O senhor Saval, a quem em Mantes chamam «o tio Saval», acaba de se levantar. É um triste dia de Outono: caem as folhas. Caem lentamente à chuva, como se fossem uma outra chuva mais espessa e mais lenta. O senhor Saval não está alegre. Anda da lareira para a janela e da janela para a lareira. A vida tem dias sombrios. Para ele, agora, só terá dias sombrios, porque tem setenta e dois anos! Está sozinho, solteirão, sem ninguém à sua volta. Como é triste morrer assim, tão só, sem qualquer afecto dedicado!
Pensa na sua existência tão nua, tão vazia. Recorda no antigo passado, no passado da sua infância, a casa, a casa com os seus pais; depois o colégio, as saídas, os seus tempos de Direito em Paris.
Depois a doença e a morte do pai.
Voltou para viver com a mãe. Viveram os dois, o jovem e a velha senhora, pacificamente, sem quaisquer ambições. Ela morreu também. Como a vida é triste!
Ficou só. E agora, por sua vez, não tardará a morrer. Irá desaparecer, e tudo acabará. Deixará de haver um senhor Saval neste mundo. Que coisa horrível! Outros haverá que irão vivendo, amando, rindo. Sim, outros haverá a divertir-se, mas ele, ele já não existirá! É estranho que alguém possa rir, divertir-se, estar alegre e ao mesmo tempo estar ciente daquela eterna certeza da morte. Se esta fosse apenas provável, ainda seria possível esperar; mas não, ela é inevitável, tão inevitável como a noite depois do dia.
Ainda se a sua vida tivesse sido bem preenchida! Se tivesse feito alguma coisa – se tivesse tido aventuras, grandes prazeres, êxitos, satisfações de toda a espécie… Mas não, nada. Não fizera nada, nunca fizera mais nada além de se levantar da cama, comer às mesmas horas e deitar-se. E assim chegara aos setenta e dois anos. Nem sequer se tinha casado, como os outros homens. Porquê? Sim, porque é que não se tinha casado? Teria sido possível, porque possuía alguns meios de fortuna. Terá sido porque não surgira uma ocasião? Talvez! Mas essas ocasiões somos nós que as criamos! Era um desleixado, era isso. O desleixo fora o seu grande mal, o seu defeito, o seu vício. Quantas pessoas falham na vida por desleixo! Há pessoas para quem é tão difícil levantar-se, mexer-se, tomar atitudes, falar, estudar os problemas…
Nem sequer fora amado. Nenhuma mulher dormira sobre o seu peito num completo abandono de amor. Não conhecia as angústias deliciosas da espera, o divino arrepio da mão apertada, o êxtase da paixão triunfante.
Que felicidade sobre-humana devia inundar-nos o coração quando os lábios se encontram pela primeira vez, quando o amplexo de quatro braços transforma num único ser, num ser soberanamente feliz, dois seres loucos um pelo outro!
O senhor Saval estava sentado, de pés junto do fogo, de roupão.
Na verdade a sua vida fora um fracasso, um completo fracasso. E, no entanto, tinha amado. Amara secretamente, dolorosamente e desleixadamente, como tudo o que fazia. Sim, amara a sua velha amiga, a senhora Sandres. Ah, se a tivesse conhecido em nova! Mas encontrara-a demasiado tarde, quando já era casada. A essa não teria dúvidas em pedi-la em casamento! E, no entanto, como ele a amara, sem tréguas, desde o primeiro dia!
Lembrava-se da sua emoção de cada vez que a via, das suas tristezas quando a deixava, das noites em que não conseguia adormecer a pensar nela.
De manhã acordava sempre um pouco menos apaixonado que à noite. Porque seria?
Como ela era bonita, dantes, como era graciosa, loira, de cabelo ondulado, amiga de rir! Sandres não era homem para ela. Ela tinha agora cinquenta e oito anos, e parecia feliz. Ah, se ela o tivesse amado naquele tempo, se ela o tivesse amado! E porque não haveria de amá-lo, a ele, Saval, já que a amava tanto?
