“Tem uns dois dias de que possa dispor? Recebi telegrama agora mesmo do oeste do país, sobre a tragédia do vale Boscombe. Gostaria que pudesse ir comigo. Clima e cenário perfeitos. Saio de Paddington às onze e quinze”.

— O que acha, querido? — perguntou minha esposa, que me olhava por cima da mesa. — Irá?

— Não sei o que responder. Tenho uma grande lista de clientes no momento.

— Ora! Anstruther poderá substituí-lo muito bem. Você tem andado muito pálido ultimamente. Uma viagem lhe faria bem, além do interesse que sempre lhe despertam os casos do Sr. Sherlock Holmes.

— Seria uma ingratidão se eu não mostrasse interesse, dado o que ganhei com um desses casos — respondi —, mas, se tenho de ir, preciso fazer já a mala, pois só disponho de meia hora.

Minha experiência como soldado no Afeganistão pelo menos produziu um bom resultado, que foi o de me tornar mais expedito e sempre pronto para viajar. Minhas necessidades pessoais eram poucas e simples nessa época, por isso, em menos tempo do que dispunha, peguei a mala, apanhei um carro e corri para a Estação de Paddington.

Sherlock Holmes já se encontrava lá, andando de baixo para cima na plataforma, parecendo ainda mais alto devido à comprida capa cinzenta de viagem e ao boné apertado na cabeça.

— Foi muita bondade da sua parte ter vindo, Watson— disse-me ele —, e é muito importante para mim o fato de ter por companhia uma pessoa da minha inteira confiança; o auxílio local é sempre fraco ou parcial. Se quiser reservar os dois lugares do canto, vou comprar os bilhetes.

Viajamos sozinhos no compartimento, acompanhados apenas por um mundo de papéis que Holmes trazia e nos quais remexia, tomando notas nos intervalos da meditação, até que o trem parou em Reading.

Então, de repente, ele enrolou os papéis todos, fazendo um enorme rolo, e atirou-os para cima do cabide.

— Você já ouviu dizer alguma coisa a respeito desse caso? — perguntou ele.

— Nem uma palavra. Não tive tempo de ler os jornais nestes últimos dias.

— A reportagem de Londres ainda não traz muitos pormenores; estive relendo os jornais para me pôr a par das particularidades e, a meu ver, é um daqueles casos simples mas que apresentam muitas dificuldades.

— Isso parece um paradoxo.

— Mas é a verdade pura e profunda. A singularidade é sempre uma chave. Os crimes mais comuns são os mais difíceis de se descobrir. Neste caso, porém, estabeleceram uma complicação gravíssima com o próprio filho do assassinado.

— Foi assassinato, então?

— Bem, é o que se conjectura. Não aceitaria nada como certo enquanto não tiver oportunidade de estudar pessoalmente o caso. Vou lhe explicar as coisas, segundo o que sei, em poucas palavras.

“O vale Boscombe é um distrito rural não muito longe de Ross, no condado de Hereford. O maior proprietário da região é o Sr. John Turner, que ganhou dinheiro na Austrália e voltou há alguns anos para sua terra natal. Uma das fazendas que ele possui, a Fazenda Hatherley, estava arrendada ao Sr. Charles McCarthy, que era também um ex-australiano. Os homens haviam se conhecido nas colônias, por isso é natural que, ao deixarem de trabalhar, fossem residir perto um do outro, tanto quanto possível. Turner era o mais rico dos dois, por isso McCarthy tornara-se seu locatário, mas pareciam viver em grande harmonia, porque eram vistos freqüentemente juntos. McCarthy tinha um filho, rapaz de uns dezoito anos, e Turner, uma única filha da mesma idade, mas ambos eram viúvos. Parece que evitavam a companhia das famílias inglesas das vizinhanças, levando uma vida retirada, embora os dois McCarthy gostassem de esporte e fossem vistos muitas vezes por ocasião das corridas locais. McCarthy tinha dois empregados domésticos, um homem e uma moça. A casa de Turner vivia cheia, tinha pelo menos meia dúzia de empregados. É isso o que pude verificar a respeito das famílias.

“Agora vamos aos fatos. Em 3 de junho, isto é, na segunda-feira passada, McCarthy saiu de casa, em Hatherley, cerca das quinze horas, e dirigiu-se ao pequeno lago Boscombe, formado pelo riacho que desce pelo vale do mesmo nome. De manhã havia saído com o empregado para ir até Ross, e dissera ao homem que estava com pressa porque tinha um compromisso às quinze horas. Daquele encontro não voltou vivo. A Fazenda Hatherley dista do lago Boscombe mais ou menos quinhentos metros; duas pessoas o viram passar por lá: uma delas é uma senhora de idade, cujo nome não disseram, e a outra, William Crowder, um guarda-caça ao serviço do Sr. Turner. Ambas as testemunhas disseram que o Sr. McCarthy estava sozinho. Disse ainda o guarda-caça que, uns minutos depois de haver visto passar o velho McCarthy, passou o filho, James McCarthy, caminhando na mesma direção, com uma espingarda debaixo do braço. Ele acredita mesmo que o filho seguia o pai e o vigiava a distância. Mas não pensou mais no caso até a noitinha, quando ouviu falar na tragédia que ocorrera. Os dois McCarthy foram vistos também por outras pessoas. O lago Boscombe é rodeado de mato com apenas uma pequena margem de capim e juncos. Uma menina de catorze anos, Patience Moran, filha de um porteiro da Fazenda do Vale Boscombe e que estava colhendo flores no campo, disse que, quando lá se encontrava, viu-os primeiro na orla da mata e junto do lago, e que pai e filho pareciam empenhados em forte discussão. Ela ouviu mesmo o velho McCarthy usar uma linguagem pesada para com o filho, e este levantou a mão para bater no pai. Ficou com tanto medo do que viu, que correu para casa e, assim que chegou, contou à mãe que havia visto os dois McCarthy discutindo junto ao lago Boscombe e receou que fossem lutar. Mal acabou de contar isso, viu o rapaz correr em direção à casa, pedindo socorro ao porteiro e dizendo que seu pai estava morto na mata. Estava tremendamente excitado, sem chapéu e sem espingarda, e tinha a manga direita manchada de sangue fresco. Seguindo-o, encontraram o corpo inerte do pai estendido sobre a relva à beira do lago; sua cabeça fora partida por diversas pancadas dadas com instrumento pesado, não cortante. Podiam muito bem ter sido coronhadas da espingarda do filho, a qual descobriram no capim a poucos passos do corpo. Nessas circunstâncias, o jovem foi imediatamente detido, tendo o júri declarado o caso ‘assassinato premeditado’, e conduzido perante o juiz de Ross na quarta-feira, o qual deixou o caso à decisão do tribunal na sua próxima sessão. São esses os principais fatos do crime, como foram apresentados ao médico-legista no posto policial.”

