A Maria Lucilla.
Em dezembro, ás seis é noite cerrada. Mais boccado, menos boccado, a essa hora recolhia do monte o José Gaio, sósinho, sachola ao hombro, um pouco atarantado com a trovoada que rugia ao longe, em surdina. Por cima d’elle, o céo ia-se fazendo cada vez mais negro, d’essa negrura espessa de tempestade que infunde pavôr á gente, e da qual os proprios passaros teem medo. Cessara de chover. Mas o vento do sul principiava agora, agitando os grandes ramos despidos dos castanheiros, fazendo-os murmurar não sei que extranha elegia… A um relampago mais vivo, o José Gaio apressou o passo, e, benzendo-se, rezou a Magnificat. O trovão chegou, depois, lugubre, cavernoso, alastrando-se em roldões na larga amplitude do céo. Debaixo dos pés, o José Gaio sentia o caminho lamacento, encharcado das enxurradas valentes de todo o dia. Mas a ponte já não ficava longe. Depois, a ladeira, e no meio da ladeira a casa.
―Vamo’ lá com Deus! fazia elle animando se.
Um clarão subito de relampago deslumbrou-o. Deante d’elle surgiu de repente a paizagem, e de repente desappareceu, feericamente illuminada. Deitou então a correr, aterrado; mas tão forte veio em seguida o trovão, que elle instinctivamente parou e levou ao céo as mãos afflictas, n’um gesto de quem implora misericordia. N’aquella imminencia de perigo as proprias arvores lhe pareciam immobilisadas pelo terror, á beira do caminho. E atravez dos castanhaes, o surdo rumor do vento era como a voz implorativa da natureza, unindo-se á voz d’elle n’um longo côro de supplicas…
O José Gaio ia transido. Mas peor ficou quando de repente, sem saber d’onde, alguem chamou por elle, lugubremente:
―Ó José Gaio!
O homem parou. E como perto d’elle apenas enxergasse os braços da cruz negra, que era o signal de alli terem matado o José Tendeiro, ha annos, apertou o passo e tomou por um atalho, direito á ponte. Mas então a mesma voz tornou-lhe mais de perto:
―Ó José Gaio!
Quiz fugir, mas o medo parece que lhe tolhia as pernas. N’isto veio um relampago que illuminou a mil côres a paizagem. Elle cerrou os olhos com força, nervosamente, ferido por aquelle deslumbramento que por milagre o não prostrou. E quando o trovão bramiu, rudemente, uma immobilidade de estatua prendia o camponez á terra. Foi então que veio de novo aquella voz, como um prolongamento do trovão:
―Ó José Gaio!
Ia avançar para ganhar a ponte. Parecia-lhe que, uma vez transposta, galgaria a ladeira n’um instante. Mas involuntariamente, cedendo a uma força violentissima, entrou de retroceder, cambaleando. Aquelle rugir da agua que logo abaixo da ponte fazia cachão, rugir violento mas monotono, infundiu-lhe um grande pavor. Teve medo e deixou-se retroceder… Senão quando, estacou ouvindo a mesma voz:
―Ó José Gaio!
E logo atraz da voz, com um rastro, um intensissimo relampago côr de sangue. Viu tudo vermelho, afogueado, tudo menos aquella cruz preta de longos braços, sempre abertos e sempre firmes, que pareciam desafiar a tempestade…
Aquella serenidade da cruz estonteou-o. Dir-se-hia que esse nobre exemplo de altivez vinha agora humilhar mais a sua fraqueza. Desviou os olhos e cerrou violentamente as palpebras. Mas em vão! que fôra tão vivo o deslumbramento, e tanto lhe ferira o cerebro, que n’um fundo côr de sangue, como n’um transparente de magica, elle via nitidamente desenhada, sempre firme e sempre altiva, a cruz que o estonteara. Então deram-lhe impetos de fugir; uma onda de coragem parecia dilatar-lhe o peito impellindo-o. Precisamente n’esse momento, a voz tornou a chamar:
―Ó José Gaio!
Sentiu-se alquebrado, transido até ao mais intimo do seu ser. Um longo desfallecimento invadiu-o todo, quebrando-lhe a ultima fibra de energia, como se quebra um vime secco. Aquella paralysia atacou-lhe tambem o cerebro: não formava um só raciocinio nem elaborava sequer uma idéa, a mais simples. E foi preciso um grande trovão para todo elle tremer, abalado como a propria terra. Depois, outro relampago fez reviver n’elle a vida do espirito; sentiu um grande pavôr áquelle aspecto subito do campo que deante d’elle se perdia de vista, afogueado como se estivesse todo em chammas. Aqui, um pinhal, uma ermida além, para toda a banda casaes, surgiam de repente, nitidos nos seus contornos, definidos maravilhosamente nas suas attitudes. As grandes arvores despidas, sobretudo, tinham um ar phantastico, n’essa pureza nitida de recorte que traçava na luz as sinuosidades mais delicadas dos troncos e ramarias. No meio d’este scenario de magica, a um tempo magestoso e tetrico, o triste camponez sentia-se apavorado, jactitante e quasi inerte, alli chumbado á terra, hirto como a cruz que tinha deante. E nem um só gesto implorativo, e nem uma só palavra de supplica lhe sahia dos labios crispados. Porque uma vez que tentára uma palavra, o mais formidavel trovão cortara-lh’a na primeira syllaba. Depois, aquella voz não o largava, imperturbavel e monotona:
―Ó José Gaio!
E elle, não respondendo nem fallando, pensava esconjural-a, exorcismal-a como se fosse a voz d’um duende. E para esta evocação do sobrenatural muito concorria, como os senhores comprehendem, esse aspecto sereno da cruz negra, inabalavel sob a aza agitada da procella.
