Ao dr. Augusto Meira
I
No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, João estava deitado na rêde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, á luz branda de uma vela de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do Capibaribe, na Casa de Detenção, derramando pelo ar um sôpro de tranquillidade imponente, que fazia os transeuntes apressarem o passo dirigindo-se aos respectivos domicilios. O vento norte, que vinha de Olinda, entrava na sala, e d’esta seguia para o quarto de João, agitando a luz dentro do photo-mobile.
Na invisivel palpitação da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na visinhança. Fanatico adorador da musica, João fechou o livro e prestou attenção. Eram as primeiras notas da Serenata de Schubert, esse magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composições! De um pulo, achou-se abaixo da rêde, fóra do quarto, ao balcão de uma das janellas do seu humilde terceiro andar. E encostou-se á grade, com o rosto descançado na mão direita, dispondo-se a ouvir a sua peça predilecta.
Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios, como extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava no azul-ferrete do céo, por entre multidões de estrellas tremeluzentes, uma diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes montões de nuvens recortados em figuras indiziveis. E d’uma casa proxima saíam as vozes do piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas janellas abertas.
Como todas as musicas sentimentaes, a Serenata de Schubert possue isto de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro da meditação tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que são sempre, quer dolorosas quer alegres, um grato consolo para a alma.
Foi por isso que João, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e redolente dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu querido Pará, podia ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella que deve um dia ser sua esposa.[1] Foi tambem porisso que o moço estudante de direito recordou-se,—e com quantas saudades!—da magistral execução que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro allemão,—uma execução toda sentida, interpretando os minimos segredos, com dulcíssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao espirito e suaves langores ao corpo.
Entrou João a imaginar que estava no Pará, ao lado de sua querida companheira, junto ao piano d’ella, no perfumado socego da sala deserta, extasiado na audição d’aquella phantasia esplendida! E logo, por uma transformação imaginativa, o piano da desconhecida vizinha tomou aos ouvidos d’elle um som particular, intimo, que o commovia todo, chamando-lhe duas lágrymas aos cantos dos olhos! E, por esta causa tambem, á sua alma pareceu ver desfilar nas pacificas paredes da casa fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual déra-lhe outrora tantos prazeres, e que tinha presentemente a expressão poetica, porém saudosíssima, de uma tela de Watteau….
Esse quadro, eil-o:
[1] Este conto foi escripto em 1886. A donzella de que se trata está hoje casada com o heroe da presente narração e póde gabar-se de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida e a mais leal das esposas… com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga de todas as mães.
II.
Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sôar no relogio da varanda. Um socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a familia estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sofá. Das ruas vinham pelas janellas abertas fortes sôpros de brisas cheirosas e sons de guitarras fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de transeuntes. A espaços, uma voz, um grito chegava até á sala, revelando que pela cidade havia quem passeiasse, tentando festejar o anniversario do nascimento de Christo.
Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora sugava a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o cólo de sua virtuosa mãe, a qual, supposto conversar com o extremoso marido, não afastava do rosto da filha os grandes olhos expressivos, fluctuando n’um lago de ternura meiga e immaculavel como um beijo maternal.
Contemplando este quadro rubenesco, João pensava nos santos prazeres do lar,—elle, que era um mísero orphão, um desgraçado pariá do amor!—emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle, falava-lhe compungida ácêrca de uma infeliz mulher que, pela manhã, recebera de suas pequeninas mãos bemfazejas, roupas e sustento para os filhinhos. E dominando a todos, no meio do sofá, com a expressão suavíssima do rosto espiritualisada por um sorriso que venerandamente lhe frisava os labios, o velho Antonio, de cabellos e longas barbas sedosos e brancos, dirigia-se ao filho mais moço, ao Theodoro, aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe como exemplo a seguir várias scenas a que assistira em sua passada vida commercial.
Uma exhalação de virtude emanava d’aquelle grupo: revelavam os rostos a tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depõe muitas confianças no futuro.
De repente, n’um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz ergueu-se da rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra:
Folguem todos n’esta noite,
Venha a festa sem egual:
—Hoje em nada se repara,
Porque é noite de Natal.
Hoje em nada se repara,
Porque é noite de Natal.
E a guitarra chorava em tom menor, fazendo côro ao ritornello. A voz de um agradavel tenor prendeu logo a attenção dos que estavam na sala:
Esta noite abençoada
Pertence aos que têm amor;
No presepe bethlemita
Veiu ao mundo o Deus-Senhor.
Novo ritornello choroso na guitarra.
