Ha sete ou oito annos vinha eu do Poço do Bispo no electrico, quando nas alturas da Mitra entrou um meu velho amigo e camarada, Dr. P., clinico da localidade, com quem vim conversando até á Baixa.
Trazia na mão um numero de revista litteraria, e abrindo-o no sitio d’uma peça poetica, impressa, perguntou-me se eu ouvira alguma vez fallar da Coronado. Fiz com a cabeça que não, e elle, explicando que era o médico da casa, em duas palavras fez o elogio sumário da sua cliente. Mez e meio havia que esta senhora, já então de oitenta a oitenta e dois annos d’edade, mas completamente em plena validez mental e muscular, se fôra por uma escada de pedra, quebrando um braço pelo terço inferior do cubito e do rádio.
Poucas esperanças tinha o clinico, dada a edade provécta da paciente, de se virem a soldar os topos da fractura; senão quando, ao lhe ser tirado o aparelho, se viu como os ossos quebrados tinham adherido, e a cura se fizera completa e ás maravilhas!
Emquanto imovel no leito, a doente, cuja nervosidade frenetica espantosamente sofria de estar preza, para enganar o tempo e distrahir o espirito volitante, ideára e compuzera em quadras endecasylabas, uma poesia festiva ás suas mãos.
E aqui o médico estendeu-me a revista para eu lêr.
Uma das mãos da Coronado estivéra mez e meio entrapada nas ligaduras do aparelho de fractura, sem vêr a outra, e a poetiza figurava-as como duas amigas ou irmãs gémeas afeitas a comunicarem no seu dia a dia impressionista, a imitarem-se os gestos, a procederem por sentimentos e instinctos identicos, e que uma tão longa separação lançára no desespero e na saudade.
A alegria do novo encontro fazia-as exultar em caudaes de ternura e hossanas de prazer. Os versos eram ricos, nem farfalhudos, nem ôcos, com significados precisos, frases de bronze sonoro, imagens faiscantes, claras, simples, dando uma ideia de riqueza sóbria, e mostrando uma artista experiente e um pulso de homem. Não havia hesitação nem cançaço, nem essa pulverisante banalidade dos velhos que vivem de restos e, perdido o séstro construtivo e inventivo, fazem litteratura de toadas e sandezes. Qualquer Fernandez Shaw ou Eduardo Marquina, Santos Chocano ou Manoel Machado, Ruben Dario ou Francisco Vilaespesa, poderiam ter assignado esse texto de bravura, doce e intenso, vivido e sentido, verdadeiro cantico d’uma alma unindo a transcendencia lyrica á precisão. No tempo da Coronado os poetas ainda eram só romanticos ou classicos…
O individualismo hysteropatha não tinha creado os grupos de cabaret e as patrulhas maniacas de symbolistas, instrumentistas, decadistas, ideologos, esthetas, neo-mysticos e magnificos, que depois inçaram a poesia de brochuras pathologicas, dando a impressão d’uma casa d’orates com mais exhibicionismo que estro, e menos inspiração que maluqueira.
A poetiza desde 1874 ficára isolada, pela tristura claustral da sua vida, das correntes poeticas que agitavam o mundo, vindas dos altos de Montmartre, té aos centros d’insurreição de Madrid e de Lisboa. Poetava á antiga, com um gesto nobre e a palavra fluida da velha escola hespanhola, que tinha em Espronceda, seu conterraneo tambem d’Almendralejo, um dos mais altos e orgulhosos paladinos.
Despertou-se-me então o desejo de, senão conhecer de perto, pelo menos entrevêr uma vez sequer a singular creatura que aos oitenta e dois annos rimava com uma pujança feraz tão bellas coizas. O visconde de Castilho e o dr. Souza Viterbo a quem algumas vezes fallei na Coronado, depois d’elogios enlevados ao talento e viveza de conversação da illustre enclaustrada, evitavam pormenorisar detalhes que me ajudassem á creação d’um retrato physico ou moral, justaponivel ao indeciso perfil que a leitura dos versos me acordara.
