—Tenho consultado tudo, tudo! A homeopathia, o systhema Brugrave, o Raspail, tudo! Mas os alivios poucos, nenhuns mesmo. É esta dôrzinha vaga no peito, esta tosse secca, pouca vontade de comer, ventre preso… Quando se chega á minha edade, é esperar pela morte, bem o sei.

—Qual!

—Ah! eu não a receio, meu bom amigo. Somente me affligiria a saudade dos que amo, e o amor da minha filha…—Baixava a voz para dizer-me—Tem-me perseguido a ideia de consultar um enfermeiro. Ouço que entendem muito de doenças… Morrer, deixar Esther, seria o ultimo castigo.

Em resposta, eu ria. A condessa ia começar a narrativa de uma cura estrondosa, feita n’uma senhora das suas relações, por um dos taes.

—E está hoje gorda e alegre, que não faz ideia.

—Faço, faço.

—Depois, os remedios que me receitam os medicos, repugnam-me. Tenho horror á magnesia, horror ao cheiro da camphora, horror ás pilulas, que bem podem ser manipuladas por sugeitos pouco limpos. Alguns dos medicamentos nem os tomo.

—Eis porque se não cura, condessa. As aguas de Loeches são suaves…

—Horriveis! E tão prosaicas…

—De certo, de certo. Tanto mais que V. Ex.a tira effeitos poeticos da doença que diz soffrer, confesse.

—Ahi vem a sua má lingua, doutor. Na minha edade a poesia é o amor dos filhos. Eu sofro muito, sofro, palavra d’honra. E se fosse um aneurisma, meu Deus!…

—Ahi, está V. Ex.a poetando com hypotheses de martyrio, simples achaques a que todos estamos sugeitos. Que diria então eu, que V. Ex.a vê na flôr da vida e na apparencia da mais radiosa saude? O meu estomago!

—E o meu, doutor, o meu?

—A condessinha Esther tem a paixão das begonias; a sr.a duqueza de Serpa adora os cães d’agua; a sr.a marqueza de Valle de Perdizes esculpe; a esposa do negociante Domingues trabalha em créches e premios de escolas. E cada uma faz d’estas predilecções a sua aureola de poesia, de que se circunda no mundo. V. Ex.a tem os seus soffrimentos. É uma compensação.

—Já vejo que está hoje peor, Conde! gritou ella para a meza do jogo onde quatro homens faziam whist, á luz d’uma serpentina. Um velho calvo e magro severamente abotoado e de bigodes altivos, ergueu-se respeitosamente e veiu junto de nós.

Por detraz dos oculos, luziam-lhe aguçadas as pupillas de miope: andava com ares magestosos de ministro, gesticulando sobriamente.

—Que é? disse elle firmando as mãos nos gomos do divan da condessa mãe.

—Pode fallar-me da sua pre-historia, porque o meu amigo doutor teima em satyrisar os meus padecimentos. Vamos, sente-se aqui.

—Mas a partida…

—O doutor vae substitui-lo, sim?

—E a condessa assim me desterra tão cruelmente!—Ella estendeu-me a mão dizendo:

—Será por pouco tempo.—Fui. Esther não viera ainda. As senhoras começavam a chegar em pequena gala, com bournous de casimira branca forrados a setim e pelles. Eram os convivas certos d’aquellas pequeninas soirées, tão intimas, tão aconchegadas e tão doces, que os ditos e excentricidades da condessinha animavam, e a rabeca de Zebedeu Kebler, israelita loiro como Jesus e tão casto como elle, enchia de fremitos extranhos e infinitas harmonias. Kebler adorava a condessinha com uma paixão supersticiosa e ardente. Estava sempre onde ella estava; em São Carlos, a sua cadeira era defronte da friza d’ella; apparecia nos bailes a que ella ia, melancholico e pallido, uma elegancia fina de gentleman; e nas conversações mais frivolas, em podendo, mettia, sem quasi dar por isso, o nome d’ella. Esther era trigueira e alta, de uma distincção unica e de uma elegancia sem rival. O esmalte dos seus dentes destacava fresquissimo no vermelho das gengivas, como um adereço rico num estojo de velludo cereja. Nada mais explendido que a linha do seu busto nervoso e cinzelado, e a redondeza das suas espaduas reaes, surgindo de espumas de renda na fervilhação opulenta dos bailes. Fui ter com o judeu. De pé, junto da banca de jogo, elle olhava sem vêr cousa alguma. Tomei-lhe o braço e fomos para o vão d’ uma janella. E antes que eu fallasse, elle disse:

—Já penetrei no mysterio.

—Qual?

—O da condessinha.

—Vamos a vêr como.

—Ella é muito supersticiosa. Não admira, sangue judeu…

—Sangue judeu! Ella?—Kebler baixou a voz e contou-me:

—Que certo vendedor de tamaras, freguez assiduo de uma hortaliceira, chegára a amar esta. Do amor dos dois, fermentou um garoto que se metteu cambista, d’onde mais tarde surgiu uma obesidade millionaria que um governo individado fez barão e par.

