Na pallidez do poente, d’um azul cinzento, a igreja destacava-se em negro na elegancia da sua torre manuelina.
Em baixo, o largo era todo em festa; as luzes começavam a accender-se, pondo aqui e alli sorrisos d’oiro.
Olhando a massa sombria do convento, uma vaga tristeza me ganhou o espirito. Lá em cima, na pequena janella gradeada, quantos lindos olhos terão chorado, vendo o mundo com o tumultuar das suas paixões e risos, alindado pela ignorancia das suas almas prisioneiras?!…
Por mais artistico e lindo que seja um convento de frades, não me faz sonhar como os de freiras. Se eu comprehendo tão bem o martyrio das pobres almas femininas encerradas duplamente pelas grades e pela ignorancia!…
As que fugiram do mundo, porque n’elle soffreram, essas não me fazem tanta pena—tinham para companheira da sua soledade a doçura amarga das lagrimas, que recordam venturas idas…
Mas, pobres entes muitas vezes votados antes de nascer á frieza claustral, arrepia-se-me a carne só em pensar nas victimas inconscientes d’esses sacrificios barbaros!
Conta-se que aos quatro annos Santa Margarida d’Hungria tomou habito, tendo ido para o convento ainda com a ama. Aos seis trazia cilicios e aos doze professava—«já fadada para santa tinha vindo» accrescenta o chronista.
Mas as outras, que fossem mulheres verdadeiras, de carne e nervos e sangue a palpitar vida sadia e humana!… Ah, essas pobres plantas criadas em subterraneos, cahiriam estioladas na frescura dos annos. Então—sem mesmo serem choradas—iriam para a terra resgatar a mocidade em perfume de flores… Outras, affazendo-se á solidão, vivendo na phantasmagoria luminosa do flos sanctorum, iriam de degrau em degrau á loucura santificada. E, mortas tambem, seriam adoradas sobre os altares…
Não sei que doçura tristissima encontra o meu espirito em visitar os conventos de freiras, em piedosa romaria evocativa!
Aquelle de que eu mais gosto pela belleza da sua architectura rendilhada, acontece ser hoje um hospital servido por irmãs de caridade. Ao ver passar ao fundo do claustro deserto a mancha negra dos seus habitos, não sei que lufada d’outro tempo me enche a alma de sombras!
Calcando essas lages desiguaes, onde tantos corações arquejantes de fé foram descançar para sempre, uma historia me lembrou, que alguem, que alli viveu trinta annos, piedosamente me contava:
—Era quasi noite; o céo de purpura, onde o sol agonisava, esbatia-se gradualmente, vindo morrer n’um loiro cendrado, confundindo-se com a lua que se levantava em crescente. Duas freiras das mais novas passeavam pelo claustro, onde, já do seu tempo, tantas esposas do Senhor tinham ido esconder a face macerada, dormindo o eterno somno.
Que diriam ellas, assim juntas, na hora das dôces confidencias, deslizando como sombras no silencio religioso do velho claustro?… Que maguas viriam subindo da memoria longinqua dos seus amores mundanos?… Que sorrisos e que lagrimas?!…
Uma disse:—«Cheira tanto a terra!»—«Breve estarás com ella!…»—Respondeu-lhe uma voz formidavel vinda do chão, vinda da noite, das grandes casas desertas!…
E o caso é que a pobre freira entrou d’entristecer, de cahir n’uma grande e incuravel doença d’alma, que em poucos dias a levou para o supremo descanço, fazendo certa a prophecia.
Ainda este convento tinha a belleza incolume das suas columnas em marmore, a alegria dos grandes dormitorios cheios de luz, o encanto do côro todo em azulejos e atufado d’imagens santas.
Mas, outro lá para a Beira, onde eu estive uns dias, escuro, enorme, sem belleza nenhuma, pezando sobre a nossa alma com a bruta espessura das suas paredes mestras… Ah, n’esse, como seria horrivel viver!
Apenas lá encontrei duas freiras. Uma, a prioreza,—santa senhora!—alma lavada, riso franco, uma encantadora ingenuidade no seu virgem coração d’oitenta annos. A outra, sombria, um olhar por vezes desvairado a fuzilar sob a brancura da toalha de linho, que lhe emmoldurava o rosto opalescido. Relativamente nova para ser freira professa ao tempo que acabaram os conventos, fez-me curiosidade. Perguntei á prioreza, e ella, a santa velhinha,—morreu o outro dia… que pena tive!—ella contou-me tudo:
—«É que soror Maria fôra mettida no convento aos quatro annos. Para que o morgado ficasse livre d’encargos? Promessa de paes muito piedosos? Não se sabia.
