente, uma manhã, Jorge Miguel começou a sentir orgulhos vagos de vêr labutar por elle a companheira.

Reparou que os seus cabellos eram finos, a testa pensativa, e que as suas breves palavras resabiam a qualquer coisa de penetrante, como se derivassem de uma vontade séria de enfermeira. Os seus vestidos escuros, mal roçando nos moveis, como levados n’um vôo de borboleta, as suas lentas mãos guiadas á descoberta de fazerem o lar confortavel sem parecerem tocar nos objectos, uma percepção sagaz de concentrarem cuidados no gabinete dos livros, na ordem dos papeis, na tamisação da luz, nas flôres da secretária, tudo isto que dir-se-hia casual, por vezes como que se lhe affigurava nascido de uma ardilosa malicia de o prenderem pelo reconhecimento a essa vida a dous que em principio tamanhos sustos lhe trouxera. Esta fascinação que derivára primeiro do egoismo envaidecido de sentir em tôrno a vida sem attrictos, com as comidas a horas e bem feitas, a casinha tépida, macios os fauteuils, a atmosphera perfumada e a plethora de bem-estar constante de riqueza, defendida ás linguarices dos estranhos, pouco a pouco começou a lhe subir do estomago á intelligencia, e a figurita d’ella, severa, apagando-se na meia luz de um recato freiratico, pallida e diaphana como uma sombra do paraizo, passava ás horas calmas de estudo pela cabeça d’elle com uma ponta de desejo que lhe tornaria a nupcia fecunda, se não fôra a fatalidade dos homens de genio não poderem propagar-se sem degenerações na descendencia. Começou a presentir então a companheira por toda a parte, nas suas ideias e nas suas leituras, no leito, a seu lado, com os olhos fechados e acordada a espreitar se elle dormia, nos seus passeios longinquos pelo campo, nos bicos da sua penna, nos calculos dos seus negocios, a um tempo causa e fim, phantasia e realidade, e com tal poder de avassallação e absorpção que o pobre bohemio acabou um dia por confessar a si proprio essa incondicional escravatura, deliciado, abjurando as antigas brutalidades de publicista solitario, a arte mascula da analyse violentando as psychologias verde-podres do moderno, os excessivos de lingua, as irreverencias sardonicas da boutade,—todas as qualidades crueis que haviam feito d’elle em solteiro o bacteriologista maximo das degenerações sociaes do seu paiz.

Longe de parecer reparar n’este rebaixamento de plano psychico do esposo, ella como que só pensava em lhe encadear as attenções no sentido dos antigos trabalhos litterarios, afastando-o das convivencias massadoras da aldeia, pondo ao alcance da sua mão livros de estudo, interessando-se pelo seu passado jornalistico sem ciumes e até repassando ella mesma, através dos seus conselhos, os assumptos que mais pudessem oriental-o na directriz do seu antigo frondismo de escriptor. Em alguns mezes o predominio foi tal que o espirito d’ella transfilhára-se inteiramente ao corpo d’elle.

Uma noite de novembro, já depois das colheitas da uva e da azeitona, aconteceu que examinando os dous detidamente as contas da lavoura, ella de repente observasse que era tempo de sahirem da modestia financeira em que viviam.

Como a situação de fortuna do casal nunca fora nem melhor nem peior do que ora estava, aquillo surprehendeu Jorge Miguel, como se nas palavras da esposa houvesse reprimenda á sua inercia.

Ella, sem se perturbar, tomou ao acaso um papel da secretária, agarrou n’uma penna, e ao cabo de alguns pequenos calculos feitos n’uma calligraphia tortuosa, começou a dizer, com a sua voz de pauzas doces, que as vinhas estavam velhas, o phylloxera á porta, os terrenos estanques da produção sem adubo, o vinho sem mercado, da qualidade horrivel do fabrico; e quanto ás terras de cereal, parte não dava, por desleixo do preparo, o que devia, e a outra parte em pousio, coberta de abrolhos e de estevas, apenas nos começos do outomno era pascigo para as cabras dos pastores furtivos da visinhança. O remedio era uma remodelação completa do regimen agricola, em quatro annos: nas terras de pousio lançar plantações americanas, reengorgitar os almargios da ceara com os elementos chimicos necessarios á cultura intensiva, ampliar a extensão aravel das terras, plantar arvoredo, regenerando ao mesmo tempo a industria da vinha, cujo grosseiro preparo estava ainda na fermentação do mosto em barros pesgados, e seu esforço alcoolico com aguardentes de balsa ao esturro e á porcaria do alambique.

