No velho casarão do convento é que era a aula. Aula de primeiras lettras. A porta lá estava, amarella com fortes pinceladas vermelhas, ao cima da grande escadaria de pedra, tão suave que era um regalo subil-a. Obra de frades, os senhores calculam… Já tinha principiado a aula quando a Helena entrou commigo pela mão. Fez-se um silencio nas bancadas, onde os rapazes mastigavam as suas lições e a sua taboada, n’um rithmo cadenciado e monotono, cantarolando. E ouviu-se então a voz da Helena dizer para o senhor professor, um d’oculos e cara rapada, falripas brancas por baixo do lenço vermelho, atado em nó sobre a testa:

―Muito bons dias. Lá de casa mandam dizer que aqui está a encommendinha.

Oh! oh! a encommendinha era eu, que ia pela primeira vez á escola. Ali estava a encommendinha!

―Está bem, que fica entregue. E lá em casa como vão?

E emquanto o velho professor me tomava sobre os joelhos, a Helena enfiava-me no braço o cordão da saquinha vermelha, com borlas, onde ia mettido nem eu sabia o quê. Meu pae é que lá sabia… E alli estava eu entre os joelhos do senhor professor, com o bonnet n’uma das mãos e a saquinha vermelha na outra, muito compromettido. A Helena, que sorria contrafeita, baixou-se para me dar um beijo, e disse-me adeus.

―Adeus, Josésinho, logo venho cá pelo menino.

Choraminguei, quiz sair na companhia d’ella.

―Não, agora o menino fica―disse-me a Helena.―Isto aqui é a escola, é onde se aprende a ler.―E agachando-se, deante de mim:―Olhe tanto menino, vê?

―Mas fica tu tambem―disse-lhe eu então.

Nas bancadas houve hilaridade geral. O mestre teve de intervir, iracundo:

―Caluda, sua canalha! Não veem que está gente de fóra? Caluda, que vae tudo razo com bolaria!

Foi então que reparei em toda aquella rapaziada. Ah, elles eram todos meus conhecidos! Vivam lá vocês! E estavam todos alegres, p’los modos. Reanimei-me. Então já eu podia ficar, estavam ali os meus amigalhotes, cheguei mesmo a rir das caretas que me faziam alguns, o Estevão principalmente.

―Isto é preciso muita paciencia, senhora Helena, muita somma de paciencia. Um mestre precisa de ser um santo.―(Pausa. Olho duro sobre as bancadas.)―Mas está bem, diga lá que a encommendinha cá fica. Em boa hora entrasse…

―Entrou, elle ha-de estudar. Ora ha-de, Josésinho?

Das bancadas alguns acenavam-me que não, arregalando muito os olhos.

―É verdade,―insistiu por sua vez o professor―o menino ha-de estudar as suas lições, não é assim?

―Diga, sim senhor―ensinou-me então a Helena.―Hei-de estudar muito e ser socegadinho na aula, diga.―E a meia voz para o professor:―isto em casa é o vivo mafarrico; faz lá ideia?

Elle riu, já sabia; as creanças são todas assim, emquanto estão no mimo das mães. Mas uma vez mettidas na escola, as cousas mudavam um pouco. E piscando o olho, designou a palmatoria. A Helena ficou transida.

―Faz milagres, sr.a Helena. Digam lá o que disserem, olhe que faz milagres.

Eu tinha percebido. Começava de novo a embezerrar, com vontade de sair quando a Helena saisse. Aquillo sabia eu para que servia, a palmatoria…

―Mas para o nosso Zézito não ha de ser precisa, ora não?

―Diga assim: não senhor, porque eu hei de cumprir com as minhas obrigações, diga.

―Ora ahi é que está―atalhou o professor.―Vê, sr.a Helena? Aqui já os pequenos tem a sua obrigaçãosinha, os seus deveres a cumprir, as suas coisas…

―Sim senhor, sim, emquanto que em casa…

―Em casa é o que nós sabemos. Tudo são mimos, meu menino isto, meu menino aquillo. Vão assim creados á lei da natureza, sabe vossemecê? É mau isso, pessimo! Porque é que os rapazes são todos teimosos?―E bateu n’um «Monteverde» pousado sobre a mesa, dizendo:―Olhe, aqui está n’este livro: «de pequenino…

―…é que se torce o pepino»―concluiu rapida a Helena, orgulhosa de saber o que estava no livro, coitada!

―Nem mais. A modos que isto faz rir. Um pepino é uma cousa que se cria na horta…

Risota dos rapazes!

―Ora vê isto, sr.a Helena? vê estes brutinhos?―E com entono, de palmatoria alta, fazendo-se carrancudo:

―Caluda, seus fedelhos! Caluda, porque se peço licença á sr.a Helena, começo n’uma ponta e levo tudo a eito, corro tudo a bolos, tudo, mas o que se chama tudo!

E fitou-os altivo, sereno, minaz. Sob aquella ameaça, os rapazes ficaram transidos, cabisbaixos, olhos pregados nos livros. É verdade que elle podia pedir licença á sr.a Helena, e mesmo deante d’ella cascar de rijo… Uma sombra de terror passou por toda a sala, socegaram; até o Estevão deixou de me fazer caretas.