Pouco a pouco porém outros informadores foram surgindo, ao acaso das apresentações e das palestras, e agora um, outro ao depois, pequenos traços de luz vieram vindo, á força d’indiscrição, devo dizer, que talvez pareça violar o recato da vida intima, mas que pelo significado ultimo d’exaltação admirativa, estou que m’o perdoarão aquelles que como eu não pódem examinar uma obra d’arte, senão tocando-a e palpando-a, primeiro que se enthusiasmem da sua rareza e possam comungar da sua singularidade e formosura.
Com os informes de todos esses confidentes anonymos, pela mór parte amigos e para assim dizer vassallos graciosos, pude alfim reconstituir da gran senhora a estatua arcaica, entrevêl-a como atravéz dos veus d’um santuario, e do lado esquerdo do peito acender-lhe uma luz, que póde ser não seja alma, mas que servirá para marcar o sitio onde bateu um coração.
Morto o marido em 1891, Carolina Coronado não consentiu, por mais que a lei portugueza insistisse, em separar-se do cadaver. Veio a policia, vieram os magistrados, veio o ministro de Hespanha, veio o ministro da America, e deante de todos estes symbolos de força irrevogavel, a varonil mulher opôz a razão absurda da sua paixão esponsalicia, a aflição das suas saudades, e a ofegancia romantica dos seus zelos mortuarios. Não queria que a terra do cemitério provasse o corpo amado, e os adorados restos deixassem um momento d’estar sob a impressão dos seus cármes dolorosos, ouvindo-lhe todos os dias a voz, como se sob o encanto d’ella o drama da podridão custasse menos ao morto, e, sucessivamente exaladas do seu féretro, odes[1] vitaes pudessem vir impressionar e envolver de sugestão passional, o espirito amoroso, supersticioso, solitario e monjil da abandonada.
Como Joanna a doida ella acompanha, da casa de Paço d’Arcos para o palacio da Mitra, o cadaver de Justus Perry, e á força de teimosia imperiosa, de soluços, de suplicas, consegue alfim que as autoridades fechem os olhos, movidas talvez pelas imposições dos diplomaticos; quem sabe mesmo se pela feitiçaria dramatica do feito, deixando vêr n’essa estremenha uma alma do Romancero, de grandiosa esculptura e anormal poder de sugestão!
Desenove annos, n’um simples caixão de chumbo, envolto em madeiras de cedro ou d’ebano, o corpo de Justus Perry permaneceu na capella da Mitra, sob o fulgor perpetuo da lampada alumiando as estatuas dos nichos e os icones dos altares: até ha poucos dias irem os dois, marido e mulher, caminho do pantheon de familia, em Badajoz, onde como na vida as suas nupcias seguirão, na paz do nada.
Esta casa da Mitra foi não só mausuléo de Justus Perry, como tambem da Coronado, pois, salvo uma ou duas vezes que teve d’ir a Hespanha por motivos de familia ou d’interesses, nunca mais a illustre mulher deixou aquella estancia melancholica, que foi realmente o seu claustro e o seu mosteiro.
Quem passava na estrada d’aquelle laborioso e popular Poço do Bispo, em plena turbulencia dos carros de carga, dos silvantes comboios, do martelar das oficinas, do fumegar das altas chaminés, dos grupos de gente tisnada e arremangada, certo não poderia supôr que por traz d’aquellas cantarias altas e d’aquellas podridas janellas, uma creatura rara sofria e meditava—uma creatura d’alma heroica, da raça das Virgens d’Avila e das Donas Marias de Molina, e que aos oitenta e dois annos deslumbrava os amigos com a sua lucidez desconcertante, a sua verve picaresca, a sua eloquencia de homem, a sua belleza de rainha, e tal poder de ressurreição e recordação, que todos os fantasmas da sua mocidade viviam e existiam reaes, a cada simples apêlo dos seus dedos e estranha palavra dos seus labios, como as ressurgiria o medium Egglinton, ou Eusápia Palladini, n’alguma sessão de hermetica e telepatica.