— Não consigo imaginar caso mais condenatório — observei eu —, e se a prova circunstancial alguma vez apontou o criminoso, esta é uma delas.

— Prova circunstancial é uma coisa ilusória — respondeu Holmes, pensativo; — pode demonstrar claramente determinado pormenor, mas se você alterar o seu ponto de vista, por pouco que seja, poderá notar que a prova aponta de modo comprometedor numa direção completamente oposta. Deve-se confessar, todavia, que os fatos contra o rapaz são muitíssimo graves; é possível que seja ele o culpado. Há diversas pessoas na vizinhança, entre elas a srta. Turner, filha do fazendeiro rico, que, mesmo assim, não acreditam na culpabilidade do rapaz e contrataram Lestrade, cujo nome talvez lhe lembre o caso de Um estudo em vermelho, para trabalhar a favor do rapaz. Lestrade está um pouco intrigado com as coisas e entregou-me o caso; é por isso que dois senhores de meia-idade viajam a caminho do oeste a cinqüenta milhas por hora, em vez de estarem calmamente almoçando em suas próprias casas.

— Sinto — disse eu — que os fatos sejam tão óbvios, pois receio que você não vá ganhar grande prestígio neste negócio.

— Não há nada mais enganador do que os fatos óbvios — disse ele, rindo. — Além disso, podemos descobrir outros fatos óbvios que não foram notados pelo Sr. Lestrade. Você me conhece bastante bem para achar que não exagero quando digo que hei de confirmar ou destruir a teoria dele com meios que ele é incapaz de empregar ou mesmo de compreender. Para pegar o primeiro exemplo que tenho à mão, vejo claramente que a janela do seu quarto, meu caro Watson, se abre para o lado direito; todavia, duvido que o Sr. Lestrade pudesse notar uma coisa tão evidente para todos.

— Como…

— Meu caro rapaz, conheço-o bem, conheço seus métodos militares de asseio. Você se barbeia todas as manhãs e, nesta estação do ano, barbeia-se à luz do sol. Mas como sua barba fica menos bem-feita ao chegar ao lado esquerdo, em cima, até parece descuido, é mais do que evidente que aquele lado não está tão bem-iluminado como o outro. Tenho a certeza de que se você se olhasse com a luz bem de frente não haveria de ficar satisfeito com o resultado. Apenas cito isso como exemplo de observação e dedução. Nisso consiste o meu métier, e é possível que me possa servir na investigação do caso que temos em mãos. Há um ou dois pontos de menor importância apresentados no inquérito aos quais vale a pena dar alguma atenção.

— Quais são eles?

— Parece-me que o rapaz não foi preso logo; só depois de voltar a Hatherley é que o inspetor o informou de que estava preso; ele não ficou surpreso e apenas disse que merecia aquilo, nada mais. O fato de haver dito isso, naturalmente, removeu qualquer dúvida que pudesse ter ficado na mente do júri.

— Foi uma confissão — exclamei.

— Não, porque foi seguida de um protesto de inocência.

— Vindo logo após uma série de provas tão condenatórias?

— Pelo contrário — disse Holmes —, é a abertura mais brilhante que até agora posso imaginar surgida entre as nuvens. Por mais inocente que seja, ele não podia ser um imbecil tão grande que não visse quão negras eram as circunstâncias contra si. Se tivesse fingido surpresa ao ser detido, ou simulado indignação, eu o consideraria bastante suspeito, porque isso não seria natural em tais circunstâncias, embora parecesse a melhor política para um homem intrigante e maquinador. A aceitação franca da situação destaca-o como homem inocente ou com grande autodomínio e firmeza. Quanto à observação de que era o que merecia, não deixa de ser natural se nos lembrarmos que ele estava perto do corpo inerte do pai, e que naquele mesmo dia se havia esquecido dos seus deveres filiais, discutindo com o pai, e até, como diz a garota, cujo testemunho tem valor, levantara a mão para lhe bater. A repreensão e contrição íntimas são demonstradas pela sua observação, e quer me parecer que revelam uma mentalidade sã e não uma pessoa culpada.

Inclinei a cabeça.

— Muitos homens têm sido condenados injustamente.

— Qual é a versão do próprio rapaz sobre o caso?

— Creio que não é muito animadora para seus amigos, embora haja um ou dois pontos sugestivos. Mas estão aqui, e você pode vê-los.

Dizendo isso, tirou do pacote um exemplar do jornal de Hereford e, depois de dobrar a página e apontar o parágrafo onde estava o depoimento do infeliz rapaz, entregou-o a mim; encostei-me a um canto do banco para ler melhor. Dizia o seguinte:

“O Sr. James McCarthy, único filho do falecido, foi então chamado e fez as seguintes declarações:

 — Estive viajando durante três dias por Bristol e voltei na manhã de segunda-feira passada, dia 3. Meu pai não estava em casa quando cheguei, e fui informado pela empregada de que havia ido para Ross com John Cobb, o cocheiro. Assim que regressou, ouvi o som das rodas do carro no pátio; olhando pela janela, vi-o descer e caminhar rapidamente para fora do pátio, embora não soubesse que direção ia tomar. Peguei minha espingarda e dirigi-me ao lago Boscombe, com a intenção de visitar a coelheira que há do outro lado. No caminho vi William Crowder, o guarda-caça, como ele próprio o declarou, mas que se enganou ao julgar que eu seguia meu pai. Não fazia a mínima idéia de que ele caminhava à minha frente. Quando cheguei a uns cem metros do lago, ouvi o grito ‘Cuuiii’, que era o sinal habitual entre mim e meu pai. Apressei-me e encontrei-o em pé, próximo do poço. Ele mostrou-se muito admirado ao ver-me e perguntou-me abruptamente o que estava fazendo ali. Houve uma discussão que quase chegou às vias de fato, pois meu pai era homem de temperamento violento. Vendo sua cólera e que ele começava a perder o controle, deixei-o e voltei para a Fazenda Hatherley, mas não andara ainda uns cento e cinqüenta metros quando ouvi um grito horrível atrás de mim, que me obrigou a regressar. E encontrei meu pai moribundo, estendido no chão, com a cabeça terrivelmente ferida. Larguei minha espingarda e segurei-o nos braços, mas ele expirou imediatamente. Ajoelhei-me ao seu lado alguns minutos e depois fui até a casa do porteiro do Sr. Turner, que era a mais próxima, para pedir auxílio. Não vi ninguém perto de meu pai quando o encontrei, e não tenho a menor idéia de como pôde ter sido ferido. Não era um homem acessível, pois seu temperamento era um tanto frio e arredio, mas não tinha inimigos declarados. Não sei mais nada a respeito do caso.

