Achilles e Nestor

Em quanto no palacio do Rocio se representava a scena, a que assistiu o leitor, em uma casa, situada quasi no arrabalde, perto de Campo de Ourique, no qual trabalham ranchos de operarios sem repouso a levantar um acampamento militar para as tropas francezas, que Junot recolhe das provincias, e concentra na capital, iremos encontrar alguns dos personagens, que deixámos na Ponte de Asseca, n’aquella tempestuosa noite, que viu as proezas do sargento Cabrinha, a evasão de Paulo de Azevedo, e as artes diabolicas do astuto lavrador João da Ventosa.

Estava formoso o dia, mas quente. Nem um leve sopro de aragem meneava as cortinas de caça, que por detraz das quatro janellas da frontaria substituiam os modernos e elegantes stores. A casa, de um só andar, caiada de branco, pintada de verde claro em todas as portas, grades, hombreiras, e maineis respirava aceio e alegria. Um muro baixo rodeava o jardim, d’onde as rozas de trepar, as baunilhas, e outras plantas, subindo pelas paredes, vinham debruçar do espigão seus festões floridos e recendentes.

Um preto quasi anão, grosso, roliço, com a carapinha semeada de cans, indicio de provecta edade, e brincos de prata nas orelhas, acabava de varrer, gemendo e rosnando, os tres degraus de pedra, que desciam da porta da entrada para a viella quasi deserta.

No jardim a areia, fina e vermelha, das ruas, orladas de buxos recortados, rangia debaixo dos pés de duas pessoas, que passeavam, conversando em voz submissa. No angulo, que olhava para as terras, um mirante entrelaçado de caracoleiros e jasmins, offerecia em seus bancos de cortiça commodo assento aos que desejassem recrear a vista, espairecendo-a pelos largos horisontes, que d’alli se descobriam.

―Não perca o animo nas vesperas da victoria, senhor Manuel Coutinho! Lembre-se de quem é, e creia mais em si, e em nós… deixe-me ter tambem um momento de vaidade!… Deus ha de ser por este reino, e não ha de permittir…

O homem que proferia estas palavras era um velho de aprazivel aspecto, trajado em habitos ecclesiasticos, inculcando na phisionomia, na voz, e nas maneiras, a prudencia que dão os annos, e a experiencia do mundo unida á confiança e ao enthusiasmo sereno, que nascem do coração, que ardem com viveza aquecidos pelo calor de uma alma generosa, e que os gelos da edade nem amortecem, nem apagam.

O sorriso meigo e tranquillo, que lhe franzia os labios, contrastava de visivel modo com as sombras de profunda tristeza, que escureciam o rosto do amante de Leonor de Azevedo, e com a expressão de desalento retratada em suas feições abatidas.

Quem attentasse, todavia, com mais cuidado no semblante palido do mancebo, e sobre tudo no fulgor dos olhos, que despediam por vezes lampejos quasi sinistros, denunciando as intimas commoções, logo percebia, que, se um assomo repentino de duvida, ou desconforto podéra abalar por instantes a energia d’aquella forte vontade, depressa a reacção a havia de despertar do lethargo, e que pouco depois, em logar de ser necessario reanimal-a, todo o poder da persuasão seria pequeno para a conter dentro de limites razoaveis.

―Deus?!… exclamou Manuel Coutinho, respondendo á ultima phrase do ancião, e volvendo ao céu, limpido e azul, um olhar de amarga desesperação. Não se esqueceu Elle de nós? Não está com os inimigos do seu nome e da nossa liberdade?!…

―Não diga isso. Caia em si. Não vê que accusa a divina justiça? Deixe-a caminhar…

―Coxa e lenta como a dos homens?!… Senhor bispo! Sou moço e militar, desculpe-me, mas não posso supportar com paciencia christã o espectaculo de tantas miserias e de tantos crimes!… Fala na justiça de Deus?! Aonde estava ella, quando o Vigario de Christo, arrancado por mãos sacrilegas da sua cadeira, foi como seu divino Mestre arrastado de prisão em prisão, de opprobrio em opprobrio, por turbas de soldados á voz de Bonaparte?…

―Estava no Calvario, como no dia em que padeceu o Redemptor! Continue!