Fechada completamente para as menores sugestões e aparições contemporaneas, não recebendo senão dois ou tres velhos amigos que lhe fallavam do passado, não chegando sequer á janella, por uma especie de horror aos inventos modernos e aos aspectos da multidão grosseira e circulante, Carolina Coronado vivia como se ha trinta annos a tivessem fechado n’uma caixa, tapando-lhe os ouvidos e os olhos para não sentir as evoluções e reviravoltas do mundo alheio e exterior.
D’aqui resultaria o que geralmente sucede aos cegos e a certos surdos-mudos perspicazes, que á mingua de sentidos proprios que lhes desdobrem a attenção sobre o de fóra, vêem para dentro, com força décupla; d’onde uma hyperacuidade d’imaginações, visões, uma vida febril de sonhos e quiméras, uma sagacidade felina para induzir de pequenas causas, efeitos mysteriosos e longinquos, que explica em muitos, por exemplo, suas faculdades de poetas e de musicos, de calculistas e filosofos, e na Coronado esse fulgurante poder de, em meia hora de palestra, nos abrir perspectivas profundas, de historiador e psychologo, sobre os meios sociaes e a gente illustre, ou simplesmente anedótica, que ella conhecera e tratara em tempos idos.
Graças a essas faculdades cydoramicas, a esse instincto artista da escolha de traços com que rhembrantizar e exprimir o mais intenso das personalidades e das almas, Carolina Coronado fazia-nos viver com emoção profunda quadros das tormentosas ou desvairadas epochas do reinado d’Izabel II, entre 1836 e 66.
Era o corregedor Pontejos, uma especie de intendente Manique, que elegantisou e saneou Madrid com requisitos de benemerencia e energia eguaes aos d’este, mas sem o sobrecenho despotico que a historia lhe atribue.
A aristocracia e a elegancia representando-se pelas casas ducaes d’Ossuna, de Liria, de Vistahermosa, de Gor, de Rivas, de Fernan-Nunez, d’Alba, de Medinacelli, de Dénia, d’Abrantes, de Frias; pelos marquezados de Miraflores, do Socorro, de Casa Riera, de Santa Cruz e de Pover; pelas casas condaes de Oñate, de S. Bernardo, de Guaqui, d’Altamira, Torre Muzquiz, etc., cujos paços disseminados pela cidade velha, verdadeiros museus d’artes sumptuarias e riquezas, se abriam d’inverno para sucessivas festas e saraus, e cujas mulheres faziam ás tardes, nos desfiles do Prado e da Castelhana, nas soirées do Theatro Real, ou nas recepções do Palacio do Oriente, revoadas esplendidas de bellezas que as memorias do tempo deixaram celebradas.
Era o tempo das primeiras emprezas d’irrigação, navegação e ferro-carris, que acordavam em todos os paizes, na ancia de renovação trazida pelo constitucionalismo, como um reverdecer de novas estações; o tempo dos grandes emprestimos para expedições coloniaes e guerras politicas, quando argentarios como Caballero, Salamanca, Ceriola, Perez-Sevane, Calderon, Benisa y Lafont, floresciam na finança hespanhola, como nas cathedraes os monagillos encarrégues, d’entreter o oleo das lampadas, para que a fé se não extinga, e os deuses se não vejam abandonados.
Politicos e estadistas como Arguelles, Mendizabal, Martinez de la Rosa, Calatrava, Olozaga, Herros, Narvaez, O’ Donell, Espartero, Serrano, Prim.