Coroner [1]: — Antes de morrer seu pai lhe fez qualquer declaração?

Depoente: — Murmurou algumas palavras, mas só pude perceber uma referência a um rato.

Coroner: — O que depreendeu daí?

Depoente: — Nada. Pensei que estivesse delirando.

Coroner: — O que provocou a discussão com seu pai?

Depoente: — Preferiria não ser forçado a dizer.

Coroner: — Sinto-me obrigado a insistir.

Depoente: — É de todo impossível dizer-lhe. Posso asseverar que nada tinha a ver com a triste tragédia que se seguiu.

Coroner: — Isso cabe ao tribunal decidir. Não é necessário dizer-lhe que sua recusa em responder pode prejudicá-lo consideravelmente no futuro.

Depoente: — Preciso persistir na recusa.

Coroner: — É certo que o grito ‘Cuuiii’ era um sinal comum entre o senhor e seu pai?

Depoente: — Sim, era.

Coroner: — Então por que deu ele o grito antes de o ter visto, antes mesmo de saber do seu regresso de Bristol?

Depoente (um tanto confuso): — Não sei.

Um membro do júri: — O senhor não viu nada de suspeito quando se virou ao ouvir o grito e encontrou seu pai fatalmente ferido?

Depoente: — Nada muito definido.

Coroner: — Que quer dizer com isso?

Depoente: — Estava tão perturbado e nervoso quando corri pelo caminho, que não pude pensar em coisa alguma a não ser em meu pai; todavia, tenho uma vaga impressão de que quando corri havia qualquer coisa no chão à minha esquerda. Parecia-me que era de cor cinzenta, um casaco ou uma capa, talvez. Quando saí de perto de meu pai, já não estava mais lá.

Coroner: — Quer dizer que desapareceu antes de o senhor ter procurado auxílio?

Depoente: — Sim, desapareceu.

Coroner: — Pode precisar do que se tratava?

Depoente: — Não, mas tive um pressentimento de que ali havia alguma coisa.

Coroner: — A que distância do corpo?

Depoente: — Uns doze metros mais ou menos.

Coroner: — E a que distância da mata?

Depoente: — Mais ou menos a mesma.

Coroner: — Então, se foi retirada, foi enquanto o senhor estava à distância de uns doze metros apenas?

Depoente: — Sim, atrás de mim.

E assim terminou o depoimento.”

— Estou vendo que o coroner foi um pouco severo com o jovem McCarthy — disse eu ao terminar a leitura.

— Ele chama a atenção, e com razão, para a divergência do fato de o pai ter chamado o filho antes de o ter visto, sobre os pormenores da altercação entre ambos, bem como sobre a história singular das últimas palavras do pai. Tudo isso, como ele nota, são provas contra o filho. Holmes riu de mansinho e estendeu-se preguiçosamente sobre as almofadas.

— Tanto você como o coroner tomaram muito cuidado em destacar os pontos mais fortes a favor do rapaz. Não vê que vocês lhe atribuem imaginação ora deficiente, ora excessiva? Deficiente, pois, se pudesse inventar o motivo da discussão, atrairia a simpatia do júri; e excessiva, caso saísse da sua consciência íntima qualquer coisa tão outrée como o fato de um moribundo fazer referência a um rato e o incidente da veste que desapareceu. Não, senhor, abordemos este caso sob o ponto de vista de que o rapaz disse a verdade, e veremos até onde nos leva essa hipótese. Agora, aqui está o meu Petrarca de bolso, e não direi nem mais uma palavra sobre tudo isto até chegarmos à localidade onde vamos trabalhar. Tomaremos um lanche em Swindon, pois que chegaremos lá dentro de uns vinte minutos.

Eram quase dezesseis horas quando enfim chegamos, depois de passarmos pelo lindo vale Stroud, acima do largo e brilhante rio Severn, e nos encontrarmos na bonita cidadezinha de Ross. Um homem magro, de feições frias como as de um furão, com um olhar furtivo e velhaco, esperavanos na plataforma. A despeito do seu guarda-pó cor de poeira, e das polainas que usava devido às circunstâncias do lugar, não tive dificuldade em reconhecer Lestrade, da Scotland Yard. Com ele fomos de carro até o Hereford Arms, onde reservara um quarto para nós.

— Pedi um carro — disse Lestrade, enquanto tomávamos uma chávena de chá. — Conheço sua natureza enérgica, e sei que não ficará satisfeito enquanto não for ao local do crime.

— Foi amável da sua parte; agradeço esse gesto complementar — respondeu Holmes; — é apenas uma questão de pressão atmosférica.

Lestrade olhou-o admirado.

— Não compreendo bem — disse ele.

— Que diz o barômetro? Vinte e nove graus, pelo que vejo. Não há vento e nenhuma nuvem no céu. Tenho uma carteira de cigarros que vou fumar; este sofá é muito mais confortável do que as habituais acomodações nesses abomináveis hotéis rurais. Creio que não precisarei do carro esta tarde.

Lestrade riu-se, complacente:

— Com certeza já tirou suas conclusões pelas reportagens dos jornais — disse ele. — O caso é tão claro como a luz do dia, e quanto mais o estudamos, mais evidente se torna. Todavia, ninguém por certo pode recusar o pedido de uma senhorita, aliás bastante incisiva. Ela ouviu falar em você e queria por força a sua opinião, apesar de eu lhe ter dito repetidas vezes que neste caso não havia nada que você pudesse fazer além do que eu já fizera. Ora bolas! Lá está ela à porta.

Mal havia acabado de falar quando entrou apressadamente na sala uma das jovens mais belas que eu jamais vira. Os olhos eram cor de violeta, tinha os lábios entreabertos, estava levemente corada pela excitação e esquecera toda a natural reserva ante a enorme aflição.