―Ah! E porque dorme ella, quando nações inteiras choram escravas o seu martyrio, e banhadas em sangue invocam a morte nos campos talados, nas cidades saqueadas, nos patibulos e nos carceres, a morte, unica esperança que lhes resta, depois de roubados os seus altares, de incendiadas as suas moradas, de infamadas suas esposas e filhas, e de dispersas como vil pó as cinzas de seus paes e de seus avós?!…

―Quem lhe diz, que dorme, e não que aguarda a sua hora? Quantos seculos durou a perseguição da egreja e a tyrannia dos Cesares?… E hoje, d’esse colosso romano, que assoberbava o mundo, o que sobrevive? Ruinas, memorias, e a cruz triumphante alçada no Vaticano!… Tranquillize-se, conforme-se, espere…

―Que espere!… Mas elles, os verdugos, os malvados, acaso esperam? Paulo de Azevedo, duas vezes salvo por nós, escapou por fim aos laços do infame Lagarde? Está no castello, bem sabe, e o conselho de guerra, que ha de julgal-o, tem sêde do seu sangue… Hoje, ámanhã, de uma hora para a outra, as balas de um pelotão!… Não tenho animo de o imaginar!… Vel-o morto, assassinado, e não poder valer-lhe!… E sua filha, a desgraçada, que já não tem lagrimas que verter, que sente a todos os instantes no coração o frio da morte, ameaçando o que mais ama e estremece n’este mundo?!… E hei de esperar?! Resignar-me! Deixal-o morrer?!…

―Ha de esperar, sim. Que remedio!… Paulo de Azevedo está em perigo, porém ainda não morreu…

―É verdade. Mas para o salvar?!…

―Havemos de empregar todas as nossas forças.

―Oh! accudiu o mancebo, cujo desespero rompeu por fim em dolorosa ironia. Hão de salval-o! Contam assaltar o castello, prender Junot, e colher Lagarde como um lobo no seu antro?!… Lagarde!… O auctor de todos os nossos infortunios!… ajuntou em voz cava e com terrivel expressão. Pelo menos esse não se rirá impune, festejando o ultimo suspiro da sua victima. Lagarde pertence-me. Sou o seu juiz, e a minha justiça não coxêa, nem dorme, como a da Providencia.

―Não blaspheme, e escute, se póde! Os dias da usurpação estão contados. Quem sabe! Ámanhã mesmo talvez troquemos o lucto da escravidão pelas galas…

―Sonho! Irrisão!… bradou Manuel Coutinho saccudindo com força o braço do seu interlocutor. Aonde estão os homens para isso? Bastaria o som de um tambor para os espantar, e Junot conhece-os. Cuida que dou fé ás proclamações e aos conciliabulos do Conselho Conservador? Becas, sotainas, velhos fracos, negociantes, e frades, que tremem da sua sombra, ousarão nunca medir-se com os soldados de Bonaparte em um combate?!… Senhor bispo de Malaca, se palavras e balas de papel matassem, então sim, mas!…

―Manuel Coutinho, a dor torna-o injusto. Essas becas e esses frades são mais fortes, do que os soldados em volta de suas bandeiras. Lembre-se de que puzemos a cabeça em cima do cepo, e de que estamos resignados a padecer!… Não esperava que o escarneo caísse da sua bôcca sobre nós! Aprende-se mais depressa a morrer com ruido no meio do fogo e dos alaridos de uma batalha, do que a aguardar o algoz sobre os degraus do cadafalso?… E ninguem sabe melhor se elle póde ferir, e se todos estamos decididos a jogar a cabeça n’esta partida… em que apostámos honra, bens, e vida pela patria…

―Sei, mas o povo cala-se e obedece. Lisboa chora e supporta. O reino…

―O reino accordou, e não torna a adormecer. Por isso lhe disse que estavamos nas vesperas da victoria…

―O reino accorda?! Mas eu ignoro tudo!… Senhor bispo de Malaca!… Compadeça-se da minha impaciencia. Bem vê! Estou quasi louco! Conte com o meu braço, com o meu sangue. Ha alguma esperança?…

―Ha mais do que esperanças, ha factos. Prepare-se! dentro em pouco o seu posto será nas fileiras de seus compatriotas, no exercito da independencia. Leia! Adore os designios profundos da Providencia.

Manuel Coutinho, arrancando-lhe quasi da mão o papel, que lhe offerecia, correu-o todo em um relance de olhos, e apenas o sentido lhe penetrou a intelligencia, o sangue em ondas affluiu ás faces, as pupillas faiscaram, e uma expressão de jubilo, e de enthusiasmo subito avivou-lhe as feições.