Homens de letras como Lista, Gallego Breton, Gil e Zarata, Lopez d’Ayala, o poeta Quintana, o poeta Zorrilla, Mariano Larra (El pobrecito hablador), Vega e Hartzennbuch, Mezoner Romanos, Pedro d’Alarcon, Fernandez de los Rios, Cambronero, Juan Valera… Artistas como Ventura d’Aguilera, os esculptores Llaneces e Solá, Marinas (o autor da estatua de Velasquez), e nos seus doces recuerdos de Sevilha, os dois Becquer, mortos de fome; Valeriano o pintor, e Gustavo Adolfo, poeta d’estirpe grega, d’essencia olympica com a delicadeza e a graça d’um Hegesipe Moreau, na fantasia lunar d’um Nathaniel Hawtorne ou d’um Bret Hart.
Ouvil-a descrever, comentar, caricaturar toda esta gente, desenhando-a em dois riscos, caracterisando-a com duas anecdotas d’escolha, relampejantes sempre, e sempre finas, lançando-a na melée social, depois de que esquissava sumariamente as essencias directrizes e as paixões tendenciosas, era um d’estes cursos de historia fallada, uma d’estas delicias cerebraes que davam da narradora a impressão mais assombrosa, e induziam o ouvinte a ficar alli a escutal-a eternamente.
Ha quatro ou cinco annos que sob pretexto de notas para uns artigos sobre azulejaria artistica, consegui da residente illustre da Mitra licença para percorrer rapidamente a escada e alguns salões. De combinação, alli me esperava um amigo da dona da casa, e meu, o qual, fingindo surpreza no encontro, me apresentaria á Egéria, ao tempo sósinha em palacio, pois sua filha estava em Badajoz. Das riquezas patrimoniaes da Coronado, e das acumuladas pelo marido durante as vastas emprezas comerciaes e industriaes em que fallei, grande parte devia ter cahido em sorvedoiro, pois tudo na residencia denotava, senão estreiteza de meios, pelo menos um estado de finanças bordejando de perto a derrocada.
Em 1891 a casa e quinta da Mitra tinham já sido vendidas por 54 contos a certo advogado artista de Lisboa, cujas consultas então se pezaram a oiro, e que a Coronado trouxera ao seu serviço em não sei que trapalhadas juridicas, demandas, pleitos, que levariam parte dos caudaes. A escriptura de venda estabelecia a clausula de residir na Mitra a vendedora, até final de vida, e certamente o preço da propriedade fôra para liquidar os honorarios do causidico, e provavelmente cobrir compromissos ou dividas que tirariam o somno á escriptora. Ella não podia fugir á lei fatal que põe os cerebraes do ramo artista na contingencia d’ignorarem, pela mór parte, o valor do dinheiro, e a arte judenga de o fazer frutificar em especulações e trafegos rendosos.
A morte de Perry, pondo ponto na tutela sensata e escrupulosa gerencia dos fundos do casal, não teria precavido a viuva, par e passo, contra os futuros perigos de gastar sem contar, mórmente ficando as contas entregues ao zelo incerto e enganosa honradez d’administradores e feitores, que são bons ou máus conforme a fiscalisação a que os sujeitam.
Está-se a vêr o mecanismo porque, morto o marido, a Coronado transita da fartura cómoda para a escassez molesta e tragica.
É sempre o mesmo, n’estes navios onde o piloto falta, e onde a tripulação perde o respeito. Corro pois uma gaze sobre este lance da historia, que de resto só entristeceria o leitor contra as injustiças da vida, e passo a dizer que a minha apresentação foi captivante, e a illustre escriptora, em quatro palavras d’aquella cordealidade hespanhola que em cortezia familiar nenhuma eguala, pôz a minha alma rendida deante do gesto infinitamente nobre da sua mão d’abadessa e imperatriz viuva, que pude alfim beijar, mui reverente.
Com um vestido de velludo preto, de cauda, branca de neve, os imensos olhos de velludo molhado, que o fulgor do genio rejuvenescia no leve engêlho das póchas orbitarias, Carolina Coronado aos 82 annos era uma mulher alta e direita, de talhe esbelto, por ter ficado magra, e com dois bandós nas fontes, frizados e nevados, como esses que os retratos dão á rainha Izabel II nos seus ultimos annos de Paris.