―É o que vê, sr.a Helena―disse então victorioso, a sorrir-se, o bom do professor.―É o que vê! Um mestre sem palmatoria é um artista sem ferramenta, não faz nada. Santa Luzia milagrosa! Aqui onde a vê tem feito muitos doutores.

―Essa?―perguntou ingenuamente a Helena, disposta a venerar aquelle pedaço de pau de buxo, se na verdade elle tivesse feito muitos doutores.

―Não, mulher, se não foi esta, outras como esta, essa é boa! Isso não faz ao caso.

Pela resposta bem se vê que foi indiscreta a pergunta da pobre Helena. Tambem elle, velho n’aquelle officio, muitas vezes investigara com magua o motivo por que a sua palmatoria não fazia um unico doutor… Morreria sem ter essa «gloria,» decerto! Forte martyrio que a Helena veio recordar-lhe!…

Houve uma interrupção, um rapaz que se levantou e de braço no ar pedia para ir lá fóra.

―Licéte!―foi como elle disse, arremedando o latim licet. Outros havia que diziam, por troça, Aniceto!

―Ora já a mim me admirava,―tornou-lhe o professor.―Se tu não havias de pedir para ir lá fóra, tu…―E ficou-se a fital-o, meneando pausadamente a cabeça.―Ora vá você lá fóra.

O rapaz saiu apressado, com grande estrupido de pés.

―Olá?―chamou zangado o sr. professor.

O outro assomou á porta, contrafeito.

―Para a outra vez faz-se menos barulho com esses pés, ouviu? Não sei se percebes… Ora já que tem tanta pressa, eu não tenho nenhuma; faça favor de esperar um pouco.

Poz-se então a correr a vista pelas bancadas, resmungando:

―Tu não… tu não… tu não… Tu, olá, venha cá!

Levantaram-se uns poucos, foi um barulho.

―Canalha!―gritou-lhes então, batendo o pé.―Corja de atrevidos! Sentados, já!

Grande silencio nas bancadas. Um perguntou de lá, humilde, se era elle, apontando para o peito.

―Sim, és tu, p’ra que queres os olhos? Avance e perfile-se.

Mediu-o d’alto a baixo. Depois:

―Isso mesmo. Essa mão no bolso é que não é do regulamento, fóra com ella. Agora, sim senhor. Ora vês além aquelle sujeito? o tal das pressas?…

―Vejo, sim senhor.

―Bem sei que vês, se o não vissem é porque eras cego; que tal está o palerma? Ora acompanhe-o, já sabe p’ra que. E sempre quero ver se tenho de vos ir lá buscar pelas orelhas.

Sairam. Mal tinham salvado a porta, gritou-lhes o sr. professor:

―Olá?

Elles assomaram, outra vez, atrapalhados.

―Então, seus cabeças d’avelã, torres de vento, então não falta nada?

Os dois pozeram-se a coçar a cabeça, muito compromettidos. Faltava com effeito alguma coisa…

―Então é ahi?

Elles avançaram até ao meio da sala, tropeçando um no outro.

―Ora passa por esta vez, em attenção a estar aqui a sr.a Helena.―E enrugando o sobr’olho, commandou em tom marcial:―Ordinario! marche!

Faltava aquillo. Em obediencia aos seus velhos habitos de militar, dava o sr. professor aquella voz, sempre que mandava algum alumno cumprir ordens suas:

―Ordinario! marche!

Sentou-me então no joelho e perguntou:

―Olha lá, Josésinho, tu queres ser militar, queres? Assim como o sr. capitão do destacamento, que lá está aboletado em casa, queres?

―Corneta, mais queria ser corneta. Ou então como o sr. prior, dizer missas.

Riram-se. Quem sabia lá o que d’ali sairia? Mas o sr. professor fez notar que era bom que os pequenos tivessem já assim uma tendencia qualquer. E poz-se a puxar-me o nariz, a dar-me palmadinhas nas bochechas.

―Corneta ou prior, hein? Pois isso é que é preciso escolher.―E para a Helena:―Pois olhe que os tenho conhecido, sr.a Helena, que respondem a pés junctos que não querem ser nada. Mau signal, pessimo, sr.a Helena! Quando elles assim dizem, de ordinario assim fazem, depois. Nunca são gente.―E virando-se para mim:―Mas então, Josésinho, em que ficamos? Corneta ou prior?

Preferia ser prior. Sempre me parecia melhor, mais bonito, especialmente em dias de festa, com aquella capa toda doirada…

―Muito bem, escolheste bem. «Telha de egreja…

―…sempre gotteja»―concluiu a Helena que ainda hoje é forte em adagios.

O bom do professor tinha finalmente chegado onde queria.

―Prior, então! Está muito bem, seu reverendo. Pois olha, Josésinho, para ser prior é preciso estudar, saber ler no missal, ora é?

―É.

―Ah!… Não é assim que se diz. É, sim senhor―emendou a Helena.