Por isso, moços e moças,
Entregae-vos ao prazer,
Emquanto não vem a edade
Vossa fronte encanecer!
Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra.
Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantára a cabeça, n’uma energia de movimento, com as narinas afflantes, os anneis da cabeça tremendo-lhe sobre os hombros.
—Tôlo!—exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se agora ao longe, na extremidade da rua.—Pois que venha cá, a ver se os velhos não têm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me dirá ao depois se eu não amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o meu Theodoro e á innocentinha que ahi dorme sob as bençãos do meu olhar!..
Um soluço gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a encarnação do carinho e, muito piedosa e pura,—qual um raio de sol illuminando a face de uma estatua antiga,—foi beijar amoravelmente a fronte do ancião….
Que não se affligisse, pediu-lhe affagando-o;—que não désse importancia a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que intensidade elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d’esse amor. E demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor, não valia a pena entristecer-se….
—Para o lado os pezares!—terminou sorrindo.—Como distracção agradavel a todos, vou tocar ao piano a Serenata de Schubert.
Já se tinha João levantado, prevendo este desfecho: correu ao piano, abriu sobre a estante a musica desejada e, accendendo as velas, sentou-se ao lado do banquinho, que Dhalia veiu occupar.
III.
E começaram então as primeiras melodias da Serenata.
João cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audição da formosa peça, tão bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica comprehendia os segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma figura, ao principio fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo, apparecendo em primeiro plano, desenhou-se na tela da imaginação do moço. E surgiu então um joven de bandolim em punho, debaixo dos balcões floridos de um elegante castello, que se erguia a meio de uma paizagem germanica, onde os robles farfalhavam á borda dos lagos tranquillos, sobre cujas superficies grandes garças deslisavam elegantes, ruflando as brancas pennas em donosa magestade. E a voz a’elle era meiga qual um canto magico de yára amazonica, sentida como uma recriminação paternal, doce como um beijo apaixonado. De seus labios côr de papoula distillava-se o mel da musica de Schubert, que ia cair com uma suavidade de balsamo sobre a alma enamorada de uma joven castellã formosa, occulta entre os refólhos das colgaduras das janellas! A voz do amoroso trovador tinha um não sei quê de melancholico, um tal cunho de poesia dolente, que João emocionou-se tanto em face do quadro que a sua imaginação lhe descrevia, que não pôde deixar de cantarolar baixinho, com um meio sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretação de Dhalia:
“O Châtelaine,
Entend ma peine!..”
……………….
Dhalia executou o morendo final da Serenata. João acordou da sua rêverie, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico bailava um risinho engraçado.
De pé, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante illuminado n’uma expressão de ineffavel ventura. Dos labios entreabertos parecia escapar-se-lhe uma benção muda, que se completava pelo gesto das mãos erguidas e espalmadas no espaço!.. Era o pae a abençoar o futuro feliz dos filhos idolatrados!
IV.
Estava n’este ponto a saudosa recordação do moço estudante, na janella do seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano da vizinha desconhecida gemia tambem o adoravel remate da Serenata.
João sentiu-se commovido por aquella musica inspiradíssima, que lhe avivára tão grata lembrança de seu venturoso passado,—agora que elle estava ausente do querido sólo natal, onde moravam todos os que possuiam-lhe a flôr do affecto. Ergueu os olhos ao céo, n’uma necessidade de soltar livremente o espirito pela amplidão infinita do vacuo. No firmamento azul tachonado de louras lucilações, o crescente de lua vogava para o occaso como uma alegria fugitiva; pequeninos flócos de nuvens seguiam, muito calmos e ethéreos, pelo espaço adeante, projectando sombras cinzentas sobre o calçamento da rua. Da margem opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se bradando—alerta!—á sentinella.
Então, por um impulso de agradecimento, o espirito de João partiu pelo infinito a fóra, chegou ao Pará, atravessando a cidade, e foi ajoelhar-se piedoso á modesta pedra gradeada que sella o tumulo venerando de Antonio, o estremecido pae de sua noiva.
Que bom marido!
A Juvenal Tavares
Não desejarás a mulher do teu proximo.
MANDAMENTO DE DEUS.
Havia já tres annos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente n’umas scintillações que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante que para ella dirigisse escrutador olhar.
Elle era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivéra,—tempestuosa e poída nas orgias,—encanecera-lhe completamente os cabellos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde cruzavam-se numerosas rugas sobre a pelle côr de ginja.
Ella tinha dezoito primavéras,—para me servir d’uma velha expressão do romantismo;—ostentava uma carinha faceira, risonha, d’olhos pretos e marotos. Têz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste da angélica, era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadíos,—d’esses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.