Demandava a nova empreza capitaes de alguma fórma custosos para a relativa modestia dos seus teres; mas poderiam começar aos poucochinhos, e para isso as economias de tres annos de vida provincial talvez bastassem, e a actividade e a vigilancia d’elle fariam o resto. Ficou decidido que encetariam os trabalhos logo esse anno, e que os habitos indolentes de Jorge Miguel cessariam, por a vida de lavrador exigir assiduidades constantes na faina, e uma vigilancia quanto possivel methodica e regulada.

—Resta vêr agora, objectára-lhe a esposa sorrindo, se cumprirá escrupulosamente o que promettes. Esta vida contemplativa estava-te a inutilisar todos os dias, e chamado á acção não terás tempo de te aborrecer a pensar futilidades. De mais o caminho é extenso, e estou a vêr que quando te habituares a fazer co’a terra, dinheiro, serás naturalmente conduzido a tambem aproveitar como bens de fortuna essa notoriedade de escriptor de que não tens querido tirar senão vaidades espirituaes, ephemeras e… irritantes.

—Tu não me aconselhas de certo que eu entre a escrever sobre a politica do districto…

—Em que estaria o mal? Não ha assumptos chalros. Um talento nobre transfigura todas as cousas porque passa. Ouço-te flagelar a estupidez e a má fé dos que açambarcam despoticamente, e para fins deshonestos, a politica da nossa região; porque te não decidirás, pois, a intervir n’ella com os recursos superiores que Deus te deu, e os teus estudos teem desenvolvido? Maldizer é facil. Quem se não mostra, esquece, e eis-te chegado á idade de reappareceres homem de acção.

—Tens-me então estado a sonhar governador civil ou deputado…

—Não pelo desforço platonico de assumires sob essa forma a authoridade, mas principalmente porque estaria n’isso o começo de uma fortuna decisiva.

—Em dinheiro talvez?

—Que a final é tudo n’este mundo. Se Jesus Christo voltasse a fazer na terra os doze apostolos, precisaria de pelo menos ter doze milhões. Olha á roda de ti o que se passa. Não ha mediocre que te não tenha suplantado; tu desesperas-te, fingindo desprezal-os, mas no fundo da tua consciencia o sentimento dominante é o ciume porque esses que tu declaras cerebralmente inferiores desenvolveram na vida qualidades de lucta que te faltam.

—Suppões então que eu não segui o caminho d’elles por impotencia…

—A que chamavas altivez, e afinal não foi mais que cobardia.

—Entristeces-me com esse juizo estreito que me fazes.

—Mas prova-me o contrario. Era tão facil! Ha na cidade um jornal sem redactor; offerecem-t’o e tu não respondes; ora se desenvolvesses n’um sentido sagaz as tuas qualidades de foliculario, em pouco tempe esse jornal seria a tua arma envenenada, e verias realisadas todas as tuas antigas ambições.

—Mas se eu não tenho nenhumas, minha filha!

—Ambições precisas não tens, porque a multidão assusta-te, mas quererás tu persuadir-me de que a tua obra critica de solteiro apenas fosse uma galopada de humorista? É lêr os teus pamphletos. Se se trata de litteratura, achas a obra dos outros má, e tens o cuidado de fixar um sonho de obra que não é mais do que a tua, idealisada. Se se trata de costumes, flagellas os vicios de que não gostas, e calas-te ou defendes aquelles para que tens uma certa vocação. Em politica achas todos os ministros imbecis, dizes que as nomeações não visam nunca individuos de valor, e que os dinheiros do paiz andam a rodo pelos regabofes dos seus administradores. Dir-me-has o que é tudo isto senão um processo ingenuo de, desbastando nos outros, ficares sendo primeiro e unico de pé?

—Mas afinal tu és uma creatura incongruente. Essa obra desenvolta de mocidade nunca te inspirou senão o enfado de uma cousa grosseira, mau grado os teus disfarces, e tanto fizeste que acabei por me envergonhar de a ter escripto. Passam seis annos, está mumifeita, esquecida, e és tu mesma que m’a vens galvanisar agora n’uma phase de empregomania que eu detesto!