O sr. professor teve um gesto de indulgencia.

―Mas tu não sabes ainda, ora não?

―Não senhor.

Elle então, fingindo uma grande surpresa, perguntou se o que eu trazia na sacca era um livro.

―Querem ver que é um livro?…

―Diga―ensinou a Helena―é o meu livro para aprender a ler. Mostre-o lá ao sr. professor, tome.

Houve na sala um murmurio, ao verem a capinha verde, toda lustrosa, do meu livro.

―Muito bem! muito bem!―applaudiu o sr. professor.―Mas este livro é mesmo para aprender a prior… O menino já tinha dito lá em casa que queria ser prior, ora já?

Fiz que sim com a cabeça. Era verdade aquillo; mas como é que elle o sabia?

―Bem se vê por este livro. É livro para prior. Queres então principiar, não queres?

―Quero, sim senhor,―ensinou ainda a Helena e eu repeti.―O que eu quero é dizer missa quanto mais cedo melhor, diga.

―Primeiro do que aquelles?―perguntou voltando-me para as bancadas.

Então fui eu mesmo que respondi:―«Sim senhor!»―contente com a lembrança de vir a dizer missa, e de a vir a dizer primeiro do que todos aquelles. Até podia acontecer que o Estevão das caretas me ajudasse a alguma…

―Ora então está muito bem, estamos entendidos.―E com intenção, ferindo muito as palavras, para m’as gravar no espirito:―A primeira coisa que é precisa para prior é saber bem isto, vês?―E punha-me deante dos olhos o livro aberto na primeira pagina.―Isto aqui é já missa, chama-se o a b c, e é aquillo que os priores dizem quando vão para o altar.

―Ito?―inquiri curioso, furando a pagina com o dedo.

―Sim, isto. E amanha já me has-de trazer sabido d’aqui até ali. Hein? valeu?

―Diga que sim, menino, diga. Valeu, sim senhor.

Eram as seis primeiras lettras, ainda me lembro bem. A minha primeira lição!

A B C D E F!

A minha primeira lição!

―Ora sabe vossemecê o que isto é, sr.a Helena? isto que eu tenho estado a fazer?

―Sim senhor, sei… é assim… como quem diz… é…

―Não sabe, não admira,―disse complacente o sr. professor.―Puxar o gosto, sr.a Helena, puxar o gosto é que isto é. Nem todos os mestres o fazem, todos o deviam fazer. O pequeno, assim, até já vae estudar com mais gosto, digo-lh’o eu; olé se vae!

«Mas elle não a queria demorar mais, tinha lá em casa as suas obrigações, as suas voltas, e deviam ser horas.»

―Pois isso é verdade, sr. professor; mas não sei que é, custa-me a separar do menino…―disse a boa da Helena, quasi a chorar.

―Foi ama, deu-lhe o seu leite, ahi é que está a coisa. Pois tenha paciencia. Aprender é tão preciso como mamar―concluiu n’uma prosa que é mesmo poesia.

―Pois é preciso, é!…

E a pobre Helena beijou-me, para se ir embora. Quando me beijou, senti na minha cara as lagrimas d’aquella boa amiga. Retirava-se, deixando-me ainda sobre o joelho do meu velho professor, quando este a chamou:

―sr.a Helena!

―Meu senhor!―respondeu, levando aos olhos o avental.

―Já agora, espere mais um instante.

Percorreu com a vista, minuciosamente, as bancadas todas da aula. Depois, intimou:

―Tu, Francisco, olá, chega acima. E tu do lado, como te chamas, abaixo um pouco.―E virando-se para a pobre mulher lacrimosa:―Ora é alli, sr.a Helena, alli é que é o logar do pequeno. Leve-o lá, ande, que lhe não deve pesar.

E dos braços do meu professor passei para os braços da ama. Novo beijo, lagrimas mais quentes, e saiu a boa da Helena, deixando-me no meu logar…―o meu primeiro posto na arriscada milicia das lettras…

Depois, só vi isto: o mestre a sorrir-se para a porta e a conversar por acenos com a pessoa que estava de fóra. Pequeno como era, percebi, no emtanto. O mestre vinha a dizer na sua mimica:

―Bolos?… Não?!… Perdoe a sr.a Helena, mas isso, quando forem precisos… Pois sim… lá isso sim… pequeninos… Han? mesmo com a mão?… Está bem… Descance… Mesmo com a mão…

E ella devia sorrir por entre lagrimas, porque foi tambem por entre lagrimas que o bom velho se sorriu, dizendo adeus…

…Helena, minha boa amiga! Acabo de chegar ao fim da viagem que principiei n’esse dia. Não volto mais á escola! Venho hoje restituir-te, querida amiga, aquelle beijo―dulcissimo beijo aquelle!―que tu então me déste. E afinal não fui prior, ora vê!… Mas ainda bem. Se o fosse, acho que parecia mal beijar-te, minha boa e santa amiga! Pois ainda bem que não fui prior, ainda bem… Não é verdade, Helena?

Em Coimbra,

no dia do meu acto de formatura.