— Oh! Sr. Sherlock Holmes! — exclamou ela, olhando-nos, e com a rápida intuição feminina, continuou dirigindo-se ao meu companheiro. — Estou tão contente com a sua vinda! Vim expressamente para lhe dizer isto. Sei que James não praticou o crime. Sei, e quero que o senhor comece suas investigações sabendo disso também. Não posso duvidar desse ponto. Conhecemo-nos desde crianças, sei dos seus defeitos mais do que qualquer outra pessoa; no entanto, ele é tão sensível que não maltrataria uma mosca sequer. Tal acusação é absurda para quem o conhece bem.

— Espero que possamos livrá-lo, srta. Turner — disse Sherlock Holmes. — Pode estar certa de que farei todo o possível para conseguir isso.

— Mas o senhor já leu o depoimento e deve ter chegado a alguma conclusão. Não vê nenhuma falha, nenhum erro? O senhor não acha que ele está inocente?

— Acho muito provável que esteja inocente.

— Então? — exclamou ela, virando a cabeça e olhando para Lestrade: — Ouviu? Ele me dá esperança.

Lestrade encolheu os ombros.

— Receio que meu colega tenha formulado suas conclusões precipitadamente — ripostou ele.

— Mas ele tem razão. Oh! Sei que tem razão. James está inocente. E a respeito da discussão que teve com o pai, estou certa de que a razão pela qual ele nada quis dizer ao júri é porque estou envolvida no caso.

— De que maneira? — perguntou Holmes.

— Bem, já não é tempo de se esconder seja o quer for… James e o pai tiveram muitas desavenças por minha causa. O Sr. McCarthy queria por força que nos casássemos. James e eu sempre nos amamos como irmãos. Ele é jovem, e pouco conhece a vida e… bem, é natural que não quisesse se casar ainda. Por isso houve discussões, e, nessa ocasião, tenho a certeza de que também foi por isso.

— E seu pai? — indagou Holmes. — Ele também era a favor de tal união?

— Não, era contra. Ninguém, a não ser o velho McCarthy, estava a favor.

Um rápido rubor cobriu seu rosto jovem, enquanto Holmes lhe lançava um dos seus olhares penetrantes.

— Muito obrigado por essa informação — agradeceu.

— Poderei ver seu pai se for até lá amanhã?

— Sinto muito, mas talvez o médico não o permita.

— O médico?

— Sim, o senhor ainda não soube?… Pobre papai!

Não tem tido saúde desde há alguns anos, e este caso abalou-o completamente. Está de cama, e o dr. Willows disse que agora não terá cura e que seus nervos estão esgotados. O Sr. McCarthy era o único homem vivo que conheceu meu pai nos tempos passados em Victoria.

— Ah! Em Victoria! Isso é importante.

— Sim, isto é, nas minas.

— Perfeitamente, nas minas de ouro, onde soube que o sr. Turner, seu pai, fez fortuna.

— Sim, é verdade.

— Obrigado, Srta. Turner. A senhorita está sendo de grande utilidade para mim.

— O senhor me avisará se houver alguma novidade amanhã? Com certeza há de ir à cadeia para visitar James. Oh! Se for, Sr. Holmes, diga-lhe que estou certa da sua inocência.

— Direi, Srta. Turner.

— Preciso voltar para casa agora, porque meu pai está muito doente e sente muito minha ausência. Até logo, e Deus o ajude em seu trabalho.

Saiu apressada da sala, tão impulsivamente como havia entrado, e ouvimos as rodas do seu carro descendo a rua.

— Tenho vergonha de você, Holmes — disse Lestrade com dignidade depois de uns minutos de silêncio. — Deu-lhe uma esperança que no fim vai ser um desapontamento. Não sou muito sentimental, mas acho isso cruel.

— Creio que já vejo o caminho para livrar James McCarthy — disse Holmes. — Você tem licença para visitá-lo na cadeia?

— Sim, mas somente para nós dois.

— Então agora vou reconsiderar minha resolução quanto à saída. Haverá tempo para tomarmos o trem de Hereford e vê-lo ainda hoje?

— Bastante.

— Então vamos fazer isso. Watson, temo que vá achar tudo isto muito calmo, mas estarei fora apenas umas duas horas.

Fui à estação com eles, dei um passeio pelas ruas da pequena cidade e finalmente voltei para o hotel. Deitei-me no sofá e esforcei-me para ler algumas páginas de um romance de capa amarela. O enredo do crime era tão simples em comparação com o mistério profundo perante o qual nos encontrávamos, e a minha atenção desviava-se tantas vezes da ficção para a realidade, que por fim atirei o livro para um canto da sala e entreguei-me inteiramente ao pensamento dos fatos daquele dia. Supondo-se que a história do infeliz rapaz fosse brutalmente verídica, então, que coisa infernal, que tremenda calamidade fora aquela, ocorrida entre o momento em que deixou seu pai e aquele em que, atraído pelo grito, voltou correndo através da clareira! O golpe devia ter sido produzido por uma coisa terrível e mortal. Mas o que poderia ter sido? Os ferimentos não seriam capazes de dar uma indicação ao meu instinto de médico? Toquei a campainha e pedi o semanário local, que trazia o relato do inquérito.

A declaração do médico-legista dizia que a terceira parte traseira do osso parietal esquerdo e a parte esquerda do occipital haviam sido esmagadas pela pancada de um instrumento pesado. Procurei imaginar a posição do golpe e concluí que a pancada fora dada por trás. Isso, até certo ponto, vinha em favor do acusado, porque, quando foi visto discutindo com o pai, estavam de frente um para o outro. Mas a verdade é que significava pouco, porque o velho podia ter-se virado antes de receber a pancada; todavia, achei que devia chamar a atenção de Holmes para o fato. Também havia aquela referência do moribundo a um rato. O que se poderia induzir daquilo? Certamente não era delírio. Um homem moribundo devido a pancadas geralmente não delira. Não teria sido uma tentativa de explicar como recebera o ferimento? Mas o que isso poderia indicar? Esforcei-me por descobrir qualquer explicação plausível. E depois havia o incidente da veste cinzenta vista pelo jovem McCarthy. Se isso era verdade, o assassino devia ter deixado cair uma peça de roupa, possivelmente o sobretudo, na pressa da fuga, e devia ter um coração duro para tê-lo ido buscar, no momento em que o filho estava ajoelhado de costas, a poucos passos de distância. Que sucessão de incidentes misteriosos e improváveis! Não me admirei da opinião de Lestrade, mas ao mesmo tempo tinha tanta fé na perspicácia de Sherlock Holmes que não pude deixar de ter esperanças, visto todos os fatos novos que se apresentavam parecerem reforçar sua convicção na inocência do jovem McCarthy.

