Certamente a mais ninguem acontece ter como eu um medo atroz, um respeito fetichista, pelo correio.
Um comboio que passa, com a sua cabelleira ao vento; os seus gritos agudos, o seu tamtam monotono, não me traz á ideia a alegria descuidosa dos que partem para recreadas viagens, não! Eu penso que n’aquella caixinha, estreita como um esquife, vae amortalhado muito coração, vae muita lagrima alastrada em tinta, levar a todos os cantos do mundo a magua que a fez sangrar.
Muita alegria diz tambem aquella pequena chapa com sete lettras a preto… Diz certamente; mas não a alegria sã e completa dos felizes que não teem ausentes! Quanta saudade de mãe amargurada, que ao deitar a sua carta na caixa sentirá a mesma impressão dilacerante de lançar com ella o coração!… Quanto conselho de pae, martelado a soluços!… Quanto desespero de namorada confiando ao acaso das viagens o seu pobre amôr feito em frangalhos!… Quanta tristeza n’uma phrase em que se pergunta pelo anjinho, que se viu nascer e que longe cresce e se faz sabio, sem que os nossos olhos o envolvam de caricias!… Quanto beijo dado no vacuo; quantos braços estendidos a pedir soccorro, cahindo inertes sem ter que abraçar! Quanta mentira, quanto desespero, quanta saudade!… Tudo isto passa pelo meu espirito annuviado, dando-me a gelida impressão de temôr!
Até os pobres carteiros, cuja miseria reclama esportula, teem um modo auctoritario de bater ás nossas portas. Queiras ou não queiras, ahi te vae a carta de preto que faz refluir todo o sangue ao coração, a phrase crúa que despedaça amizades, o rendilhado fementido ] d’um affecto que sentimos morto.
Sobre uma carta encontrada, toda uma vida se pode refazer; desenhar justamente um caracter; ter quasi palpavel, diante dos nossos olhos, a figura sorridente ou lacrimosa, enthusiasta ou fria, resignada ou inquieta, que ao papel confiou as suas impressões. Mas nenhuma como esta, que uma piedade estranha roubou á bruta indifferença d’um pae, dá a flagrancia d’uma alma.
Por delicadissima offerta de quem sente a vida como eu a sinto e comprehende como eu comprehendo a amargura dos que soffrem, ella me chegou ás mãos, tal qual a vou copiar:
—«*** (Bretagne) le 8 Fevrier 1892.
Cher Père
Je rèponds a ta lettre reçu le 2 Fevrier nous sommes en très bonne santé nous désirons que toi il en soit de même. Nous avons reçu avec beaucoup de plaisir les details de ta situation soit sur le passée comme sur le prèsent. Je s’ai que tu n’est pas en peine pour diriger tous les travaux comme ils se font en France. Pour faire la cuisine tu n’est pas noice l’on doit être content d’avoir un aussi bon cuisinier que toi surtout pour lapin et lievre. Avec 3 jambons et du lard tu en a là pour prépare beaucoup des liévres.
Je pense que tu dois boire du vin j’ai entendu dire qu’on recolté du vin très renommé. Je suis très satisfaite que tu ai fait toutes ces emplettes car elles sont bien utiles. Mais maintenant que tu as toustes vètements nécessaires, puis qu’il y a beau coup du gibier cela doit servir pour une bonne parti de ta nourriture alors une personne seule avec le gage que tu gagne si j’etais a ta place il me semble que je tacherai moyen de mettre un peu d’argent de côté car si plutard tu en avant besoin tu aurai là ce qu’il te faudrai car l’argent ne nuie jamais, je ne pense pas. Cher père de te fâche quoique je te donne ce petit conseil mais tu s’ai l’argent est bien utile sans cela ou ne peut rien faire. Comme tu me dis que tu as acheté une couverture de laine dans ta prochaine lettre tu me dira si tu a un appartement ou tu fait ta cuisine et si tu couche dans un lit tu me l’expliquera. Tu connais donc le roi du Portugal? ce serait un grand honneur pour toi si Sa Magésté venait chasser avec toi ainsi que tu me le dit mais je crois que tu ma dit cela pour me faire rire mais peut être il n’y a pas beaucoup des chasseurs en Portugal. Fait-on la chasse aux macreuses comme ici toi qui aime tant cette chasse lá tu n’en parle pas. Comme tu me parle de la mer vois-tu la Mer Méditerranée ou l’Ocean Atlantique? Tu me dira aussi si tu parle Français ou Portugais. Tache moyen de conserver ta bonne place et du commerce ne m’en parle pas car c’est le commerce qui nous a occasionné tous nos grands malheurs. J’ai a te dire qu’il y a appeine un an que j’ai commencé un petit jardin dans la cour du cellier je vai t’en donner un aperçu a partir du portail jusqu’au 1.er figuier j’ai fait une palissade, lá j’ai planté 3 rangs d’arbres fruitiers, j’ai fait un petit chemin qui fait le tour des arbres, et j’ai fait des anglaises, lá j’ai planté tout éspeces de fleurs ce serait trop long pour te dire tous les noms des fleurs que j’ai planté, tout cet été qui s’ai les fleurs que j’ai eu pour porter á l’Eglise. J’y ai mis aussi des fraisiers, des grosselliers, des souches pour faire grimper en un mot rien n’y manque que d’avoir un puits. Comme je ne sort jamais pour aller en promenade je vai passer beaucoup des moments a voir mes plants les arroser lui enlever les mauvaises herbes et cela me distrait beaucoup. Depuis le mois de Novembre mon jardin est plein de violettes. Le climat du Portugal doit être plus chaud qu’ici il ne doit sans doute pas tombé de neige, mais pour nous il fait un hiver pluvieuse nous n’avons seulement pas eu le vent du nord nous voyons la neige sur les montagnes mais il ne fait pas froid. Si tu ne peux pas ecrire pour la fin des mois jusqu’au mois d’Avril ou Mai c’est trop loin tu peux ecrire vers le millieu de Mars le plustard. J’ai donnè des nouvelles a ma Tante e mon Cousin. Ton ami Gilbert vient a la maison de temps en temps il nous demande toujours de tes nouvelles car il t’aime bien mais Gilbert a été bien éprouvé comme nous, tu peux penser comme il est desolé il y a plus d’un an qu’il a pérdu sa pauvre fille.