—O caso é simples. Todo o homem que esgrime sem alvo, é caricato ou doido. Os teus proprios discipulos perguntavam: mas que quer elle? porque ninguem comprehende que se gaste energia sem proveito. Dez annos d’essa campanha asperrima, n’uma agua-furtada, sem roupa nem confortos, coberto de calumnias e de dividas, desprezado, odiado, o que te deram? A gloria de seres conhecido entre os estudantes como um canalha sarcastico, e quarenta adeptos que apenas servidos desertaram de ti como da peste.

A logica d’estas combinações chocava fundo os quarenta annos já frios do antigo pamphletario, que hesitava, no entanto obsecado da tradição dos genios famintos. Embuido das doutrinas utilitarias da esposa, via effectivamente o dinheiro como uma causa geral de toda a culminencia, e as suas antigas ambições gososas de grande homem despertando da indefinida madorna em que o estagnára a vida provincial. Via-se reapparecer de novo em plena vida, com outros ideaes mais largos e mais firmes, senhor da sua razão e da sua força, já sem os platonismos de artista e as nebulosas philosophias de pamphletario demolidor joeirado das antigas relações compromettedoras de café, homem de acção, batido no desprezo, monosyllabico, hypocrita, insolente, fazendo a sua entrada sem ruido, sondando os typos, avaliando a frio os consagrados, e n’uma reviravolta leonina, de repente, apoderando-se dos cimos, e fazendo-se sagrar chefe de clan. Tudo estaria em fazer do seu talento o molosso incorruptivel de uma ideia fixa. Essa marmorisação de vontade, porém, onde formal-a, com o seu caracter feminino e dominavel, acobardando-se diante dos obstaculos, e que a primeira mão resoluta guiaria a sabor dos seus caprichos? Então, lançando a vista de roda, apercebeu como sempre os olhos claros da mulher, interrogando-o com uma tristeza escarninha sobre a sua falta de coragem. A pretexto de inspecção ás escólas primarias, o governador civil percorria n’esse momento o districto, a sondar o espirito das terras sobre o exito das proximas eleições. Era um antigo companheiro de Jorge Miguel, sucio pomposo, que começára por gazetilhas obscenas no Pimpão, subindo d’ahi a amanuense da Junta, e redactor politico da Nova, jornal do presidente do conselho, que o despachou depois aos bejenses com subscriptos de funccionario de confiança.

Jorge Miguel inspirára-lhe sempre mesmo nos dias de convivencia litterária no Martinho, uma especie de rancor desconfiado, com orlas de desprezo, e póde-se imaginar a surpreza do conselheiro, quando, avistados na aldeia os dois bohemios, Jorge Miguel lhe communicou as suas tenções de comprar o jornal e entrar de vez na politica militante. Sentindo-se de cima o governador civil prometteu com uma sublime benevolencia, apoiar-lhe as pretensões, combinando-se depois de tres dias de hospedagem e de jantares pantagruelicos, que adquirida a gazeta, com typografia e pessoal conveniente, Jorge Miguel fosse a Lisboa munido de cartas prestar ao ministério vassallagem, e receber dos magnates do partido a sua iniciativa de cavalleiro. Quinze dias depois ia na casa do nosso pacifico contemplador uma barafunda dos demonios.

Pelo caminho de ferro chegaram de Lisboa umas poucas de charruas, caixotes de adubos e sementes, milheiros e milheiros de bacellos americanos. A adega foi quasi toda guarnecida de toneis; lagariças novas no pateo, com toda a sorte de machinas modernas. Os pousios das herdades eram começados a revolver a talho fundo, para o que foi necessario alugar juntas de bois a todo o preço; de fóra viera um regente agricola, de monoculo, que se levantava ao meio dia, e achava mau passadio um jantar de cinco pratos; e finalmente, negociado por quinhentos mil reis, typographia e tudo, o jornal apparecera depois onerado por uma hypotheca de dois contos, e com o typo delido, os prélos n’um cangalho, tendo Jorge Miguel de dispender, por conselho do governador civil, proprietario secreto da folha, mais de novecentos mil réis para acquisição de material. Na aldeia, quando estas coisas correram, foi o alvoroço que se tem por um individuo que emaluquece, de rodilhão, e todos punham as mãos na cabeça, antegozando com lastimas hypocritas a hora opipara em que rebentaria a casa do «escriptor». A audacia d’esta renovação agricola pelos risiveis processos scientificos, que nenhum rico ousára, e de que ria o povinho como uma brincadeira de creanças, além de não parecer condizente á remediada fortuna do litterato, tão pouco pelo estapafurdio do regente agricola, e resultado incerto das colheitas parecia estribar-se lá muito na económica prudencia que deve sempre guiar um lavrador. Viticultura americana? dinheiro perdido, bufavam todos. O phylloxera immobilisando-se no Douro perdera a força para chegar aos valles do Tejo. Reengorgitação das terras pelo adubo? mas onde ia isso parar de dispendioso, e para que necessario? se a vinha nunca se estrumára no Alemtejo, e quanto ao cereal, a bósta dos animaes abundou sempre, para fazer de alqueires, moios.