Já era tarde quando Sherlock Holmes voltou. Veio sozinho, porque Lestrade estava alojado na cidade.

— O barômetro continua alto — observou ele ao sentar-se. — É importante que não chova antes que examinemos o local. Devemos estar bem dispostos e alerta para um trabalho sutil como este. Não queria fazer o exame cansado, após uma longa viagem. Vi o jovem McCarthy.

— E o que lhe disse ele?

— Nada.

— Não pôde dizer nada?

— Absolutamente nada. A certa altura estive inclinado a pensar que ele escondia o nome do criminoso, mas no fim fiquei convencido de que está tão intrigado como qualquer um de nós. Não é um rapaz de inteligência brilhante, embora seja agradável e, segundo penso, honesto.

— Não posso concordar com a falta de gosto dele — observei —, se é verdade que não quis casar-se com uma jovem tão atraente como a Srta. Turner.

— Ah! Aí está uma história um pouco triste. O rapaz está louco por ela, mas há uns dois anos atrás, quando era ainda garoto, e antes de conhecê-la bem, porque ela esteve internada num colégio durante uns cinco anos, o que foi que o idiota fez senão apaixonar-se por uma garçonete em Bristol e casar-se com ela no registro civil? Ninguém sabe disso, mas imagine como deve ter sido horrível para ele ser repreendido por não poder fazer aquilo que daria tudo quanto possui para realizar, mas que sabe ser absolutamente impossível. Foi a loucura desse fato que o fez levantar a mão, quando o pai, na última entrevista, insistia para que ele pedisse a Srta. Turner em casamento. Por outro lado, não tinha meios para se sustentar, e por aquilo que se ouve dizer, o pai era um homem duro e tê-lo-ia mandado embora se soubesse a verdade. Foi com sua esposa que ele passou esses três dias em Bristol, e o pai não sabia do seu paradeiro. Repare bem nisso. É importante. Pelo menos uma coisa boa resultou de tudo isso, porque a moça, vendo pêlos jornais que ele estava em grandes dificuldades e em vias de ser enforcado, separou-se dele completamente e escreveu-lhe dizendo que já tem um marido nas docas das Bermudas, e que portanto não há nada que os prenda. Parece-me que essa notícia conformou bastante o jovem McCarthy, apesar de tudo o que tem sofrido.

— Mas se ele está inocente, quem praticou o crime?

— Ah! Quem? Quero chamar a sua particular atenção para dois pontos. Um é que o falecido tinha um encontro com alguém perto do lago, e que essa pessoa não podia ser o filho, porque este estava fora de casa e não se sabia quando voltaria. O segundo ponto é que o homem assassinado gritou “Cuuiii” antes de saber que o filho estava ali perto. São esses os pontos decisivos do caso. E agora vamos falar a respeito de George Meredith, faça o favor, e deixaremos os outros pontos para amanhã.

Não choveu, como Holmes prognosticara, e o dia amanheceu claro e sem nuvens. Às nove horas, Lestrade chegou com o carro e partimos para a Fazenda Hatherley e o lago Boscombe.

— Tive notícias sérias esta manhã — observou Lestrade. — Dizem que o Sr. Turner está tão doente que não há esperanças de salvar-lhe a vida.

— É um homem de idade, suponho — disse Holmes.

— De uns sessenta anos; porém, sua constituição foi prejudicada com a vida fora do país, e tem enfraquecido muito ultimamente; este caso produziu maus efeitos sobre ele. Era um velho amigo de McCarthy e, posso afirmá-lo, seu benfeitor, pois soube que lhe deu a Fazenda Hatherley de graça.

— Será possível? Isso é muitíssimo interessante — disse Holmes.

— Oh, sim! E ajudou-o de muitas outras formas. Todos aqui falam de sua bondade para com o falecido.

— Realmente! Não lhe parece estranho que esse McCarthy, que parece ter possuído muito pouca coisa e devia muitos favores, tivesse a ousadia de falar no casamento de seu filho com a filha do Sr. Turner, presumível herdeira de uma boa fortuna, e insistisse tanto, como se bastasse pedir para ser aceito? O mais estranho ainda é que, segundo sabemos, o próprio Turner não queria o casamento. Foi a filha que nos contou. Não tira nenhuma conclusão disso tudo?

— Agora vêm as deduções e conclusões — suspirou Lestrade piscando-me o olho. — Já acho bastante difícil tratar dos fatos, Holmes, sem ir atrás de teorias fantásticas. Em todo caso, arranjei um fato que vai desafiar seu raciocínio.

— Então, de que se trata?

— Que o Sr. McCarthy foi morto pelo filho, e que todas as suas teorias são meras fantasias lunáticas.

— Bem, o luar é uma coisa mais clara do que a neblina — disse Holmes, rindo. — Mas suponho que isso aí à esquerda seja a Fazenda Hatherley.

— É, sim.

Era uma casa ampla, confortável, de dois andares, coberta de ardósia, com grandes camadas de líquen sobre as paredes sombrias. As cortinas estavam fechadas, e as chaminés sem fumaça davam-lhe um ar de abandono, como se o peso da tragédia a deprimisse. Batemos à porta, e a empregada, a pedido de Holmes, mostrou-nos as botas que o patrão usava quando foi assassinado e também umas do filho, embora não fossem as que usasse na ocasião. Depois de as examinar de diversas maneiras, Holmes pediu-lhe que nos levasse ao quintal, de onde seguimos o caminho torto que conduzia ao lago Boscombe.

Sherlock Holmes ficava transformado quando iniciava pesquisas num caso como aquele. Pessoas que só o conheciam como o pensador sossegado e lógico da Baker Street não o teriam reconhecido agora. O rosto ficava corado, e a fisionomia, fechada. As sobrancelhas pareciam duas linhas pretas, firmes, enquanto debaixo delas os olhos brilhavam como uma chapa de aço. Com o rosto inclinado e os ombros curvos, os lábios pendiam e as veias do pescoço inchavam como as cordas de um chicote. As narinas pareciam dilatar-se com o faro, como puro animal de caça, e o cérebro ficava tão absolutamente concentrado no caso em questão que uma pergunta ou observação de outrem caía em ouvidos surdos ou recebia um inesperado rosnar como resposta. Rápida e silenciosamente, ele caminhou através dos prados e pela mata até o lago Boscombe. Era um terreno úmido e pantanoso aquele, e havia sinais de muitas pisadas, tanto no caminho como entre o capim e a margem do lago. Às vezes Holmes adiantava-se; outras, parava repentinamente; numa ocasião fez um pequeno rodeio até o prado. Lestrade e eu o seguíamos, o detetive, indiferente e desdenhoso, enquanto eu observava o meu amigo com o interesse que vem da convicção de que cada ato dele ia em direção a um fim definido.

