I.

A grande montanha de Colisa, que se ergue entre as Encartações2 de Biscaya, e a demarcação juridica de Castella, era na edade media uma especie de Thebaida, onde faziam vida penitente alguns anachoretas, aos quaes se attribue a edificação do santuario que a corôa.

Sendo eu creança, e caminhando com minha piedosa mãe por uma montanha das Encartações, paramos a descançar, ao descobrir o valle onde habitavamos.

Era por uma tarde aprazivel de verão. O sol escondia-se por detraz dos montes, que recortavam o horisonte, e nas quebradas das serras ouviam-se os chocalhos do gado, que descia ao valle; em baixo, na planicie, saíam as raparigas das herdades, e pondo á cabeça as suas bilhas, dirigiam-se, cantado, á fonte do Castanhal, para que seus paes e irmãos achassem em casa agua fresca, quando, ao soar o toque da oração, lançando ao hombro as enxadas, e resando as Ave-Marias, se encaminhassem para o logar.

Do cimo do outeiro coberto de fragrantes margaridas, brancas de neve, onde minha mãe e eu estavamos sentados, contemplando o nosso querido e formoso valle, em um de cujos extremos avistavamos, meia occulta por frondoso arvoredo, a nossa aldeia ainda mais querida e saudosa, descobria-se o santuario de Colisa.

Entramos a fallar d’aquella ermida, e minha mãe, que tinha uma fé santa e cega nas tradicções religiosas, que brotam e vivem á sombra dos santuarios das montanhas, sem que possam os seculos alterar-lhes o viço e a frescura, prendeu-me a attenção, e commoveu-me devéras a alma contando-me o que, a meu turno, vou contar-vos.

Vivia nas solidões de Colisa um santo ancião, chamado Cosme, que passava uma terça parte da sua existencia entregue á adoração e glorificação de Deus, e o restante guiando e soccorrendo os viajantes, que atravessavam aquellas montanhas; e isto pela razão de que, n’aquelle tempo, como as guerras de partidos ensanguentassem de contínuo os valles, fugiam d’elles os caminhantes, e transitavam pelos montes mais desertos, e afastados do commercio dos homens.

Sempre que Cosme soccorria algum viandante extraviado, ou extenuado de fome e cansaço, ao soar o toque de Trindades na egreja de Valmaseda, que se avistava lá em baixo, no pé da montanha, apparecia-lhe um anjo, que lhe sorria amorosamente, e que logo se remontava ao ceu, deixando-o immerso em mystica alegria.

Um dia, de manhã, estando os montes cobertos de mui densa névoa, saíu Cosme da miseravel choça, onde vivia vida penitente, e poz-se a divagar por aquelles bosques espessos e fragosos, a vêr se encontrava alguns caminhantes, que n’elles se houvessem extraviado, e, de repente, deu de cara com uns poucos de homens, que levavam outro manietado.

—Porque vae preso esse infeliz? lhes perguntou elle.

—Porque é um grande criminoso, a quem a justiça condemnou á morte, lhe responderam.

—Quem as faz paga-as, disse o anachoreta, dando tregoas á sua compaixão.

Os executores da justiça de Valmaseda detiveram-se mais acima, n’uma encrusilhada, pegaram n’um grande madeiro secco, que, havia muitos annos, estava estendido ao lado do caminho, fixaram as extremidades d’esse madeiro secco nos primeiros galhos de duas arvores parallelas, lançaram um laço ao pescoço do criminoso, e suspenderam-n’o d’aquella forca improvisada, voltando a Valmaseda apenas se certificaram de que elle tinha expirado.

2 Encartaciones, as terras de Biscaya, que gosam de fóros e regalias especiaes.

 

II.

N’esse mesmo dia em que, por sentença do tribunal de Valmaseda, foi enforcado um grande criminoso, no caminho de Colisa, salvou Cosme da morte muitos viandantes, que, sem o seu auxilio, seriam devorados pelas féras, ou se teriam despenhado nos precipicios d’aquelles temerosos desvios, então mais temerosos do que nunca, por causa da espessura do nevoeiro.

Recolheu-se á sua morada, agradecendo a Deus o haver-lhe dado forças para soccorrer os seus irmãos, e, apenas chegou, feriu-lhe o ouvido o toque da oração, que soou, lento e solemne, na longinqua torre da egreja de Valmaseda.—O anjo porém não lhe appareceu n’aquella noite!

O santo ermitão encheu-se de terror, com a lembrança de que teria offendido a Deus, visto que o anjo se furtava aos seus olhos; mas por mais que pesou as palavras,  que proferira, as suas obras e pensamentos de todo o dia, não lhe foi possivel atinar com o agastamento do Senhor.

Aquella noite passsou-a toda em continua oração; chorou, macerou o corpo, pediu a Deus perdão e misericordia para as suas faltas, e logo que raiou a aurora, como a montanha se conservasse coberta de d’espessa névoa, saíu em auxilio dos caminhantes.