Je termine ma lettre cher père en t’embrassant du fond du cœur ma mère et moi.
Ta fille—Celeste ***
Quand même je te parle de Gilbert n’y écrit pas tant a lui comme a d’autres personnes avec moi il y en a assez.»
Com os seus erros d’orthographia e a sua completa ignorancia de grammatica, com a maneira simples, natural e humana de dizer o que sente, é a mais delicada, a mais dôce, a mais sentida nota que uma obscura alma de rapariga tem feito resoar no meu coração.
Como ella se desvanece, primeiro, com os talentos culinarios do Cher Père. Depois vem o seu instincto economico de petite mére, a dar tão bons conselhos ao pae de má cabeça—que parece elle foi…
O espanto da pobre rapariga, o orgulho que sorri entre duvidas, de que, elle conheça Sa Magesté!… Perdida n’um cantinho da Bretanha, na sua grande França republicana, essa ideia será para ella qualquer coisa de grandioso e vago como os radiosos contos de princezas e fadas de que a sua infancia foi entretecida.
Nem tu sabes, touquinha branca d’azas engommadas, como o sol do pequenino paiz onde teu pae refaz a sua fortuna desbaratada, engrandece os humildes e banalisa os grandes!
Ignorante Gaud d’olhos côr da flôr do linho, pondo com grande esforço de memoria a pena nos dentes, a consultar a sabedoria da escola: vois tu la Mer Mediterranée ou l’Océan Atlantique?
O grande Atlantico, minha querida!—a vastidão do mar que deu ao insignificante paiz, que mal te lembras de vêr no mappa, a vastidão dos continentes novos!…
Vem depois o horror ao commercio, como um rebate d’incendio… Comprehendo o teu medo, o teu grande desgosto, pobresita! Estou a vêr a tua casa muito arranjadinha, com o «leito á moda da cidade», os teus fatos ricos a fazer inveja,—a bella herdeira que tu eras, a chamar pretendentes!… E d’um instante para o outro, tudo desfeito, como um sonho de criança! Sim tremer, tremer das más cabeças, no commercio. Le pauvre cher Père!…
Vem aligeirar a carta a linda descripção do jardim, que ficou o seu luxo, a consolação dos dias tristes passados com a velha mãe a lembrar o ausente—fugitivo, criminoso talvez?!…
O adoravel perfume, tão fresco das suas arvores de fructo!… E os ramos de flôres tão variadas que seria longo ennumerar, como na sua melancholica egreja devem dizer bem, no altar de Nossa Senhora! Mas o poço que falta lhe faz, á paciente jardineira!
Parece que toda a carta ficou impregnada d’esse aroma honesto de violetas, que desde novembro enchem o paraizo da voluntaria reclusa.
A vaga impressão de sol que lhe suggere o clima de Portugal… Como teria ella aqui formosas flôres para cultivar!
Abre-se deante dos nossos olhos a serenidade da sua vida desfeita e conformada, lendo esta singela carta toda sahida do coração; o amigo Gilbert visitando a familia, e tão triste, elle tambem, com a morte da pobre filha!…
Leva-lhe, Céleste, ao seu coval de virgem, braçadas das tuas flores tão queridas! Leva-lh’as. E será melhor pedires á boa amiga que te deixou, um logar ao seu lado, na pacificação do vosso cemiterio raso. Com o teu coração, Céleste, que farás tu n’este mundo de lama e oiro, pobre querida?!… Pede—aconselho-t’o eu—á filha do teu amigo Gilbert um logarsinho doce onde te deites socegadamente, com a touca engommada pela ultima vez, o teu vestido dos dias felizes, os sapatinhos que nunca terão uso. É o melhor que tens a fazer, se não queres o teu coração gelado pela indifferença alheia, como a neve que nas montanhas alveja deante dos teus olhos sonhadores.
O susto em que vives, sympathica desconhecida, que eu comprehendo e amo. Nem o teu amigo Gilbert, nem esse mesmo deve saber ao certo onde pára o filho prodigo!
Que despedaçadores martyrios e desgostos; que mortificantes saudades curtidas longe!…
Setembro de 96