Quem o via, embrulhado em flanellas, apoiando-se a um grosso bambú, sorumbatico, fugindo a todo o convivio, apparecendo só de longe com a mulher e filhitos, procurando as estradas desertas para passear, tudo sujeitando á hygiene,—decerto nunca imaginaria que a sua lucida intelligencia de subtil penetração e réplica prompta nas mais intricadas questões cahiria n’aquelle phantasmagorico sonho de grandezas, que o levou á cella d’um hospital de alienados.

Jurisconsulto erudito, advogado eloquente e cuidadoso, tinha sempre que fazer; mas são poucos os lucros n’uma terra onde a propriedade está accumulada em meia duzia de felizes e só os pobres se mettem com justiças.

Vivia modestamente, n’um grande orgulho de trabalhador. Não queria favores de ninguem. Se tivesse muito, muito daria; pedir, nunca!…

E, subito, de volta d’uma estação d’aguas, eis que elle muda completamente. Luxo, passeios, viagens, projectos de compras, tantos e taes, descriptos com tal apparencia de logica, com tão ardente enthusiasmo de phrase, que chegava—não a convencer-nos da realidade de taes sonhos, mas a fazer nos viver na hallucinante miragem em que o seu espirito se perdia.

Depois que, no regresso da villegiatura, vira representar o Hamlet, apaixonára-se pela loira e ideal Ophelia, por essa pallida figura tão intensamente dramatica na sua passividade de amorosa, tão angelicamente resignada e feminil, que é já uma forma palpavel do ideal… Verdadeiras e dignas de piedade as suas lagrimas—symbolisando todas as que no mundo teem vertido olhos de tristes despresados.

E o sympathico doutor, um bom, um sincero, um sentimental, apaixonára-se por essa irmã da sua alma, que vae desfolhando as niveas flores do seu dôce amôr, cedo queimado pela ingratidão.

A crueza de Hamlet resgatou-a elle, levantando no seu coração de romantico um templo auriluzente onde a incensava com a myrrha do seu talento, que a loucura, parece, exacerbára, requintára, fazendo-o subir ás etherias regiões onde as mais solidas cabeças sentem vertigens!…

Todas as mulheres passaram a ser para elle suaves Ophelias; n’ellas via a amada, o seu puro ideal; adorava-as como se essa adoração fosse ainda uma homenagem rendida á dama dos seus pensamentos—alma de cavalleiro trovadoresco, vencendo emfim a gelida couraça da materialidade burgueza.

A medicina, o amôr e o delirio das grandezas eram as suas ideias fixas. E então—vendo uma loira e anemica rapariga de silencioso porte, obrigava-a a beber aguas de Vidago e gritava com grandes braçadas enthusiastas: «beba, beba, que eu hei-de fazer d’um pastel de nata um pastel de carne!…» Logo respondia irado a um primo, que, por troça, aconselhava uns tamancos e passeios pelas serras como remedio mais efficaz: «fallou o livro Caixa!… Uma estrella de tamancos!… É uma blasphemia sideral!…»

Tinha agudezas de ditos que nos punham em duvidas. Doido?!… Se isso podia ser, fallando elle tão prodigiosamente bem, encontrando com tanta facilidade a memoria da sua juventude!

A sua palavra quente, d’uma fluencia correntia e d’um enternecimento tão sincero que pelas lagrimas tinha arrancado muito perdão aos jurados commovidos—tomára um tom d’inspirado, quasi prophetico!

Doido, doido!?… E que seriamos nós, que o não comprehendiamos? A imperceptivel linha que separa o juizo da loucura tremia diante da nossa duvida.

Os seus pobres nervos exacerbados estalavam em ditos faiscantes, desfaziam-se em lagrimas, espalhavam o seu immenso talento em estilhaços—e apezar d’isso tão brilhante!—como aerolithos, atravessando a deprimente vida provinciana. Fazia-nos uma atmosphera de sonho, de desvairamento e d’exotismo; que a terriola já parecia—una casa de locos sin locura!…

Elle, que só por muito favor pegava d’antes no violão, recordava agora todas as antigas musicas com uma revivescencia da sua vida bohemia d’estudante. Cantava, com a mesma alegria da mocidade, a triumphal recita do quinto anno.

Fazia pena ver o pobre violão dobrar-se todo para gemer trechos de musica já passados de moda ha mais de vinte annos. E mais pena ainda ve-lo tão alegre, d’essa alegria que tanta vontade de chorar nos causa!

Ia ao cemiterio conversar com a mãe—affirmava. Narrava, em voz estrangulada, extraordinarias coisas que, parece, ella lhe dizia baixinho… Essa familiaridade com o desconhecido fazia errar em torno de nós as sombras dos bons mortos… uma nevoa revoluteante de estranhos sonhos…

Que as cabeças não andavam lá muito seguras, não!…

Quando o levaram para o hospital, despediu-se radiante—certo de que ia ser o director, projectando grandes reformas e esperando encontrar lá a sua pallida Ophelia, absorvida n’um delicioso sonho feito de sorrisos de noivos e de camelias idas na corrente de luar…

Com os seus cabellos fluctuantes, as suas mãos translucidas desfolhando flores, arrastando as alvinitentes vestes—ella o aguardava…

Assim se extinguiu aquelle brilhantissimo espirito! Assim ficou silenciosa aquella eloquentissima voz, que fazia repuxar lagrimas aos olhos dos mais ferozes julgadores! Assim morreu aquelle coração de romanticos arrebatamentos, naufragando na banalidade ultima da vida material!

Setembro de 96.