A reapparição do Clamor de Beja, jornal independente, um typo novo, e uma factura litteraria elegantissima, foi verdadeiramente um caso nos annaes da sornice alemtejana, e claro se viu o influxo que essa incisiva folha fumegante de vida e tocando os assumptos locaes com lúcida ironia, certo viria a ter na politica do sul da grande provincia.

Jorge Miguel recebia em casa os jornaes da redacção, preparava o seu artigo, fazia o noticiario e a correspondencia de Lisboa, e o resto era arranjado em Beja por um alferes do 17, seu antigo commensal n’uma republica de estudantes. Em pouco tempo o successo attingiu pela provincia as proporções de uma victoria; choviam as assignaturas, os annuncios pagos succediam-se, e em todas as questões locaes e partidarias começou o jornal a fazer authoridade, o que o lembrou em Lisboa, levando as attenções dos malignos para a espécie de furor com que Jorge Miguel, jacobino medonho, ainda na vespera, defendia os actos do governo. Eleições á porta: era o momento de ir a Lisboa, jurar fidelidade ao gabinete. Atochado de missivas bejenses para os magnates graúdos do partido, sahiu Jorge Miguel de casa uma manhã, com o seu chapéo alto e o seu bahú de roupa, disposto a levar de vencida as agruras da jornada graças a certa gallinha de recheio, mais meio presunto que a mulher lhe embrulhou, para farnel, na folha de um dos seus antigos pamphletos anarchistas. A viagem foi cabeceada de somno n’uma segunda classe onde voltavam de férias tres alarves de tres seminaristas, e só no Barreiro, quando a cidade começou a surgir vaporisada nos azues violetas do horizonte, é que Jorge Miguel sentiu tomal-o uma infinita e estranha nostalgia. Indo no barco atirou ao rio os restos do presunto, para evitar o cheravisco aduaneiro, e com o gallego do bahú veio a dar fundo nas Duas Nações, ante uma canja que tinha todo o ar de um soluto de caspa em agua de lavagens. Sopeteou como poude as vitellas flacidas com cenouras, um roast-beef de folha, e varios outros acepipes corneos d’aquella conceituada casa alimenticia, e barbeado, de sobrecasaca fina, cheirando a agua de Colonia, eil-o baixa do hotel á cóca de tipoia que o solavanque a S. Vicente. Chegado á rua, os luzeiros da Baixa estontearam-n’o: via, extasiado, uma multidão febril, pelos passeios, os carros cheios de gente, e o indefinido rumor repercutíndo-se a distancia, entre pregões de jornaes e silvos de comboyos. Mentalmente, com esforços de memoria dolorosos, desemburrando-se da bisonheria de seis annos de vida marital, tomava outra vez posse da cidade, buscando familiarisar-se no dedalo das ruas, achar no asphalto outra vez o seu rail de flaneur nocturno; e mulheres que surgiam de chapa nos reverberos das lojas pintadas de branco, olhando os homens de lado, como as gansas, tinham para elle o ar de apparições; nos americanos pareceu-lhe tudo duques e duquezas, um deslumbramento as lojas, os caixeiros uns personagens ideais; e a sua emoção subia n’um galopar de antigas reminiscencias, á mercê das surprezas esgarçadas por qualquer cousa, na volta de uma esquina, ante o estylo de um predio novo, um novo monumento—emoção de provinciano fóra da moda, cego do gaz, picado de ciumes, desesperado de já ninguem o conhecer, e que ao apear-se em Santa Clara, á porta do «nosso glorioso chefe» levava já tres ridiculos de aldeia a chateal-o: a fadiga dos calos, o remorso do casamento, e pairando a tudo, um desejo frascario, exhaustinado, d’ir rebentar a noitada ao baile de mascaras do Trindade. Seis annos de provincia tinham liquidado n’isto o grande homem…(Voltar ao Conteúdo)