Fallava um hespanhol claro e castiço, florido de modismos que pela graça rebuscada tinham um oloroso sabor de lingua velha; hespanhol de provincia classica e de convento, que seria o fallado entre a gente bem educada de ha meio seculo.
Ás minhas palavras de saudação, ella, certo para atalhar o discurso, e evitar talvez que eu me estendesse, perguntou-me se era de Lisboa; e conhecida a minha origem transtagana e a terra de charnéca onde eu nascera, acrescentou que então eramos quasi vizinhos, pois Villa de Frades distaria talvez uma duzia de legoas d’Almendralejo e La Serena, a patria da sua familia, em cujas parochias tinham banco fechado os Romeros Tejadas e os Coronados Cortez d’aquellas terras. Envaidecia-a, de resto a sua origem estremenha sem mistura. Ha dois sitios de Hespanha que imprimem caracter proprio aos naturaes: Estremadura e Aragão. D’alli teem sahido artistas, guerreiros e politicos d’excepcional fragor e intensidade.
—Se eu tinha viajado em Hespanha?
Todo o hespanhol é sedentario e bairrista, porém o portuguez quasi que o excede… De resto, para um portuguez viajar em Hespanha, é percorrer um pouco a sua terra. «Hespanhoes, resumiu ella, somos todos nós, os peninsulares».
E de repente, voltando-se para mim—Se eu era iberico?
Cuido ter feito um gesto que, imperceptivel embora, contudo a minha interpelante colheu, al primer vuelo, medindo n’elle a patriotice chocada em leituras da Filippa de Vilhena e outros canastrões theatraes archisandeus.
—No se moleste usted. No es mas que hablar, contraveio logo com o mais gracioso gesto d’acalmia. E foi dizendo:
—Tinha sido o erro de Filippe II, tão grande politico, não transferir logo para Lisboa a capital do reino unido. Se assim tem feito, Portugal e Hespanha estariam hoje abraçados n’uma nacionalidade unica e pujante, o que evitaria a ambos a decadencia funesta que durando vem té ao presente. De mais que, segundo as datas da historia fidedigna, a perda da independencia não foi tão dolorosa a Portugal como se diz nos manuaes para as escolas. Em toda a parte os povos mechem-se principalmente por interesses, e os primeiros passos da dominação hespanhola em Lisboa foram até sympathicos á população, sobre quem Filippe II exerceu uma atracção benevola e singular…
Um erro deploravel! Os nossos dois paizes reunidos ficariam na carta com uma massa de territorio maior que a França, e as suas colonias somadas dariam um dominio colonial superior ao da Inglaterra.
Tinhamos tomado assento na ultima de tres salas que formam a parada de recepção da residencia, e que com quatro janellas de varanda sobre a rua, e duas janellas-portas ao terraço, tinham luz deslumbrante, em grandes resteas de sol primaveral.
Tudo no mobiliario velho e desbotados tons das braçadeiras, cortinas e alcatifas, chorava a tristeza pudica das coisas de luxo que a penuria assedia, e teem de morrer em serviço, como os cavallos velhos nas carroças. Cadeiras modernas de Vienna alternavam com esplendidas poltronas e sofás, cuja seda o sol e o roçar das cabeças fanára e mesmo tinha esgarçado em certos pontos. Nas carpets de preço, gusano e pés tinham já consumido a lã das flores e dos desenhos apparecendo a trama em séries de cordas varicósas.