De repente achou-se na encrusilhada, e ao vêr diante de si a forca, da qual pendia ainda o cadaver do criminoso, justiçado no dia antecedente, recuou cheio de repugnancia e movido d’espanto; e levantando a vista acima do cadaver, que estava preso da corda, viu o anjo poisado no madeiro da forca.

O anjo, longe de lhe sorrir então amorosamente, como de costume, olhava-o com semblante severo e carregado.

Cosme parou; e com quanto ignorasse qual fosse a sua culpa, lançou-se de joelhos, sobresaltado e cheio de terror, ergueu as mãos para o anjo, e implorou perdão e misericordia.

—Cosme! disse-lhe então o anjo, incorreste no desagrado do Senhor e precisas fazer grande penitencia para recuperar a sua protecção. Hontem, em vez de confortar e consolar o desgraçado, que está pendente d’esta forca, escarneceste-o, e olhaste com indifferença para a sua tribulação. Desprende o seu cadaver da forca, sepulta-o em sagrado, e lançando em seguida esse madeiro aos hombros, leva-o pelo mundo, e seja elle o unico travesseiro, em que descances a cabeça.

—E poderei eu ainda um dia obter o perdão da minha culpa? exclamou Cosme lavado em pranto de arrependimento.

—Sim, lhe tornou o anjo. Quando d’esse madeiro brotar um ramo verde, é que o Senhor te perdoou.

Dito isto, subiu o anjo ao ceu, cercado de musicas mysteriosas e de brilhantes resplendores.

Cosme acercou-se animosamente do cadaver suspenso da forca, desprendeu-o e deu-lhe sepultura; pegando em seguida no madeiro, cujos extremos se apoiavam nos primeiros galhos de duas arvores fronteiras,  foi com elle aos hombros pelo mundo, segundo as indicações, que o anjo lhe havia dado.

 

III.

Andava Cosme pelo mundo com o madeiro da forca ao hombro, e toda a gente o escarnecia e fugia d’elle horrorisada.

Uma noite, tendo perdido a esperança d’encontrar asylo entre os homens, penetrou n’um bosque, esperando encontral-o no meio das féras, e vendo uma luzinha atravez da espessura, encaminhou-se para ella, e deu comsigo á porta d’uma cabana, onde uma velhinha dormitava, junto do lume.

—Santinha, disse elle á velha, com voz supplicante, deixe-me, pelo amor de Deus, passar aqui esta noite.

—Não póde ser, lhe tornou a velha, porque tenho dois filhos, que são bandidos, e que devem chegar dentro d’uma hora;  se aqui o encontrassem, com certeza o matavam.

Cosme confiava piamente na promessa, que o anjo lhe tinha feito de que o senhor lhe perdoaria, e como visse que o madeiro da forca não tinha signaes, que indicassem que estava para rebentar, d’onde se deprehendia que vinha ainda longe o momento da sua morte, insistiu em pedir á velha que lhe désse pousada, no que ella, por ultimo, conveiu, esperando conseguir dos filhos que o não assassinassem.

Estava Cosme exhausto de forças e, retirando-se para um canto da choupana, poisou no chão o madeiro da forca, e deitou sobre elle a cabeça.

Condoida a velha de o vêr descançar em travesseiro tão duro, offereceu-lhe um feixe de cheirosa herva do monte, mas Cosme o recusou, dizendo:—offendi o Senhor, dizendo a um criminoso a quem levavam á forca: «quem as faz, paga-as», e para que o Senhor me perdôe, vou pelo mundo carregado com este madeiro, que deve ser o unico descanço da minha cabeça, até que d’elle brote um ramo verde, que será o signal de que o Senhor me perdoou.»

—Ai! exclamou a velha, rompendo n’um choro inconsolavel, se é tão difficil para quem se arrepende e unicamente peccou por palavras o alcançar o perdão do Senhor, quanto o não será para esses infelizes, que, como os meus filhos, peccam todos os dias por palavras e obras, e não têm no coração um vislumbre sequer do arrependimento.

O ancião adormeceu com a cabeça deitada no madeiro da forca.

Uma hora depois, chegaram os bandidos, e ao verem-n’o, arrancaram dos punhaes para o assassinar.

A mãe, porém, contou-lhes a historia d’aquelle ancião, e pediu-lhes de joelhos que, longe de o matarem, se arrependessem, como elle, das suas enormes culpas.

—Pois bem, perdôe-se-lhe a vida, responderam os bandidos, fazendo entrar os punhaes na bainha, e accrescentaram, soltando uma gargalhada d’escarneo:

—Quanto ao arrependimento, havemos de o ter quando brotar o tal ramo verde d’esse madeiro secco.

Principiaram os bandidos a cêar. Quando acabaram, dirigiram a vista para o canto da cabana onde dormia o velho, e viram, com assombro, que do madeiro secco tinha brotado um ramo verde e mimoso! Romperam então em amargo pranto, rogando a Deus que lhes perdoasse as suas culpas.

Ao som de taes vozes acordou Cosme, e ao vêr que do madeiro secco tinha brotado uma vergontea verde e louçã, expirou de alegria; e o anjo baixou, sorrindo amorosamente, a tomar conta da sua alma, e a leval-a comsigo para o ceu.