—Que perspicacia audaz empregou o meu amigo para saber tanto? Caramba!

—Ouça: implantada por esta fórma, a nobreza foi subindo de um grau de filho para filho. Até que um dia, o pae de Esther appareceu conde.

—A esposa era muito formosa então, para poder alcançar tudo. Seria duqueza até, se o houvesse querido, disse eu sorrindo.

—Lingua damnada!

—Adeante. É então supersticiosa, hein?

—Não imagina.

—Eis o meio de sustar-lhe a golfada de sarcasmos de que ás vezes nos cobre. Em ella me ferindo, quebro um espelho da sala, verá. Mas vamos ao mysterio. Creio que foi mysterio, que disse.

—Foi. Esther teve uma grande paixão!

—Como a da hortaliceira gollegã, sua avó, pelo vendedor de tamara e sabonetes. Fermentou alguma cousa de?…

—Olhe que me zango sériamente, e fica sem saber nada.

—Está bem; estou já calado.

—Uma paixão fatal! Amou…

—Essa reticencia traz um padre ou um trintanario.

—Infelizmente. Amou um primo, doutor em theologia, que já dissera missa.

—Bem dizia eu!

—Dizem que bella figura.

—Não me custa a crêr, pois que o affirma. E o primo amou a prima? Sacrilegio no ultimo acto, suicidio ao cahir do panno. Adivinhei?

—Quasi. O primo era um homem digno; além disso não chegou a saber toda a verdade da bocca d’ella. Desconfiou apenas que era amado e fugiu para as missões do ultramar.

—Oh incomparavel levita! Eu não fugia para tão longe. E ella?

—Ella jurou que não amaria mais ninguem na vida.

—E como não lhe fosse permittido professar…

—Não seja leviano. Esther adora as begonias, como sabe.

—Paixão que acarreta ao meu amigo uma despesa séria. Cada dia lhe traz uma especie nova, numa corbeille admiravel.

—Essa adoração tem a seguinte historia. Á hora da partida o missionario mandou á condessinha num vaso da China, uma explendida begonia rex-isis, especie do mais bello effeito decorativo. É um vaso amplo, de figurinhas em relevo e pequenas azas de oiro, representando dragões engalfinhados.

—Conheço bem essa preciosidade! Vale a olhos fechados cem libras. E depois?

—A begonia durou pouco. A estufa para onde a transportaram, e a convivencia das mais plantas abreviaram-lhe os dias. Já entrou na estufa da condessinha?

—Muitas vezes. O vaso está ao centro, sobre um pequeno pedestal de marmore branco e debaixo de uma redoma de crystal em gomos.

—É isso, com a begonia sêcca.

—Tal qual! Muitas vezes perguntei á condessinha a historia d’aquelle esqueleto de planta. E agora me lembro—ella ficava triste e suspirava. Era a theologia do primo adorado.

—Hontem vim visitá-las de manhã. Trazia-lhes um euforbio raro do Mexico, que os francezes chamavam Poinsettie, exemplar soberbo. Conhece?

—Dos livros. A minha clinica modesta não me permitte dispender sem proveito o que elle custa. Folhas oblongas bordadas de verde, envernisado e vivo. Centro canario raiado de verduras sanguineas. Envolvendo as flôres, uma corôa de grandes bracteas ovaes, do tamanho de folhas, e do mais bello escarlate, dando o effeito duma grande flôr. Uma opulencia, em resumo.

—Pois bem. Eu mesmo fui collocá-lo na estufa, permissão graciosa da condessinha.

—Os perfumes aphrodisiacos perturbaram os sentidos de ambos e… amor do judeu das tamaras com a…

—Mau!

—Está bom: curvo a cabeça. Venha o resto.

—Quando nos achámos na estufa e em meio das folhas de mil desenhos que alli ha, ella tomando-me as mãos, disse-me commovida:

—Como hei-de eu agradecer a sua sollicitude, Zebedeu?

—Ella disse: Zebedeu?

—Disse.

—Meio caminho andado, então. Mais dois minutos, e tinha-a pendurada no pescoço. Que gata, essa trigueira tentadora!…

—Eu nem podia fallar!

—Oh castidade loira de vinte annos!

—E apertava-me tanto as mãos…

—Sim? Depois, um beijo… ou dois… ou tres…

—Falle com franqueza, disse-me ella. O senhor ama-me.—Eu estava a tremer como um poltrão.—Ouça, tornou Esther; fiz um juramento.

—Qual? perguntei em voz baixa.

—Que não amaria ninguem mais. A não ser…

—A não ser?…

—Que aquelle vaso de pedestal apparecesse em pedaços um dia, sem ninguem lhe tocar.

—Mas isso é impossivel.