A alguns moveis artisticos faltavam-lhes ferragens, precisavam ser refrescados e envernizados; jarras da India, sobre columnas, voltavam para a parede os buracos e as rachas dos desastres; casaes de pombos, livres pela casa, tinham feito ninho sob um bufete, borrando tudo; e até, n’uma estante lindissima, os proprios livros amigos, confidentes de dores e desalentos, até esses tinham um ar d’exilados, e o geito de nos dizer que o seu tempo passára, e lhes doía a velhice e as suas imensas saüdades de Madrid…
De pé, na sala, a illustre senhora mostrava pela janella aberta aquella enseada morta de tres leguas que o lisboeta chama mar da palha. A outra margem silhuetava no azul sua paysagem terna e esfumadiça.
—Diga-me se isto não é a rada d’uma cidade de dois ou tres milhões de habitantes, chave do comercio atlantico, e capital soberana da Iberia una e congraçada.
Eu por mim não queria saber da tal Iberia una, reconhecendo entretanto que o erro de Filippe II impedira talvez a realisação d’um bello sonho de nacionalidade formidavel, enquanto na hora presente, com dois paizes egualmente preguiçosos e incapazes, loucura fosse ajuntar misérias que já dolorosas eram, separadas.
A enseada do Tejo é que verdadeiramente prendia os meus olhares, vasta, amorosa, em azul pallido, listrada de correntes, e com placas espelhadas d’agua morta. Algum vaporeto passava para Aldegallega ou Barreiro, fumando distrahidamente o seu charuto; alguma falúa ou barco de pesca desfraldava a véla de guião, quadrada, vermelha com a latina á pôpa, e aquelle gesto airoso, ideal, gaivotal, de fender a agua, patinando. Aquillo lembrava em Veneza as travessias para o Lido, sob os esverdeados céus do Adriatico, por uma tarde assim primaveral.
Entanto, por uma escadaria de balaustres, tinhamos descido ao jardim, do seculo XVII, todo em meandros e porticos de buxo, que de resto ha muitos annos ninguem tosquiava, e canteiros adentro mantinha uma desordem d’arbustos sem trato, e hervas bravas crescendo á doida, como nos pouzios da devêza, ao Deus dará.
—E de leitura hespanhola, como vamos? Aventurei varios nomes de modernos: Pio Baroja, Benavente, Rusiñol, Felippe Trigo, Antonio Palomero, Anton del Olmet, Lopez Barbadillo, Ciges Aparicio, Isaac Muñoz, que ella pareceu escutar sem conhecer.
—E Juan Valera? interrogou.
—Conheço.
—Lopez d’Ayala?
—Sim.
—Campoamor, Nuñez d’Arce, Menendez Pelayo…
—Um pouco, um pouco.
—Pereda, Galdós, La Pardo…
—Sim, sim, tudo isso li.
—Hombre, exclamou ella com uma acerada ponta ironica. Es usted un portugués mui sabionado.
—Que quer! A lingua hespanhola tem para mim um prestigio e uma musica que me não canço d’ouvir e de gostar. É uma lingua de guerreiros e d’oradores, para hymnos e para suplicas, compativel com a expressão de todos os estados emotivos. Ella sorrindo, repetia o proloquio:
—Falla francez ao teu cozinheiro, inglez ao teu cavallo, alemão ao teu cão, e hespanhol á mulher que mais te agrade…
Tinhamos vindo ao cabo do jardim, e por uma porta de ferro chegamos a um grande trecho murado de floresta ou bosque, onde a vegetação deixada ao esbracejar liberrimo de vint’annos, apagava o torcicollo das ruas, emaranhando para todos os lados, labyrinthos de folhas e de ramas.
Aquillo lembrava o Paradou da Faute de Zola, com a noite glauca dos macissos, as lucarnas das cópas deixando feixes de luz zebrarem d’esmeraldas liquidas os fundos. Uma aluvião de melros silvava, uma guarda de honra de passaros respondia.
Era recolhido, intimo, profundo, e ouvia-se, não sei onde, um tenue telingar d’agua corrente. E eu lhe disse erguendo a vista áquella intensa ablução d’asas e folhas:
—Aqui se vive em plena natureza.
E ella tornou:
—Não. Aqui se morre em plena soledade.(Voltar ao Conteúdo)