Se ao menos ela tivesse adivinhado qualquer coisa… Será que não adivinhara nada, que não vira nada, que nunca entendera nada? Então que terá ela pensado? Se ele tivesse falado, que teria ela respondido?
E Saval interrogava-se acerca de mil outras coisas. Revivia a sua vida, procurava reunir uma multidão de pormenores.
Recordava todos os longos serões a jogar écarté em casa de Sandres, quando a mulher dele era nova e tão encantadora.
Recordava as coisas que ela lhe dissera, tons de voz que tinha nesses tempos, sorrisinhos mudos que traduziam tantos pensamentos.
Recordava os passeios que davam, a três, ao longo do Sena, os piqueniques, sempre ao domingo porque Sandres era empregado na subprefeitura. E de repente veio-lhe nítida à memória a lembrança de uma tarde que passara com ela numa pequena mata na margem do rio.
Tinham saído de manhã, levando as provisões embrulhadas. Era um dia intenso de Primavera, um daqueles dias inebriantes. Tudo cheira bem, tudo parece feliz. Os pássaros soltam gritos mais alegres e batem as asas mais depressa. Tinham comido no chão, à sombra dos salgueiros, muito perto da água entorpecida pelo sol. O ar era morno, cheio de aromas a seiva; bebiam-no deliciados. Que lindo dia aquele!
Depois do almoço Sandres adormecera deitado de barriga para o ar: «A melhor soneca da sua vida», disse ele ao acordar.
A senhora Sandres tinha tomado o braço de Saval e tinham ido passear os dois ao longo da margem.
Ela amparava-se nele. Ria e dizia: «Estou tonta, meu amigo, completamente tonta.» Ele olhava-a estremecendo até ao íntimo, sentindo-se empalidecer, temendo que os seus olhos fossem por demais ousados, que algum tremor da mão revelasse o seu segredo.
Ela enfeitara-se com uma coroa feita de ervas grandes e lírios aquáticos e perguntara-lhe: «Gosta de mim assim?»
Como ele não disse nada – porque não achara nada para responder, o que lhe apetecia era cair de joelhos – ela pusera-se a rir, com um riso descontente, atirando-lhe à cara isto: «Mas que animal! Ao menos fale!»
Ele quase desatara a chorar, sem encontrar mais uma vez uma única palavra para dizer.
Tudo aquilo lhe ocorria agora, tão nítido como no primeiro dia. Porque lhe teria ela dito aquilo:
«Mas que animal! Ao menos fale!»
E lembrou-se de como ela se apoiava ternamente nele. Ao passarem sob uma árvore baixa ele sentira a orelha dela encostada à sua cara e recuara bruscamente, com receio de que ela julgasse que aquele contacto era voluntário.
Quando ele dissera: «Não serão horas de voltar?», ela lançara-lhe um olhar esquisito. Não havia dúvidas, olhara para ele de uma maneira estranha. Não tinha pensado nisso na altura – e eis que se lembrava agora.
— Como quiser, meu amigo. Se está cansado, voltemos para trás.
E ele respondera:
— Não é que esteja cansado; mas se calhar Sandres já acordou.
E ela dissera encolhendo os ombros:
— Se receia que o meu marido tenha acordado, isso é diferente; regressemos!
No regresso permaneceu silenciosa; e já não se amparava no braço dele. Porquê?
Aquele «porquê?» nunca antes ele o tinha perguntado. Parecia-lhe agora descortinar algo que nunca tinha entendido.
Será que…?
O senhor Saval sentiu-se corar e levantou-se transtornado, como se trinta anos mais novo tivesse ouvido a senhora Sandres dizer-lhe: «Amo-o!»