O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a manga da sobrecasaca o solenne chapéu alto, dava um chôcho á mulher e saía para a repartição com o passo do empregado publico:—impassivel e cadenciado.
Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena caricia e voltava á varanda, afim de dar algumas ordens ácêrca do jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeição, ía sentar-se á machina de costura, que dava-lhe não diminuta receita para as despezas diarias. O ganho d’esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a qual lhes permittia de tempos a tempos o luxo d’um camarote no theatro da Paz e um passeio a bond em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de Nazareth, algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora esposa d’elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e nova.
Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus adoradores,—rapazes toleirões, aos quaes ella, diga-se a verdade, não ligava muita importancia. Entre esses moços, quem mais assiduamente a requestava era um tal Jacyntho,—um leão conquistador que falava pelos cotovêllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias depois do casamento d’ella, por occasião d’um passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifacio, quando Elvira ía para a janella, emquanto o marido, na varanda, jogava o sólo com o taberneiro da esquina e o visinho da direita. Ao passar em frente a Elvira, enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este ultimo e conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder áquelle. Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que tambem não deixava de ir para a janella assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bólo. É que a interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não podía se contentar com os sós affagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se áquillo a que chamava “uma distracção”, mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para commetter um crime.
Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo a esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: “Agua molle em pedra dura, tanto dá até que fura.” Tinha confiança no futuro, que resolvería, com vantagem,—aquelle interessante problema de amor.
Uma tarde,—era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado por ver que a sua querida não estava á janella. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um só vivente se via.
Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:
—Onde está a d. Elvira, minha filha?
A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, metteu na bocca o index da mão direita, conservando-se calada.
—Vamos, fala, toma um tostão…. Onde está a d. Elvira?—insistía o leão fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.
Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da fregueza e disse, ainda meio acanhada:
—Está lá dentro….
—E o sr. Bonifacio?
—Saíu.
—Dou-te outro nickel se fôres levar uma carta á tua senhora, queres?
—Eu quero….
Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por cautella, não datára nem assignára. Entregou-a á mulatinha e conjuntamente outro tostão.
Depois seguiu pela estrada adeante.
Elvira não deu resposta áquella carta, que lhe revelára o grande amor que por ella sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou, seguindo pelo passeio, rente á janella. Sacudiu-lhe ao cólo nova epístola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não era-lhe indifferente, mas que devia abrir mãos áquelle amor, porquanto a sua “posição de mulher casada não lhe permittia tão gratas liberdades.”
D’então em deante, apezar d’esses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d’Elvira e do seio d’esta para os bolsos d’aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscencias de muitas leituras romanticas deram causa á correspondencia criminosa.
Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões além d’aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente.
Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa, de volta d’uma visita que fôra fazer a seu chefe de secção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a attenção de velho curioso.
—Que levas ahi?—perguntou.
—Não é nada….—respondeu a rapariga n’essa voz cantada peculiar aos paraenses.
—Não mintas! Eu vi não sei quê!—bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objecto.
Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:
“Meu amigo, depois d’amanhã, á meia noite, meu marido vae ouvir a missa do gallo em Sant’-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de conversar comsigo e saber d’essa novidade que prometteu contar-me. Venha á 1 hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.
ELVIRA.»
O Bonifacio subiu ao arame; ficou da côr da purpura e sentiu uma violentíssima dôr de cabeça. Teve impetos ardentes de ir assassinar a esposa infiel; reflectiu, porém, e soccorreu-se d’um alvitre que lhe appareceu a subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria vingança.
—Toma, leva,—disse entregando a carta á rapariga.
E entrou.
Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgasões de moços d’ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direcção ás differentes egrejas onde se deve rezar a missa do gallo.
O sr. Bonifacio, que levantou-se á ultima pancada das 11 horas, sae para a rua, deixando em casa a mulher incommodada “com muita dôr de cabeça….”
Á 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos ligeiros até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas. Respondeu-lhe do interior um leve arruido. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregosando os prazeres que ía fruir na conversação de Elvira, quando subitamente exhalou um grito, dando um salto para o lado.
Era o respeitavel sr. Bonifacio, que saíndo de traz da mangueira onde occultára-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivéra a lembrança de namorar-lhe a mulher.
Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a soval-o fortemente, n’uma agitação febril….
O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa do gallo.
Quando cançou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que achava-se por terra, com os ossos quasi moídos:
—Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! Não torne a caír na asneira de namorar moças casadas!
E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida de medo.