O lago Boscombe, lençol de água cercado de juncos, com trinta jardas de diâmetro, fica nos limites entre a Fazenda Hatherley e o parque particular do rico Sr. Turner. Acima da mata que o cerca do lado oposto, podem-se ver os cimos vermelhos da residência do fazendeiro. Do lado de Hatherley a mata era fechada, e havia uma estreita passagem de relva molhada a uns vinte passos, que a atravessava entre a beira das árvores e dos juncos que cercavam o lago. Lestrade mostrou-nos o lugar exato onde fora encontrado o corpo, e tão úmido estava o chão que vi muito bem os sinais onde o homem caíra. Para Holmes, como pude perceber pelo seu olhar fixo e olhos penetrantes, muitas outras coisas eram evidentes na relva pisada. Andou ao redor, como um cachorro farejando, e depois, voltando-se para o meu companheiro, perguntou:

— Para que você entrou no lago?

— Para pesquisar com um ancinho. Pensei que talvez houvesse qualquer arma ou outro sinal. Mas, com todos os diabos, como você…

— Oh, chega! Não tenho tempo. Este seu pé esquerdo, metido para dentro, está em toda parte. Até uma toupeira poderia segui-lo, mesmo entre os juncos. Oh, como seria fácil se eu pudesse ter vindo antes que vocês chegassem como uma manada de búfalos, pisando tudo! Aqui está o lugar onde vieram com o guarda-caça. Cobriram todos os vestígios, cerca de dois metros em redor do corpo. Mas aqui há três marcas separadas do mesmo pé.

Tirou a lente e deitou-se sobre a capa para ver melhor, falando o tempo todo, mais para si do que para os outros.

— Estes são os pés do jovem McCarthy. Por duas vezes andou e uma vez quase correu, tanto assim que as solas dos pés estão bem fundas, mas os saltos, poucos visíveis. Isso corrobora a sua história de que correu quando viu o pai caído. Aqui estão as pegadas do pai quando caminhou de baixo para cima. O que é isto? É sinal da coronha da espingarda do filho enquanto ouvia. E isto? Ah! Ah! O que temos aqui? Sinais de pontas de pés, pontas de pés! Quadrados, sapatos comuns! Os sinais vão e voltam outra vez, certamente em busca da capa. Agora, de onde será que vieram?

E Holmes correu para baixo e para cima, às vezes perdendo e outras vezes achando os sinais, até que chegamos perto da orla da mata, sob a sombra de uma grande faia, a maior árvore da vizinhança. Holmes deu a volta, deitou-se mais uma vez com o rosto perto do chão e soltou um grito de satisfação. Ali ficou bastante tempo, virando folhas e paus secos, colhendo o que parecia ser pó do chão e pondo-o num envelope, examinando com a lente não só o chão, mas também a casca da árvore até onde podia chegar. Um pedra tosca estava caída no musgo, e também esta ele examinou e guardou. Então seguiu o caminho atrás da mata até chegar à estrada pública, onde desapareceram todos os sinais.

— Foi muito interessante — observou ele, voltando ao seu habitual bom humor. — Presumo que esta casa cinzenta aqui à esquerda seja a do porteiro; acho que devo entrar e conversar um pouco com o Sr. Moran, e talvez escreva um bilhete. Depois poderemos voltar para almoçar. Vocês podem ir ao carro, que eu estarei lá daqui a pouco.

Em cerca de dez minutos chegamos ao carro e voltamos a Ross. Holmes levava consigo a pedra que apanhara do chão, dentro da mata.

— Esta talvez o interesse, Lestrade. O assassínio foi praticado com ela — disse ele, mostrando-a.

— Mas não vejo marca nenhuma.

— Não há marcas.

— Então como o sabe?

— Porque o capim começava a crescer debaixo dela. Havia poucos dias que ali estava. Não havia sinal do lugar de onde fora tirada. Ela corresponde ao ferimento. Não há sinais de outras armas.

— E o assassino?

— É um homem alto, canhoto, manco de uma perna, calça sapatos de caça com solas grossas e tem uma capa cinzenta, fuma charutos indianos, usa boquilha e tem um canivete que corta mal no bolso. Há diversas outras indicações, mas essas ajudar-nos-ão bastante nas nossas pesquisas.

Lestrade riu-se.

— Sinto continuar incrédulo — disse ele. — Suas teorias são boas, mas temos de tratar com as cabeças duras do júri britânico.

— Nous verrons [2] — respondeu Holmes calmamente.

— Você trabalha à sua maneira, e eu usarei os meus métodos. Estarei ocupado esta tarde, e provavelmente voltarei para Londres pelo trem da noite.

— E deixa o caso inacabado?

— Não, terminado.

— Mas o mistério?

— Está resolvido.

— Quem é então o criminoso?

— O cavalheiro que descrevi.

— Mas quem será ele?

— Certamente não deve ser difícil descobrir. Esta vizinhança é muito limitada, com pouca população.

Lestrade encolheu os ombros.

— Sou um homem prático — disse ele —, e realmente não posso andar aí pelo campo à procura de um homem canhoto e manco. Seria ridicularizado por todos os meus colegas da Scotland Yard.

Tendo deixado Lestrade nos seus aposentos, fomos para o nosso hotel, onde encontramos o almoço à mesa. Holmes estava silencioso e perdido em seus próprios pensamentos, com uma expressão angustiada no rosto, como quem se acha numa posição confusa.

— Venha cá, Watson — disse ele, depois de terem tirado a toalha da mesa —, sente-se nesta cadeira e deixe-me falar com você um pouco. Não sei bem o que deva fazer e preciso do seu conselho. Acenda um charuto e deixe-me expor o caso.

— Por favor, peco-lhe que o faça.

— Bem, ao considerar este caso, há dois pontos na narrativa do jovem McCarthy que chamaram nossa atenção logo de início, embora eu haja sido impelido a seu favor, o que não aconteceu com você. Um ponto é aquele quando o pai gritou, conforme ele disse, “Cuuiii”, antes de ser visto. O outro ponto é sua referência a um rato. Ele murmurou diversas palavras, compreende, mas foi só isso o que o filho ouviu bem, antes de o velho morrer. Desses dois pontos é que devem partir as nossas pesquisas; em primeiro lugar, comecemos por admitir que o que o rapaz disse é verdade.