—Então veja se posso amá-lo. Ella estava tão triste!… Talvez não creia: chorei!—Callamo-nos, porque n’aquelle instante, uma voz fresca deu uma risadinha á porta, e as senhoras correram para uma rapariga de branco, que vinha entrando. Era Esther.

—Zebedeu Kebler, meu incomparavel artista, um pouco da sua rabeca, disse ella em voz alta, antes de beijar ninguem.

—Bom sinal! resmunguei ao pobre rapaz.

O judeu deixou-me logo, alegre por ser lembrado, e foi abrir o estojo do instrumento.

—Que ridiculos são estes sentimentos! pensava eu. Apertam-lhes as mãos n’uma estufa e a sós, muito e muito, e desatam a chorar. Grandissimo tolo! Não o pode amar? Fez ella muito bem. Amar um homem que em logar de cobrir de beijos uma mulher lindissima que se rende, fica a tremer, seria uma vergonha: apre! Fui ter com a condessa, enfastiado e murmurando:

—Fosse a cousa commigo…

No dia seguinte, tinha eu acabado a consulta quando chegou Kebler.

—Vem acabar-me a historia de hontem?

—Venho sollicitar a sua presteza de atirador.

—Chegou o theologo? desafiou então um ministro do altar? Barbaro! Cruel! Desalmado!

—Qual! Tenho um projecto.

—Acceite este charuto, aqui tem lumes, sente-se e conte-me o projecto.

—O alvo do irmão de Esther fica perto da estufa; pois não fica?

—Creio que sim.

—O senhor vae alli exercitar-se muitas vezes, segundo me disse o Alvaro.

—Vou.

—Ouça. Eu levanto um caixilho da estufa…

—Mas é preciso a chave que abre todos esses caixilhos. Talvez não pensasse em tal?

—Tenho-a aqui; roubei-a agora mesmo. Posso guardá-la por estes dias. O tempo está chuvoso e frio, de modo que não ventilarão a estufa por agora.

—Então?

—Aberto o caixilho, o senhor fingindo apontar ao alvo, aponta ao vaso da China e…

—O senhor ganha o premio, e eu fico a chuchar o dedo.

—Que? Ama a condessinha?

—Eu amo toda a gente; que diabo!…

—Estou esperando a sua resposta.

—Que eu parta aquelle vaso da China porque daria tudo? Está louco!

—Olhe para mim. Se o não fizer…

—Dá um tiro no craneo; dá?

—Qual! fico solteiro toda a vida.

—Bem, essa simplicidade enternece-me. Esteja amanhã aberto o caixilho, e a bala esmigalhará o vaso. Mas como entra o senhor no jardim?

—Saltando o muro que o separa da casa em que habito.

—O senhor é o diabo.

—Se a adoro!

Na noite seguinte, havia reunião em casa da condessa. Os grupos das mais noites. Ao fundo do salão, a banca de whist, onde o cultor da pre-historia se notava de lunetas altas, sob que as pupillas fuzilavam. No divan amarello, a condessa queixando-se-me da falta de apetite e de tosse sêcca. Esther radiosa, no meio das suas amigas. Zebedeu Kebler muito pallido e muitissimo preoccupado, ferindo de um modo inteiramente magistral as cordas da rabeca.

—Meus senhores, disse a condessa em voz alta, erguendo-se. Tenho a honra de lhes annunciar o casamento de minha filha Esther com o senhor Zebedeu Kebler.

Ouviu-se o estalido de uma corda de rabeca, subitamente quebrada. O conde das lunetas erguera-se, aprumando a alta estatura. Esther confessava ruborisada que… Deus o queria. Tinha apparecido em pedaços o vaso da China, sem que lhe tocassem. E de mais amava aquelle rapaz, tão elegante e tão distincto, de cujo braço seria um encanto pender coroada de flôres de larangeira.

—És meu padrinho! disse-me com um abraço de reconhecimento, o judeu.

—Já agora… respondi.

O meu presente nupcial, foi um vaso chinez inteiramente igual ao que apparecera esmigalhado. Crescia n’elle um hibiscus do Japão, trepadeira da mais rendilhada contextura, folhas exoticas e flôres em grinaldas.

—Eis porque eu daria tudo pelo vaso quebrado, disse a Kebler, com uma vaga saudade de amador. Se o conseguisse adquirir, completaria o mais bello par europeu. Guardem esse vaso no logar do pobre esmigalhado, e que elle seja o talisman de um amôr, fecundo em bébés de olhos azues, menos romanesco que o amôr do primo, e mais durador por isso mesmo.

Um frou-frou de saias fez-me voltar a cabeça; á porta, a cabecinha de Esther assomára curiosa, e os seus dentinhos brancos de gata contente brilhavam, sorrindo de um modo encantador.

Nunca fui piegas, palavra de honra—mas inda hoje tenho calafrios pensando nos dentes d’aquella mulher.(Voltar ao Conteúdo)