N’isto veio a chuva, em grossas gottas a principio, em cordas d’agua depois. Ella varejava-o inclemente, impellida agora por um vento sul furioso. Não deu um passo para procurar um abrigo, não se mexeu sequer. Como todo elle ardia em febre, aquelle diluvio era quasi um celeste beneficio para a sua cabeça n’um vulcão. Mas quando os relampagos vieram, aquella reverberação da luz nas cordas d’agua fez-lhe um deslumbramento mais forte. E cahiu inerte sobre o caminho lamacento por onde a agua escorria impetuosa, ao mesmo tempo que a voz do costume, sobrelevando o trovão, repetia do lado da cruz:
―Ó José Gaio!
Cobarde, sujo como um sapo, encharcado até aos ossos, como cahiu assim ficou―de bôrco. Depois, quando abriu os olhos, na larga poça onde quasi tinha a cara, via reflectir-se a cruz, a cada relampago. Ella lá estava no seu posto, altiva, serena, intemerata, recta como um exemplo… E pois que parara o diluvio, dos seus braços abertos as gottas da chuva cahiam, vermelhas á luz, como grossas lagrimas de sangue…
Cobarde! Nenhuma comparação póde dar idéa do estado de prostração d’esse miseravel, reduzido pelo terror a uma quasi inacção de besta morta. Dir-se-hia um immundo trapo alli cahido, abandonado alli na lama ignobil de um caminho, á espera da enxurrada que o levasse… Era abjecto!… E emquanto esse animal assim jazia, atordoado, como boi que uma malhoada prostrou, ao fundo do horizonte, para sul, o encastellamento phantastico das grandes nuvens plumbeas, listradas de negro e roxo, metralhando com furia o largo espaço, aos quatro ventos, era tudo quanto o nosso espirito póde conceber de mais grandioso e de mais sublime, epico e tragico a um tempo, soberbo, magestoso, imponente.
Mas a voz sempre a ouvia, por cima do vento e por cima dos trovões, aquella voz:
―Ó José Gaio!
Assim largo tempo, horas talvez. O torpor do frio aggravava-lhe o outro, o do medo. Parecia colado á lama, preso ao caminho como se fosse uma rocha. No emtanto, a espaços, tinha a comprehensão clara da sua posição e do seu estado. E então uma raiva subita galvanisava-o: queria erguer-se, fugir, desapparecer―erguer-se como aquella cruz, fugir como aquelle vento, desapparecer como esses relampagos, que nem deixam rastro na treva…
Taes rebates de coragem eram, porém, ephemeros, impotentes para lhe provocarem um movimento. Aquelle diabo tinha de morrer alli, miseravelmente, ignobilmente, como um cão a que houvessem amputado as quatro pernas. E esta idéa, que o instincto de viver lhe suggeriu, apavorou-o ainda mais que a propria tempestade. Morrer alli! Mas que duvida, se ninguem lhe vinha acudir, se não passava por alli viv’alma, a taes deshoras! Era horrivel! No meio de um caminho, n’uma noite medonha de tempestade, ao pé d’aquella cruz negra de longos braços hirtos―morrer alli!… Eram então já por elle as lagrimas que essa cruz parecia chorar?…
Estava n’isto, quando n’um silencio de acaso ouviu passos a distancia. Vinha gente. Quem quer que era tinha de passar por alli, de tropeçar n’elle, talvez. Subitamente, sentiu-se reviver. Estava salvo. Em breve estaria de pé,―de pé como essa cruz que um relampago muito vivo acabava de lhe mostrar… No emtanto, a voz é que se não importava:
―Ó José Gaio!
Mas os passos vinham-se chegando; e então, como se receasse que o calcassem, reuniu n’um supremo esforço as maximas energias, e rebolou-se para um lado, até ficar detraz d’umas urzes. Coisa notavel foi, senhores, que esse miseravel em vez de gritar calou-se, e todo se recolheu n’uma absoluta quietação, com medo que o surprehendessem… E quem quer que era passou, cabeça nua, deante da cruz gottejante… Aos ouvidos do miseravel chegou um como murmurio de prece… Não ia só a rezar; ia tambem chorando, aquelle homem…
…Quem seria?
Um clarão branco de relampago fez irromper da treva, livido como um espectro, o filho do José Tendeiro…
O desgraçado ia a chorar pelo pae, alli assassinado havia annos, por uma noite como aquella…
Passou, ladeira abaixo, na direcção da velha ponte. Só aquelle cobarde não se mexeu, prostrado sobre as urzes, quasi arrumado á cruz.
E assim esteve horas e horas, até que, noite velha, cessou a tempestade, perdida n’um murmurio longiquo, lá na extrema fimbria do horizonte… Quando a lua rompeu, livida n’um céo de anil, nem a grande sombra da cruz, incidindo sobre aquelle corpo, como um beijo ou uma benção, logrou reanimal-o. Tinha morrido, o estafermo!
Ao outro dia, está claro, foram lá os da justiça. O velho abbade foi depois, buscar o corpo. Os medicos nem lhe tinham mexido.
―Sangue pelos olhos, sangue pela bocca, sangue pelo nariz, uma congestão muito linda―dissera um a rir.
―E muito mal empregada―fizera o outro do lado, indifferente.
Mas quando os da maca disseram a um tempo―Upa!―esse bom velho do abbade cahiu de joelhos deante da cruz, n’uma convulsão agudissima de choro. E elevando ao céo as mãos mirradas―ao céo que um divino azul fazia diaphano―elle exclamou, soluçando:
―Senhor! Senhor! a vossa justiça é tremenda, como é infinita a vossa misericordia!
…Segredo de confissão…―mas o abbade bem sabia quem tinha alli matado o José Tendeiro…