— O que quer dizer “Cuuiii”, então?

— É evidente que não era para chamar o filho, que ele supunha em Bristol. Era para chamar a atenção da pessoa com quem tinha um encontro marcado. “Cuuiii” é um grito usado pêlos australianos. Há grandes probabilidades de que a pessoa que McCarthy esperava encontrar também tivesse estado na Austrália.

— E o rato?

Sherlock Holmes tirou do bolso um papel dobrado e estendeu-o em cima da mesa.

— Este é o mapa da colônia de Victoria — disse ele. — Telegrafei para Bristol pedindo que o mandassem ontem à noite.

Pôs a mão sobre uma parte do mapa.

— O que é que você lê aqui? — perguntou.

— ARAT — li eu.

— E agora? — disse ele levantando a mão.

— BALLARAT.

— Justamente. Foi essa palavra que o homem disse e da qual o filho apenas ouviu as últimas sílabas. Sem dúvida pretendia pronunciar o nome do assassino, Fulano de Tal, de Ballarat.

— É maravilhoso! — exclamei eu.

— É claro. E agora bem vê que diminui consideravelmente o campo das pesquisas. A capa cinzenta é outro ponto que, caso sejam verdadeiras as palavras do filho, torna-se também verídico. Agora saímos da vaga suposição para a definitiva concepção de um australiano de Ballarat, com capa cinzenta.

— Certamente.

— É um homem que conhece o distrito, porque o lago só pode ser atingido pela fazenda ou pela herdade, onde é quase impossível a passagem de estranhos.

— É isso mesmo.

— Depois houve a nossa expedição de hoje. Por um exame profundo do solo, acrescentei os pequenos pormenores que dei àquele imbecil Lestrade, esta tarde, quanto à personalidade do criminoso.

— Mas como o conseguiu?

— Você conhece o meu método. É baseado na observação das coisas triviais. A altura do homem podia deduzir-se dos passos, e as botas podiam ser reconhecidas pelas suas características.

— Sim, eram botas especiais. Mas, e o fato de ser manco?

— A impressão do pé direito era sempre menos distinta do que a do esquerdo. Pisava mais leve com ele. Por quê? Porque coxeava.

— Mas e o fato de ser canhoto?

— Mesmo você ficou surpreso com a natureza do ferimento, conforme foi expressa pelo legista no inquérito. A pancada foi dada por trás. Mas do lado esquerdo. Agora, pergunto, como pode ser isto, a não ser que a pessoa que a deu fosse canhota? Ele tinha ficado atrás daquela árvore durante a entrevista entre pai e filho. Fumara até. Descobri a cinza de um cigarro, a qual, com meus estudos especiais sobre o tabaco, me permitiu dizer que o cigarro era indiano. Você sabe que já escrevi uma pequena monografia a respeito das cinzas de cento e quarenta variedades diferentes de tabaco usado em cachimbos, cigarros e charutos. Tendo descoberto a cinza, olhei em redor e encontrei o toco do cigarro entre os liquens, para onde ele o atirara. Era um cigarro indiano, de uma qualidade que não é produzida em Rotterdam.

— E a boquilha?

— Vi que a ponta do cigarro não tinha estado na boca, portanto, que ele usava boquilha. A ponta havia sido cortada e não mordida, mas o corte era defeituoso, daí deduzi que o canivete não cortava bem.

— Holmes — disse-lhe eu —, você envolveu esse homem de tal forma, que ele não pode fugir, e salvou a vida de um inocente, como se tivesse cortado a corda em que ele estava pendurado na forca. Vejo a direção a que isso tudo leva. O culpado é…

— O Sr. John Turner — anunciou o rapaz do hotel, abrindo a porta da nossa sala de estar e fazendo entrar a visita.

O homem que entrou era uma figura esquisita e impressionante. Seus passos vagarosos e hesitantes, seus ombros curvos, davam-lhe a aparência de velhice; todavia, as feições duras e enrugadas, os enormes braços e pernas demonstravam que possuía força física pouco comum, assim como temperamento. A barba em desalinho e o cabelo grisalho, as sobrancelhas longas e caídas, tudo se combinava para lhe dar um ar de dignidade e força, mas o rosto estava branco, os lábios e os cantos das narinas, levemente azulados. Para mim, era mais do que evidente que ele sofria de qualquer moléstia crônica e fatal.

— Tenha a bondade de sentar-se — disse Holmes delicadamente. — O senhor recebeu o meu bilhete?

— Sim, o porteiro o entregou a mim. O senhor disse que deseja falar comigo aqui para evitar escândalo.

— Julguei que o povo repararia se eu fosse à sua propriedade.

— E por que queria ver-me? — Ao dizer isso, olhou de modo desesperado para o meu amigo, como se a própria pergunta já estivesse respondida.

— Sim — disse Holmes respondendo mais com o olhar do que com as palavras. — É isso mesmo, sei de tudo a respeito de McCarthy.

O velho cobriu o rosto com as mãos.

— Deus tenha piedade de mim! — exclamou ele. — Mas eu não deixaria o rapaz sofrer, juro-lhe que teria confessado se as coisas fossem contra ele no tribunal.

— Regozijo-me por ouvi-lo dizer isso — disse Holmes solenemente.

— Teria falado se não fosse minha querida filha. Seu coração se partirá quando souber que estou preso.

— Pode ser que não chegue a isso — disse Holmes.

— O quê?

— Não sou um policial. Foi a sua filha que requereu minha presença aqui, e estou agindo no interesse dela. Todavia, o jovem McCarthy precisa ser posto em liberdade.

— Sou um moribundo — disse o velho Turner —, sou diabético há muitos anos. Meu médico disse-me que é duvidoso que eu dure mais que um mês; todavia, preferia morrer debaixo do meu próprio teto a morrer na prisão.

Holmes levantou-se e foi sentar-se à mesa com a caneta na mão e um rolo de papéis à frente.

— Diga-nos a verdade e eu tomarei nota. Você, Watson, assinará como testemunha. Apresentarei sua confissão só em último caso, para salvar o jovem McCarthy. Prometo que não a usarei, a não ser que seja absolutamente necessário.

— Está bem — disse o velho —, é pouco provável que eu viva até o julgamento do tribunal, por isso a mim pouco importa, mas quero poupar o choque a Alice. Agora vou esclarecer tudo; muito tempo se passou até que a tragédia chegasse ao auge, mas não levarei muito tempo a contá-la.

