Otio Barreiros:—Óra os senhores vão imaginar talvez que eu tenho para lhes contar a historia d’algum tio illustre, muito respeitavel na sua gravidade de conselheiro… Ou ainda d’algum general com o peito cheio de condecorações, fartos bigodes brancos, respirando nobreza e altivez… Nada d’isso. Era um simples e humilde criado de lavoura, de cara rapada, com uns olhos d’um azul luminoso, o tio Antonio Barreiros.
Encantador o costume patriarchal de viverem as crianças com antigos criados, quasi da familia, que ellas se acostumam a amar sem o respeito que enfastia, mas tambem sem a desagradavel auctoridade sobre essas velhas cabeças embranquecidas, sempre inclinadas para os mais pequeninos, os ultimos…
Por isso, o tio Barreiros é uma das figuras mais sympathicas que na minha memoria sorri.
Para criado de lavoura entrou elle em casa, já velho; pouco podia, o pobresito! Muito corcovado, o fato de saragoça grosseira, o chapéo braguez um pau na mão—quasi nos pareceu um mendigo.
Mas não; tinha seus brios o tio Antonio. Trabalhava como um rapaz; rejuvenescia, coitado!
Um risonho ar philosophal dava-lhe á face uma certa finura aristocratica. E contava-nos:—«Que eu, meninos, dizem que sou filho do Deão de Decermillo. Mas que monta?… Fui pastor em rapazelho; depois entrei para criado dos fidalgos de S. Thiago e por lá estive até que me casei. Bons tempos, bons tempos!…»
—«E depois, tio Barreiros?»
Uma lagrima diluia-se no azul dos seus olhos finos.
—«Depois, depois… A mulher morreu para alli, negrinha das bexigas, que foi uma dôr d’alma!»
—…«A rapariga, essa… Já depois de grande, um dia morreu tambem, que nem eu sei de quê!… Agora, a minha familia são os meninos, cá esta casa. Isto é como se fosse meu, pela amizade que lhes criei…»
A nota melancolica da conversa desapparecia por completo do nosso espirito para só avultar aquella estranha palavra:—Deão!—Que seria aquillo?… Talvez uma coisa escarlate franjada a oiro, como os guiões, que levavam uns pobres homens derreados, na procissão do Corpo de Deus!
E o velho Barreiros, com tal probabilidade de pae, avultava aos nossos olhos prodigiosamente, tornava-se quasi divino, n’um hieratico esplendor de festa religiosa.
Por fim, o pobre velho já não se atrevia a sahir ás propriedades de fóra—honestamente pediu que lhe baixassem a soldada, que elle ficava só para tratar da horta. E ás tardes, n’aquelles poentes tristissimos das regiões montanhosas, nós passeavamos sob a parreira da horta: elle de sacho na mão, parando de quando em quando a apanhar uma folha velha das enormes couves, que só elle fazia crescer espantosamente. Nunca mais vi couves assim! Talvez por ser eu muito pequena, tudo me parecesse grande; talvez porque o tio Barreiros tivesse receita especial para as fazer crescer!…—«Que isto, meninos, as criadas não devem pôr mão na horta. Uma desgraça, decepam tudo, uma estragação!»
Claro; nós eramos sempre pelo velho contra ellas.
—«Lá em casa dos fidalgos, havia couves ainda mais altas do que estas!…»—
—«Mais altas, tio Barreiros?!…»
Que grande coisa ser fidalgo!—pensava. Até a horta se resentia de tamanha altura heraldica!
Ah tio Barreiros, tio Barreiros, que loucuras risonhas nos mettia na cabeça a vossa bastardia fidalga! Que saudades, meu amigo!…
Uma vez—ha quanto tempo isso vae!—mal começava a aprender a ler, por premio assignaram-me um jornal, que devia vir directamente para mim.
Esperava n’uma febre a chegada do carteiro; e nada do jornal apparecer, para o meu nome, como eu sonhava noite e dia!… Desabafava com o tio Antonio, aquillo parecia-nos historia…—«Mas o papá pagou isso, menina?»
—«Pagou, tio Antonio, para vir para o meu nome.»
—«Pois olhe que foi no que elle andou mal. Nunca fiar!…»
E lá esperavamos, consternados, mais vinte e quatro horas. Mas um dia soube-se:—o jornal tinha vindo logo, mas, como eu tivesse n’uma terra proxima uma tia com o mesmo nome, os empregados do correio vá de lh’o remetterem. Eu, muito queixosa, fui ter com o Barreiros ao quintal. Elle indignou-se:
—«Vou já lá de caminho. Não, que uma coisa assim!… Nem que a minha ama nova não soubesse já lêr, não fosse capaz de ter um jornal!» Era uma injuria para nós ambos. E eu ficava consolada, vendo-o atravessar o pateo, seguido das gallinhas, gallos, perús, marrecos, com o ganso pae á frente—o Caetano—como lhe chamavamos.
E elle lá ia com toda a pressa que as suas velhas pernas lhe permittiam—um casaco que lhe tinham dado, arrastando na frente e muito curto atraz, tão dobrado andava elle, o pobresito, a pender para a terra!..
E o caso é que fez um discurso no correio. Mas por fim discutimos:—«Menina, o melhor é mudar de nome. Olhe que hade haver sempre enganos!»
E esta coisa de haver enganos—tocou-me. Toda a vida a não receber os meus jornaes…
—«Pois está dito, tio Antonio! É o melhor.» E assim foi.
Mas o velho começou a enfraquecer. De dia para dia o corpo se lhe dobrava mais para a cova. Já pouco comia, sustentava-se de vinho e marmellada, nada mais.
E n’um inverno muito rude, em que a neve cahiu mais a miudo e de manhã a agua dos tanques apparecia gelada—o tio Antonio Barreiros apanhou uma tossita; levantava-se tarde, já não ia com o sacho para a horta…
Sentiamos que o seu espirito, risonhamente infantil, já andava longe, n’um meio sonho, quasi desligado da terra…
Fallava na mulher, fallava na filha, com uma grande serenidade e um redobramento d’affecto—como quem pensava em as encontrar breve. Depois olhava-nos com uma tal saudade…
E n’uma fria manhã d’inverno, voltado para a parede, embrulhado na manta de riscas, elle appareceu serenamente adormecido para sempre. A sua bocca ironica eternamente risonha; fechados os olhos azues d’uma graça aristocratica… O seu perfil accentuado, desenhava-se muito nitido na brancura da parede. As glycineas, despidas de folhas, mettiam os braços hirtos pela abertura da janella, n’uma ultima despedida ao velho amigo que as tinha plantado… E elle dormindo na manhã brumosa, sem responder ao nosso chamamento!…
E que falta elle fazia, á noite, na ceia dos criados, contando historias, oh! lindas historias de feiticeiras e lobishomens—de que o velho se ria, um poucochinho sceptico, vamos lá!…—Guerras que elle vira, dramas de familia a que tinha assistido, trovoadas no meio da serra a quando pastor… Ah! tudo isso nos fazia muita falta, muita falta!… E nunca mais nós esqueceremos o tio Barreiros, dormindo socegadamente junto dos patrões, que primeiro nos tinham deixado.
Junho de 96.