No terraço do «Café Leontina», agasalhados em seus lanzudos pardessus, ODORICO e WENCESLAU, dois typos mundanos, essencialmente mundanos, conversavam surdamente…
Subito, passou por elles e sumiu-se portas a dentro, uma figurinha de sacudida mulher, muito morena e muito sensual, despejando olhares cupidos por todas as bancas.
ODORICO enlanguesceu-se, e, como uma reacção, assignalou, assim, a passagem da exquisita-mulher com uma rememoração cruel…
—Sempre é curioso este «Café» em materia de mulheres. Não vejo esta «Menina Leontina», como a chamam, que não me recorde logo da infeliz Madame Berthon.
—E tu, meu caro Wenceslau, és bem a chronica viva de toda a feminidade desta terra. Não ha uma mulher de quem não tenhas informações, anedoctas, segredos, sobre quem não lances um episodio de curioso entrecho.
—Não conheceste tambem a Madame Berthon?
—Somos os dois extremos: nada escapando ao teu saber e tudo me sendo ignorado…
—Era uma vaporosa copia de Helena, capaz de mover guerras, e tentar a inspiração do artista mais rude para produzir uma obra-prima.
—Alguma divindade incognita…
—Não, mas a causadora de duas mortes: um assassinio e um suicidio. Quem a visse na simplicidade das suas vestias, no commum dos seus gestos, e na temperança dos seus costumes, não diria jamais que era a senhora absoluta de um corpo de estatua, para ser copiado pelo cinzel mais inspirado… Não se julgue a felicidade dos fins pelas venturas que povoam a estrada por que trilhamos. Muitas vezes, um momento de tranquillidade agora é a sementeira de um incommensuravel estado de attribulações mais tarde. Madame Berthon despejava invejas a todas as mulheres do seu conhecimento. Desta caza tirava ella os meios de sua subsistencia. Vi-a muitas noites, e sonhei com o taciturno aspecto de seu semblante. Taciturno, sim, porque, no meio da mais ruidosa alegria, aquella mulher era como uma virgem pallida a que nenhum excesso dê o rubor das faces… Sorria, mas o seu sorrizo revestia-se de uma algoz cambiante de tristeza. Tinha a côrte de poderosos pretendentes, mas decidia-se ordinariamente pelos mais fracos. Se ouvia a repulsa de alguem, era, ao depois, de um excessivo carinho para com o repellido. E, se a ninguem promettia, a nenhum negava, e a todos faltava… Curiosissima mulher! Os seus habitos eram os de uma leviana, mas a sua alma contrastava com a sua existencia costumeira. Exquisita mulher, Odorico, muito exquisita, senhora de muitos corações se tivesse querido, entretanto escrava de um só que a levou, finalmente, à sepultura. Durante algum tempo a sua tragedia foi a nota do dia. Um assassinio e um suicidio…
—Foi sempre assim: em cada mulher ha o germen de uma fatalidade, mas, em algumas, ha a sementeira de muitos casos fataes.
—Espera, Odorico, espera. Não condemnes a desventurada pelos primeiros tons de sua historia. Juiz mais severo do que eu, não conhecerás, por certo, para o julgamento dessa gente que pisa sobre escandalos, que veste escandalos, e que escandalisa o proprio escandalo. De ordinario, a mulher é o algoz, parecendo a extrema fraqueza. Neste caso, porem, Madame Berthon foi, apenas, a victima. Se crime ella teve, foi o de amar o homem que a assassinaria mais tarde. E amou… conjugalmente, porque nunca trahiu aquelle com quem cohabitava. Ás deshoras, lá para as tantas, assim numa hora de madrugada quando o vigilante gallo de Ares cantaria tatalando, como dois esposos, ella e o amante daqui sahiam e recolhiam-se calma e honestamente. De feio que era, o homem haveria de enciumar-se até de si mesmo, descrendo de ser elle o galan de uma femea tão geitosa. No mundo dos amores, ha, entretanto, essa especie de compensações: o feio é conjugado com o bonito, e reciprocamente, o bonito com o feio… Dahi a naturalidade daquella união de Gaspar com a Madame Berthon. Mais de noventa noites durou aquelle consorcio espontaneo. Aqui vinha eu, e naturalmente, cortejava à mulher gentil, espionando sempre o amante. Os homens todos, Odorico, saudavam-na com um mesmo enthusiasmo viril, como os armentios saudariam, com ardente fé, a vinda do outomno, porque é a estação das colheitas. Na manhan de um domingo, porem, no ninho dos dois amantes, là para as aguas furtadas de um sobrado, foi ouvido um movimento ouccubo. Visinhos, espicaçados pela anormalidade, attenderam ao que se passava na moradia de Madame Berthon. Depois de acalorada discussão, durante a qual o assassino descera as vidraças, cautelosamente, para não ser ouvido pelos extranhos, os estampidos de dois tiros indicaram um triste acontecimento no interior daquella caza. Momentos após, Gaspar, conduzindo uma bolsa de mão, descia os dois lances de escadas, abria as portas, e sahia, meticuloso e tranquillo, trancando às suas costas a entrada no sobrado em que commettera o assassinato de Madame Berthon. E, como um homem feliz, là se fôra rua abaixo. Quem o visse, não lhe diria o autor de um crime, muito menos quando, no desempenho de um habito, asseiava os botins, e olhava serenamente o movimento das ruas…
—Revolto-me jà contra esse perverso.