Seria possível? Esta suspeita que acabava de lhe penetrar na alma torturava-o! Seria possível ele não ter visto, não ter adivinhado?
Oh, se aquilo era verdade, se ele tinha passado ao lado daquela felicidade sem a agarrar!
Pensou: Quero saber. Não posso ficar nesta dúvida. Quero saber!
E arranjou-se rapidamente, vestiu-se à pressa. Pensava: Tenho setenta e dois anos e ela tem cinquenta e oito; estou à vontade para lhe perguntar.
E saiu.
A casa de Sandres era do outro lado da rua, quase em frente da sua. Dirigiu-se para lá. A criadita veio abrir ao bater da aldraba.
Ficou espantada ao vê-lo tão cedo:
— Senhor Saval, já? Aconteceu algum acidente?
— Não, minha filha, mas vai dizer à tua patroa que eu gostava de lhe falar imediatamente.
— É que a senhora está a fazer a sua colecção de compotas de pêra para o Inverno e está ao forno; portanto, não está vestida.
— Sim, mas diga-lhe que é para um assunto muito importante.
A criadita foi para dentro e Saval pôs-se a andar pela sala em grandes passadas nervosas. No entanto, não se sentia embaraçado. Ah, ia perguntar-lhe aquilo como se lhe pedisse uma receita de cozinha. É que tinha setenta e dois anos!
A porta abriu-se e ela apareceu. Era agora uma mulher gorda, vasta e roliça, de faces cheias e riso sonoro. Vinha com as mãos afastadas do corpo e com as mangas arregaçadas nos braços nus, lambuzados de sumo açucarado. Perguntou inquieta:
— Que é que tem, meu amigo: estará doente?
Ele replicou:
— Não, minha cara amiga, mas quero perguntar-lhe uma coisa que tem para mim muita importância e que me tortura o coração. Promete que me responde com toda a franqueza?
Ela sorriu.
— Eu sou sempre franca. Diga.
— Aqui está. Eu amei-a desde o dia em que a vi. Teve noção disso?
Ela respondeu a rir, com qualquer coisa do tom de antigamente:
— Mas que animal! Bem vi isso desde o primeiro dia!
Saval pôs-se a tremer e gaguejou:
— A senhora sabia!… Então…
E calou-se.
Ela perguntou:
— Então o quê?
Ele replicou:
— Então… que é que pensava disso?… Que é que… que é que… que é que teria respondido?
Ela riu mais alto. Escorriam-lhe gotas de xarope das pontas dos dedos, que caíam no soalho.
— Eu? Mas o senhor não me perguntou nada. Não me cabia a mim fazer-lhe uma declaração!
Então ele deu um passo na direcção dela:
— Diga-me… diga-me… Lembra-se daquele dia em que Sandres adormeceu na erva depois do almoço… em que estivemos juntos lá, até à volta?…
Ficou à espera. Ela parara de rir e olhava-o nos olhos.
— É claro que me lembro.
Ele continuou a tremer:
— Bem… naquele dia… se eu tivesse sido… se eu tivesse sido… atrevido… que é que a senhora teria feito?
Ela tornou a sorrir como uma mulher feliz que não lamenta nada, e respondeu com franqueza, numa voz clara onde despontava a ironia:
— Teria cedido, meu amigo.
Depois virou costas e foi-se para as suas compotas.
Saval saiu para a rua, aterrado como depois de um desastre. Caminhava em grandes passadas debaixo de chuva, sempre a direito, descendo para o rio, sem pensar no destino. Quando chegou à margem virou à direita e continuou. Caminhou por muito tempo, como que impelido pelo instinto. As roupas estavam encharcadas, o chapéu deformado, mole como um farrapo, e escorria como um telhado. Continuava a andar, a andar sempre em frente. Foi dar ao lugar onde tinham almoçado no dia longínquo cuja memória lhe torturava o coração.
Então sentou-se sob as árvores nuas, e chorou.
(Novembro de 1883)