―O norte sublevado!… murmurava lendo, e detendo-se, como se julgasse impossivel o que lia. O Porto talvez levantado a esta hora! Traz-os-Montes e o Minho ámanhã, ou depois em armas!… Os inglezes em Cork, ou já no mar para desembarcarem!…

E o suor borbulhava-lhe na fronte, e a vista scintillante devorava cada lettra do escripto.

―Meu Deus! Se isto é sonho, ou delirio meu, fazei que nunca desperte d’elle.

―Então, filho, disse o bispo sorrindo-se com mansidão, ainda acha que a justiça divina coxêa, e dorme? Arrepende-se agora da sua pouca fé?! Pois bem! Já vê que as becas e as sotainas ainda valem alguma coisa. O milagre fez-se, e um bispo é quem ha de no Porto presidir, ao governo do reino restaurado. Sei-o de certeza.

―Seguiu-se uma pausa curta, durante a qual os olhos e as mãos do mancebo se elevaram ao céu em um gesto sublime de gratidão e de crença fervorosa. Depois a cabeça inclinou-se, a vista fitou-se no chão, os braços descaíram e duas lagrimas de dor e de alegria saltaram do coração, e correram vagarosas pelas faces.

O bispo contemplava o rosto do amante de Leonor de Azevedo, e traduzia com a perspicacia dos annos e da reflexão os signaes fugitivos da lucta das paixões.

Por fim venceu a razão. Manuel Coutinho, como se quebrasse de repente a prisão, que lhe paralyzava as faculdades, serenado o semblante, acabou de exhalar em um suspiro a maior oppressão, que lhe confrangia o peito.

―Fui temerario, senhor bispo. Falei mal de Deus e dos homens! Cegou-me o orgulho, e deixei-me arrastar pelas loucuras da tristeza. Desesperei da Providencia no momento em que ella nos accudia!…

―Só Deus é grande, filho! O que somos, e o que podem os nossos juizos falliveis em presença da sabedoria eterna?! Arrepende-se? É o essencial. Vamos ao que importa. Já viu D. Leonor?…

―Não! Faltou-me o valor. O que havia de dizer áquella infeliz, ferida de tantos golpes a um tempo?… A imagem do patibulo de seu pae, visão lugubre e incessante, segue-a por toda a parte. Nos seus olhos leio o desespero e a morte. Amo-a, senhor bispo, amo-a desde a infancia, como não amei minha mãe, como não estremeço meus irmãos, como não adoro… ia soltar uma blasphemia!… Enlaçadas desde a meninice pela mesma ternura nossas duas almas ha muito que não fazem senão uma. O que ella sente e chora, as suas lagrimas de sangue, caem-me todas, ardentes como fogo, aqui, dentro do peito, e escaldam-m’o. O véu branco da noiva será em breve o negro fumo da orphã, e viuva sem chegar a ser esposa, sei, adivinho, que um claustro começará a abrir-lhe a sepultura, aonde ella, aonde nós havemos de descançar ambos!… Não sem eu me vingar primeiro!

―Manuel Coutinho, deixe a Deus o cuidado de punir! Socegue! A voz da liberdade, a voz da patria chamam por nós. Seja homem! Seja soldado! Tem uma espada, não faça d’ella um punhal, arma de traidores!… Leonor está mais tranquilla, mais resignada. Vi-a hoje, e já falámos a seu respeito…

―E ella?!… Disse-lhe?! Espera?!…

―Disse-me tudo e espera. Paulo de Azevedo não morreu, e havemos de salval-o. Tenha mais fé. Não atormente com os delirios da sua paixão a existencia propria, e aquella alma sensivel e melindrosa, que treme que uma imprudencia, venha abismar no mesmo naufragio os dois amores da sua vida!… Se não fosse o seu genio arrebatado confiava-lhe um segredo, que Leonor se não atreveu nunca a dizer-lhe, porque receia os impetos da sua cholera, mas que havia por outro lado de aplacar-lhe a afflicção…

―Diga-me tudo, senhor bispo. Prometto, juro vencer o meu genio.

―Veja lá! Dá-me a sua palavra de cavalheiro de fazer o que eu lhe aconselhar depois?…

―Dou. O segredo?…

―A vida de Paulo de Azevedo não corre por ora risco. É o penhor com que Lagarde tenta extorquir a D. Leonor uma promessa de casamento…

―Oh o infame!… E eu aqui de braços cruzados!…

―Se me não me escuta, calo-me. Lembre-se da sua promessa.

―Sou mudo. Sou uma estatua.