—Pois bem! O movel do crime fôra o roubo e todas as poupanças daquella operosa mulher estavam furtadas na bolsa que Gaspar segurava zelosamente. Em torno da caza de Madame Berthon, com o caso extranho dos dois tiros, populares encostavam-se nas redondezas do edificio suspeito, arrastando-se como lemures ámerios em trilhas brancas de areiaes desertos. Vozes surdas contavam as supposições de um crime; a suspeita avolumou-se… O rochedo nú da desconfiança vestiu-se fartamente com os ouropeis das espumas brancas dos commentarios. Pelas janellas descidas, olhos mais perspicazes queriam ver logo os indicios vivos do barbaro crime. E o tempo era bastante para que o assassino asseiasse as botas e penetrasse no Hotel onde tinha hospedagem official. Nos populares tressuou a vontade da denuncia, e um indicou a presença proxima de um delegado. Era preciso animo tambem para se ir retirar a fescennina autoridade do seu aninhamento concupiscente ao lado de uma concubina… Tudo o mais foi rapido. Num instante abriu-se com violencia a entrada. Um obstaculo appareceu: a porta estava presa, como que escorada por dentro. Que seria que obstava o seu movimento? Uma cabeça affoita enfiou-se por uma nesga, e voltou transfigurada, annunciando sómente: «Está morta». Outros typos mais curiosos vieram, ageitaram-se e penetraram com a autoridade. Estatelada sobre o chão, Madame Berthon, numa nueza arrebatadora ainda não tinha a gelidez dos cadaveres, mas já era morta. O seu thorax derramava coalhos de sangue escarlate. E sobre as suas fórmas nuas, nada, senão as meias presas com atilios de fitas rubras, e as pequenas sapatinhas…
—Que miseria!
—Já conheceste a victima. Dahi por diante a acção foi sobre o agente. A perseguição popular foi ter ao Hotel, e, quando os primeiros perseguidores foram percebidos, com a mesma arma, alvejando as suas proprias temporas, Gaspar era um suicida… Não calculas a impressão que esse crime deixou no meu espirito. Eu vi a nudez de Madame Berthon, e senti que o assassino não tivesse ficado vivo para pagar com a reclusão da vida a barbaridade do assassinio de uma mulher, cujo corpo esculptural seria capaz, como o de Mnezarete, de vencer austeros Areopagos… se desvendado fôsse tal como eu o vi… E nota, Odorico, que um corpo morto, por mais bello que seja, é menos do que o vivo, porque, quando nada, lhe falta essa humidade quente que é o fluido mais sensual do mundo. Deante de carnes como as de Madame Berthon, só naturezas muito fortes não cederão à necrophilia… Então ella que possuia um nevo sobre o quadril direito…
—Sensualizas tudo, Wenceslau!
—E que é que escapa, neste mundo, da sensualidade? A propria morte, como tu deves saber, é um pedaço de sensualismo microbiano… Quantas fecundações damnadas na hora extrema de um ser?!… Porque, senão pela força dos sexos, baqueou a inditosa Madame Berthon?!… Recorre à instancia do amor que toparàs com a absolvição da mulher, e carregarás a mão na dosagem da condemnação do homem algoz.
—Comtudo, sou contra sempre a defesa da mulher. Esta tem sido condescendentemente tratada. Menos liberdade para ella, mais rigor no senhorio dos homens.
—E como influiria tudo isto para que Gaspar não victimasse Madame Berthon?
—Seria preciso, Wenceslau, que eu te contasse a historia desde o começo do mundo, e é coisa que não se sabe é a data da primeira traição da mulher, de tão distantes tempos vem ella.
—Andas atrazado nisto, Odorico. A mulher teve o seu primeiro acto numa traição do homem, e formada de uma traição, porque foi necessario que Adão adormecesse para que Jehovah, trahindo à perfectibilidade da sua obra, lhe tirasse uma costella do corpo afim de formar Eva, ella não poderia ser contraria à sua origem…
—És rigoroso demais…
—Não sou, não, meu caro. Um grande philosopho, cuja obra leio todos os dias e quanto mais leio mais ella me ensina, observou bem o que te digo e escreveu precisamente: «As mulheres têm sido tratadas até aqui, pelos homens, como passaros que, descidos de uma altura qualquer, se perderam no meio delles: como qualquer coisa de extranho, de delicado, de fragil, de selvagem, de doce, de arrebatador—mas, igualmente, alguma coisa que é necessario engaiolar para que se não và embora num vôo»… Que é isto senão o reconhecimento do espirito traiçoeiro de nossas Evas?… Ao demais… estamos muito fóra dos eixos… Que bebemos agora?…
Fóra do terraço do «Café Leontina», solemnemente encapotados, dois policiaes nem tinham alma para andar, tamanho era o frio da alta noite…