“Vocês não conheceram o falecido McCarthy. Era o diabo encarnado. Isso posso afirmá-lo, e Deus nos livre de cair nas garras de um homem como ele. Todo o seu peso tem estado sobre mim durante os últimos vinte anos. Ele arruinou a minha vida. Vou contar-lhes como caí em seu poder. Foi entre os anos 60 e 70, no quartel. Eu era um rapaz novo então, descuidado e temerário, pronto para lançar mão fosse no que fosse. Aliei-me a maus companheiros, comecei a beber e não tive sorte no trabalho; fugi para o mato e tornei-me salteador. Éramos seis e levávamos uma vida selvagem, assaltando uma estação de vez em quando ou fazendo parar os vagões nas estradas. Black Jack de Ballarat era o nome sob o qual eu era conhecido; eu e o nosso bando somos lembrados ainda hoje na colônia como os gângsteres de Ballarat.

“Um dia paramos um trem que ia de Ballarat a Melbourne. Eram seis soldados e nós também éramos seis. Três dos nossos rapazes foram mortos antes que pudéssemos pegar a bagagem. Apontei o revólver para a cabeça do condutor, que não era outro senão McCarthy. Antes o tivesse morto, mas poupei-o, embora tivesse visto os seus olhos vivos de canalha fixos no meu rosto, como que para se recordar sempre das minhas feições. Desaparecemos com o ouro, ficamos ricos e voltamos para a Inglaterra sem nos tornarmos suspeitos. Ali me separei dos velhos camaradas, resolvi fixar residência e ter uma vida calma e respeitável. Comprei esta herdade que estava à venda e procurei fazer algum bem aos outros com o meu dinheiro, tentando redimir-me do modo como o havia ganho.

“Casei-me, mas minha esposa morreu nova, deixando-me a minha Alice. Mesmo quando pequenina, a mãozinha dela parecia conduzir-me ao bom caminho, como até então nada o conseguira. Enfim, comecei uma página nova e limpa da minha vida, procurando expiar o passado; tudo ia bem, quando McCarthy me descobriu.

“Tinha ido a Londres tratar de um investimento quando o encontrei na Regent Street, malvestido e malcalçado.

“— Aqui estamos, Jack — disse ele tocando-me no braço —, seremos uma família só. Somos só dois, eu e meu filho, e você pode sustentar-nos. Se não quiser assim, esta Inglaterra cumpre muito bem as leis, e há sempre um policial por perto.

“— Bem, iremos para o oeste — resolvi, pois não havia meios de me livrar deles, e então vieram e se instalaram nas minhas terras. Não havia sossego para mim, nem paz, nem esquecimento. Fosse eu para onde fosse, lá estava aquela cara de velhaco, escarnecendo de mim. Ficou pior quando Alice cresceu, porque ele percebeu que eu tinha mais receio que ela soubesse do meu passado do que da própria polícia. Tudo o que ele pedia era preciso dar, e eu dava sem discutir; terras, dinheiro, casas, até que por fim me pediu algo que não podia atender. Pediu Alice. O filho dele crescera, assim como minha filha, e, como era sabido que eu tinha pouca saúde, parecia-lhe certo que o filho se tornasse proprietário de tudo. Mas fiquei firme, não queria que sua maldita estirpe se misturasse com a minha; não que o rapaz fosse indesejável, mas tinha o sangue do pai, e isso bastava.

“Fiquei firme. McCarthy ameaçou-me. Desafiei-o a fazer tudo o que quisesse, até o pior. Havíamos marcado encontro junto ao lago, a meio caminho entre as nossas casas, para tratar do assunto.

“Quando cheguei, vi-o conversando com o filho; por isso, fumei um cigarro enquanto esperava, atrás de uma árvore; tudo o que havia em mim de mau e odioso me subiu à cabeça. Ele pretendia convencer o filho a casar-se com minha filha com tão poucos sentimentos pela vontade dela como se se tratasse de qualquer mulher da rua. Fiquei louco ao lembrar-me de que eu e tudo o que me era mais caro estávamos em poder de um homem daqueles.

“Não havia jeito de me libertar dele. Eu era um homem moribundo, desesperado. Enquanto mantive as faculdades mentais claras e o físico regularmente forte, vi que estava selado o meu destino. Mas minha honra e a minha filha! Tudo estaria salvo se eu pudesse calar aquela língua vil. E assim o fiz, Sr. Holmes. Eu o faria outra vez. Pequei profundamente e vivi uma vida de martírio para o expiar, mas que minha filha ficasse amarrada às mesmas malhas que eu era demais para que o pudesse suportar. Abati-o com menos relutância do que se fosse uma fera venenosa. O grito dele fez regressar o filho. Eu já chegara à beira da mata, embora tivesse sido obrigado a voltar para apanhar a capa que havia deixado cair na fuga. Esta é a verdadeira história de tudo quanto ocorreu.”

— Bem, não sou seu juiz — disse Holmes, enquanto o velho assinava a confissão que fora escrita. — Peço a Deus que nunca sejamos expostos a tal tentação.

— Também o desejo, senhor. E o que pretende fazer?

— Em vista da sua saúde, nada. Sabe que em pouco tempo deverá comparecer perante um tribunal mais solene que o deste mundo. Guardarei sua confissão, e se McCarthy for condenado, serei obrigado a utilizá-la. Senão, nunca será vista por olhos mortais, é o seu segredo, esteja o senhor morto ou vivo, ficará apenas conosco.

— Adeus, então — disse o velho solenemente —, vossos próprios leitos de morte, quando chegar a hora, serão aliviados à lembrança da paz que me cederam.

Coxeando e com todo o seu gigantesco corpo tremendo, saiu vagarosamente da sala.

— Deus nos ajude! — disse Holmes depois de um longo silêncio.

Por que fará a fatalidade diabruras com pobres seres fracos como esses? Quando ouço falar de um caso semelhante, lembro-me das palavras de Baxter e digo: “Onde não está a graça de Deus, aparece Sherlock Holmes”. James McCarthy foi absolvido devido às várias objeções apresentadas por Holmes e submetido ao conselho de defesa.

O velho Turner viveu mais sete meses após a nossa entrevista, mas agora já faleceu, e há grandes esperanças de que o filho de um e a filha do outro possam ainda chegar a viver juntos durante muitos anos, casados, felizes e sem saber da nuvem turva que lhes enegrece o passado.

[1] Funcionário policial encarregado da averiguação de mortes violentas. (N. do T.)

[2] “Veremos.” Em francês no original. (N. do E.)