―Bom! Saiba, pois, que o intendente da policia imaginou enriquecer um sobrinho arruinado, dotando-o com os bens da filha de Paulo de Azevedo. Pediu-lhe a mão em Mafra ha mezes, foi repellido, e vingou-se perseguindo o cavalheiro e sua filha…

―Assim a causa de todas as desgraças sou eu!?… atalhou o mancebo impetuoso. Leonor e seu pae padecem por amor de mim, e no meio de seus prantos e do lucto da sua alma aquelle anjo nem uma queixa soltou ainda contra o algoz da sua vida! Porque sou eu que a torno infeliz e inconsolavel!… Hei de mostrar-me digno do sacrificio! Hei de…

―Comece por se mostrar digno das minhas confidencias, escutando-as. Observou o bispo com um sorriso. Lagarde ameaça Paulo de Azevedo, tem-lhe a espada suspensa de um fio sobre a cabeça para vencer a filha; mas no fim é tão interessado como nós em conservar vivo o unico fiador de suas esperanças!… O conselho de guerra não se reune, e mesmo que chegue a ser convocado, a sentença não passa do papel.

―E Leonor?!…

―Altiva e varonil redobra as resistencias. Mesmo ao pé do cadafalso de seu pae prefere morrer com elle, creio, a comprar-lhe o perdão por um preço vil…

―Bem sei! O seu coração envergonha o de muitos homens!… Como se chama o sobrinho de Lagarde, esse noivo feito á força, cujo papel, tão nobre (!) entra como parte principal na tragedia de nossas desventuras?… accrescentou Manuel Coutinho em voz lenta e sombria, a que um toque de ironia cruenta avivava a expressão.

―Porque o pergunta?

―Para ajustar no mesmo dia todas as minhas contas.

―Já se esqueceu da sua promessa?

―Não! Mas!…

―Quando for tempo de o desligar d’ella sem perigo seu e nosso… então falarei. Agora não. Sabe que ámanhã, depois da procissão do Corpo de Deus, se esperam grandes novidades?

―Aonde?… Se soubesse a minha impaciencia?!…

―Em Lisboa. Aonde queria que fosse?…

―E contam commigo?… Qual é o posto que hei de occupar?… Asseguro-lhe que só por cima do meu cadaver…

―Sei muito bem. Guarde para si a noticia, vá ver Leonor, demore-se pouco, porque ella espera uma visita, ou antes duas…

―Visitas!… De quem?…

―Segredo de estado. Depois saberá…

―Porém!…

―Não insista. Se podesse dizer-lh’o, cuida que me calava? A proposito! Se por acaso estiver lá em cima, quando elles… digo, quando as visitas chegarem, jura pela sua honra obedecer em tudo a Leonor, e voltar aqui pela escada do meu gabinete?…

―Mas!… Tantas precauções fazem-me suppor!…

―Supponha o que quizer. Jura?…

―A minha confiança na sua virtude é tal, que de olhos fechados me entrego em suas mãos. Juro!

―Não ha de arrepender-se. Sem isso não o deixava subir…

―Mas padre, mas senhor bispo! Essas visitas são então de inimigos?…

―Talvez! E então?! Cobre-os, quem quer que sejam, o tecto d’esta casa, recebo-as como hospedes, é quanto basta, julgo!…

―Oh! Dava metade da minha vida por adivinhar…

―O caso não merece o sacrificio!… Deixe instruir o processo, deixe informar os juizes, e quando lhe chegar a sua vez… nós o chamaremos.

―Obrigado! Como instrumento cego?!…

―Não. Como um coração generoso, como um amigo seguro, porém… perigoso. Estamos perdendo tempo! Leonor espera-o. Nem uma palavra do que se conversou aqui, e sobre tudo recorde-se do que jurou…

―Hei de cumprir a minha palavra como homem de honra, mas depois, sr. bispo!…

―Depois… O que Deus quizer! Dá o mundo tantas voltas em poucas horas, Manuel Coutinho, que nos deitâmos rapazes, e ás vezes accordamos velhos. Deixe andar os homens e as cousas. Creia no tempo. É grande medico. Adeus! Vou tractar de uma doença, que dá maior cuidado… Portugal está enfermo e não póde esperar.

E despedindo-o com um sorriso e um aceno de mão cheio de bondade, o velho prelado entrou para um aposento terreo, cujas portas de vidraças abriam sobre o jardim, em quanto o mancebo voltou em busca da escada de pedra, que subia para as salas do primeiro andar.