Algarve era o seu nome. Tinha nos olhos leaes uma tal expressão de bondade, que inspirava logo confiança aos timidos, aos pobres, ás criancinhas.
Era muito distincto, com seu ar de grande senhor dos tempos passados. Ao atravessar o corredor para vir deitar-se aos meus pés, dir-se-hia um velho diplomata acostumado ás etiquetas palacianas.
Não fazia barulho; apparecia junto de nós como uma sombra. Nunca lhe vi aquella alegria ruidosa que faz bem ver, mesmo nos cães. Era silencioso, meigo, taciturno—como se uma saudade ou um remorso lhe pesasse na alma.
Ás vezes, quando a dormir, tinha sonhos afflictivos, gemia baixinho, com estremecimentos bruscos em todo o corpo—como se quizesse lançar-se n’uma corrida para salvar alguem que visse em perigo…
Todas as tardes sahia. Fechava-se-lhe a porta, saltava pela janella. Era a unica occasião em que mostrava a energia da sua vontade decidida e teimosa. Voltava ás dez horas, impassivel e sereno, tal qual como se tivesse ido ao club fazer dois dedos de conversa.
Um dia quiz segui-lo; presentiu-me e veiu ter commigo fazendo-me festas, como a pedir que voltasse para traz. Não quiz comprehender e elle então acompanhou-me disfarçadamente, algum tempo, e logo que me viu distrahida fugiu a bom correr.
E ás dez horas, inalteravelmente, voltava, sereno e grave, como homem elegante que atira o charuto e descalça a luva da mão direita, antes d’entrar em casa.
Mas—coitadinho!—era já muito velho e a sua mocidade parece ter sido um tanto aventurosa. Á mão me veiu elle ter, já cansado, quasi sem dentes, o pello a cahir.
Nos olhos do pobre Algarve queria eu ler toda a sua historia. E, quem sabe, talvez que me não engane muito contando o que li, tudo o que adivinhei nos olhos bons do meu pobre amigo—que um genio altivo e independente levou a uma triste morte.
Veria pela primeira vez a luz n’um paiz branco, todo branco de neve. Grandes montanhas, d’uma transparencia ligeiramente rosada quando o sol muito pallido as illumina, avançam lentamente, n’um deslizar de fadas em doce ronda nocturna… e lenta, mas seguramente, caminham para o seu fim—o grande leito amargo do Oceano.
Muitos navios vinham todos os annos á pesca; então, lembrava-se de ver homens que, de quando em quando, vinham a terra e tristissimamente iam depositar o corpo d’um companheiro, no cemiterio branco picado de cruzinhas negras que lá em cima se via… E a mãe, uma famosa cadella preta de pello luzidio ligeiramente ondeado, acostumára-o a seguir aquelles cortejos funebres, com respeito, quasi com magua…
Depois, ao primeiro annuncio do inverno, os navios fugiam, como as andorinhas vôam ligeiras para a dôce paz dos seus ninhos de lá baixo—andorinhas aventureiras que todos os annos voltam, mas á custa de quantos sacrificios! Quantos ficarão perdidos por esse mar sem fim! E esses homens rudes, que tanto e tanto trabalham por um pedaço de pão, seriam a melhor lembrança do meu pobre Algarve…
Quando maior, levaram-no um dia esses mesmos pescadores que elle se habituára a amar e a seguir humildemente. E então foi uma vida de sobresaltos e perigos, passada sobre as quatro tabuas d’um navio, tal qual um velho marinheiro muito affeito a perigos e tempestades.
D’um naufragio se salvou, salvando o capitão. Appareceu não sei como em Setubal. Depois, de mão em mão, chegou á minha.
Que nostalgia profunda a do seu olhar, quando se fitava n’essa bahia etherealmente e incomparavelmente azul! Com quanta saudade elle recordaria esses mares tão differentes, por onde a sua mocidade se passeára, sobre a tolda dos navios?!…
Nas longuissimas tardes de maio, sempre as mesmas, sempre doiradas e tepidas, eu gostava de me ir com elle até á praia. Alli, na aureola d’oiro fulvo com que o céo santifica o mar, ficava-me sonhando, os olhos fitos no pharol do Outão, que era um ponto mais brilhante na gloria do poente.
Oh! as lindas tardes, as lindas manhãs, as lindas paysagens que nós contemplâmos em extasi; veem-nos passar com a mesma serena indefferença e assim continuarão a encantar os homens na sua rapida passagem pela terra. E mais rapida ainda a d’esses pobres animaes tão intelligentes, tão bons, tão dedicados—e que tão poucos d’entre nós teem alma para comprehender e amar!
Uma noite o Algarve não appareceu ás dez horas regulamentares. Um palpite de tristeza me annuviou o espirito… Faltou essa noite e faltou em todas d’ahi em deante. Um bebedo tinha-se posto deante do seu caminho, n’uma estupida e humana graça. O cão voltou, para seguir por outra rua, e o homem, n’uma selvageria que envergonhava o animal, agarrou-o, entre as gargalhadas dos espectadores que da taverna proxima assistiam ao espectaculo—que na verdade devia ser d’uma infinita graça! O cão filou-o rijamente, sacudiu-o com os dentes e passou.
Mas a injustiça e o odio dos homens torna-os mais ferozes do que os proprios animaes. A alma—se homens como aquelle a teem—apenas lhes serve para mais conscientemente fazerem o mal.
Ao outro dia o meu pobre Algarve tinha desapparecido para sempre, levado para a suprema ignominia da sepultura dos cães vadios.
Junho de 97.