Mas a ella não a tinha Deus fadado para santa! O seu coração, nascido para viver, nunca se podera aclimatar áquella existencia de mortos.
Aos quinze annos, os parentes obrigaram-na a entrar para o noviciado. A ordem das bentas não reformadas, não era apertada, ao menos…
Pelas grades das janellas via-se a pequena cidade rumorejante e activa como uma colmeia.
E a gentil noviça tinha prendido os olhos aos olhos d’um lindo moço, que de fóra a contemplava em extasi…
Á noite, nos outeiros sentimentaes, a conversa corria alegre e facil como a agua clara que desce das montanhas. Que duvida? Se elles eram novos e os seus espiritos tinham tenteado o espaço que os separava, decerto que se haviam de amar!…
Depois, o eterno drama dos amôres contrariados:—espiões, todos os olhos que a fitavam; criadas compradas; a familia insistindo cada vez mais pela profissão…
Já vagamente se fallava em liberdade. Da França vinham flammulas de luz. O namorado pedia-lhe que resistisse… o governo miguelista seria vencido em breve. Era a sua esperança! E então, ninguem a poderia obrigar a ser freira, ninguem se opporia a que ella sahisse, noiva feliz, da prisão fanatica.
Ah! fallar cedo de mais, meu pobresito, é um grande perigo!…
Desappareceu o namorado e a triste da noviça deixou de resistir á vontade dos paes.
Já quando no sul os liberaes entravam, cantando a victoria que os atordoava a ponto de quasi duvidarem, d’inesperada que foi,—tomava ella o habito á pressa, tudo arranjado pela familia, tumultuariamente, temendo de a verem sahir.
Mas não. Com a morte do seu namorado tudo morrera n’ella! Sempre silenciosa, aquillo que alli estava!…
Desde esse dia, olhava com um romantico interesse, procurava a antiga belleza d’esse rosto marmoreo, amortalhado em vida, o capuz do habito cortado em bico sobre a testa, os labios cerrados n’um silencio desesperador…
Parece-me ainda estar a vê-la, no côro, na reza da noite, emquanto a bôa prioreza—acompanhada por duas meninas com vélas na mão—ia lendo o seu latim e apagando as luzes uma a uma!… Soror Maria abstrahia-se da vida presente e a sua alma parecia voar para um mundo de recordações e sonhos tragicos…
A um canto, com o lencinho branco das recolhidas, eu seguia o officio funebre da prioreza, nos olhos desolados da triste monja.
Depois de lhe saber a historia, dediquei-lhe um grande affecto, que os meus labios jámais lhe confessaram, atemorisados por um não sei quê d’altivo que havia na sua dôr! São mais eloquentes, mais verdadeiros, os discursos que um delicado pudôr espiritual apenas nos deixa balbuciar com os olhos. Nunca ella comprehendeu esse affecto—porque, almas despedaçadas como a sua, já nada comprehendem nos sentimentos alheios!…
O que ha de triste no meio de tudo, é que o quebrar das cadeias tambem acarretou comsigo muitas e pungentes lagrimas. Companheiras insubstituidas, deixando um vazio de morte nos casarões sombrios… As cercas tiradas pelo governo… A miseria, a fome mesmo… Quanta tristeza na alma devastada das ultimas freiras!…
E as festas d’este novo mundo, vistas das janellas gradeadas, seriam bem pouco comprehendidas por ellas!
No largo, em frente do convento onde a minha pobre Soror Maria soffreu, fizeram barulhentas toiradas cheias de pó e gritos selvagens, espectaculo que dá, a certos espiritos delicados, a mais frigida impressão de tristeza! Vendo esse divertimento todo material, podia ella sequer recordar, lá em cima da janella gradeada, os combates de poesia a que a sua mocidade assistira e onde o seu coração ficára tão mortalmente ferido?!…
E assim, se alguma freira de Jesus se levantasse da cova e arrastando o seu habito de franciscana fosse á ultima janella espreitar o largo—que diria ella ao ver os balões em linhas caprichosas, esboçando phantasticos desenhos de luz na escuridão da noite?…
E o povo passando em onda, em chusma, por entre a alegria clara dos vestidos femininos…
Que diriam ellas, que diriam?!…
Julho de 96.